Pedalada da esperança

Ciclistas e educadores populares, João Marcelo dos Santos e Pedro Figueiredo saíram de Porto Alegre rumo a Brasília, de bicicleta, para a posse não só de Lula, mas de um projeto coletivo de reconstrução do País

Arquivo pessoal/João Marcelo dos Santos

Dia 28 de novembro, João Marcelo dos Santos, de 57 anos, saiu de Porto Alegre (RS) em direção a Brasília (DF) pela BR 101, no litoral. Dia 1° de dezembro foi a vez de Pedro Figueiredo, 64 anos, tomar a BR 116, pela Serra Gaúcha, rumo ao mesmo destino. Compartilhavam três objetivos concretos (além, é claro, de toda uma luta política de ideal comum): se encontrarem na estrada, na altura de Ponta Grossa (PR); chegarem à capital federal para a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), dia 1° de janeiro de 2023; fazerem todo o percurso de bicicleta.

A bicicleta pode ser brinquedo, diversão, veículo de transporte, instrumento de trabalho, atividade física, esporte. Pode ser também excelente metáfora. Sobre duas rodas, cujo giro é acionado pela pressão alternada dos pés no pedal, uma criança desafia o  medo e treina o equilíbrio, um adolescente sente no rosto o vento como se sentisse a própria liberdade, um jovem trabalha (muitas vezes precariamente) no “corre” das entregas, um sedentário redescobre o prazer quase infantil de se movimentar, um atleta tem ciência de que vitória exige esforço.

E tudo isso — coragem, equilíbrio, liberdade, trabalho, movimento, esforço — foi, em outubro passado, e continua sendo imprescindível para garantir a reconstrução da democracia, solapada pelo impedimento da ex-presidente Dilma, em 2016, e a prisão, em 2018, do presidente eleito Lula.

Consigo e com o outro

Arquivo pessoal/João Marcelo dos Santos

Os dois amigos gostam de percursos de longa distância. O maior trajeto feito por João Marcelo, até então, haviam sido 600 quilômetros do Chuí, no extremo sul do Rio Grande,  a Montevidéu, no Uruguai. Já Pedro, no ano passado, percorreu 1.400 quilômetros de Porto Alegre a Resende (RJ), para a formatura do filho.

“O que nos motivou, além do desafio, é querermos quebrar a rotina de uma forma muito radical. A rotina é uma gaiola”, conta João Marcelo, que é educador popular, professor de Sociologia do Trabalho na Escola Técnica Mesquita, doutor em História pela Unicamp e assessor da CUT-RS.

Para além disso, porém, o lançar-se, assim, desprotegido na estrada é também vulnerabilizar-se, atirar-se, de peito aberto, sem nenhum anteparo, nos próprios pensamentos. E também ao encontro do outro, daquele que se encontra pelo caminho.

“Sempre pedalei longas distâncias. Sou apaixonado por essa atividade. Ela é esportiva, mas também dá elementos reflexivos muito profundos. Porque, na atividade de pedal de longa distância, praticamente a gente não pode falar. Quanto mais tu falar, mais tu cansa”, conta Pedro, também educador popular e ativista ambiental, que há 25 anos atua nos movimentos sociais ligados a catadores e à atividade de reciclagem — cuja política construída nos governos Lula e Dilma foi completamente desmontada por Michel Temer (MDB), após o golpe de 2016.

“[O pedal] É uma atividade solitária, reflexiva e contemplativa, no sentido de que a gente tem contato com a natureza, mas, ao mesmo tempo, tem contato com o terror dos desertos das rodovias. Dos desertos carregados de carros e caminhões. O barulho ensurdecedor, o medo, a insegurança pela pequenez do pedalante diante dessas gigantezas de caminhões e carretas. A gente fica muito vulnerável”, diz Pedro.

Colocar-se vulnerável, contudo, pode ser essencial. “O principal desafio de quem luta por direitos e democracia é sair da condição confortável e de bolha”, opina João Marcelo. “Precisamos sair em direção à sociedade, é fundamental ouvir as pessoas e dialogar. Os democratas precisam realizar um grande esforço de aproximação com a sociedade.”

No meio do caminho tinha um trabalhador

Arquivo pessoal/João Marcelo dos Santos

Pelo litoral dos estados do Sul, João Marcelo conversou com trabalhadores dos setores de hotelaria e de limpeza urbana, que preparam as cidades para as festas de fim de ano. Pelo interior do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina, Pedro passou por trabalhadores rurais das plantações de maçã e de batata e por descascadores de madeira que se amontoam em choupanas alugadas na beira da estrada. “Homens pequenos, sem dentes, que não são negros, que também não são índios. Têm uma cor castigada, queimada e sol, barba rala, olho meio amarelado. É o brasileiro, né?”, impressiona-se.

No Paraná, em São Paulo e em Minas Gerais, ambos se depararam com uma massa de novos boias-frias, todos homens, todos jovens, vindos das regiões Norte e Nordeste, chorando de saudade da família que ficou para trás. Ao pernoitar em pousadas próximas a postos de gasolina, também se viram em meio a dezenas de caminhoneiros.

“Essa é uma galera que vive na solidão das estradas recebendo fake news de seus empregadores e de políticos oportunistas. Trabalham muito e são explorados”, observa João Marcelo. “Uma categoria estratégica para o País e que não conhecemos a realidade.”

“O drama nosso de pedalar é esse. A gente carrega conosco, além do cansaço físico, as dores do mundo. Desse mundo que a gente vai encontrando ao longo do caminho. E essas dores são muito semelhantes, na questão do trabalho, na situação de semiescravidão”, considera Pedro.

“Mas também tem muitas particularidades especiais. Por exemplo, ontem (21), aqui no estado de Minas, encontramos quatro jovens dentro de um carro precário. A especialidade deles é lavar chiqueiro de porco. Então eles fedem. Tanto quanto aqueles caminhões que passam pela gente carregados de porcos”, conta o ativista ambiental, a voz carregada de emoção.

“É uma semelhança muito interessante, porque os catadores de lixo das grandes metrópoles, aqueles que correm atrás do caminhão juntando lixo urbano, todos são dependentes de maconha. Fumam muito, para aguentar aquele ritmo. Então eles fedem e fumam maconha. Têm aquele cheiro característico que entranhou no corpo. E aqui vim encontrar essa mesma característica nos caras que lavam chiqueirão de porco”, assombra-se.

“Essas dores a gente carrega no pedal.”

Arquivo pessoal/João Marcelo dos Santos

Viagem rumo a outro País

Quando, ainda em fevereiro deste ano, os amigos traçaram os primeiros planos para a Pedalada da Esperança até Brasília, Lula despontava como grande favorito para derrotar Bolsonaro ainda no primeiro turno. Com o desenrolar da suja campanha do atual presidente, que abusou da máquina do Estado para assegurar a pretensa reeleição, chegaram a temer que a viagem não se concretizasse. Nem, o que era pior, a retomada da democracia e do desenvolvimento soberano e solidário do Brasil. “Por sorte e por muita luta, a gente ganhou”, celebra Pedro.

João Marcelo explica que, além de participar da posse de Lula, “que na verdade é a posse de um projeto coletivo de reconstrução do País”, a finalidade da jornada é também abrir os olhos para “as condições de vida das pessoas, dos trabalhadores e trabalhadoras que a gente encontra pelo caminho”.

“Nós, democratas que lutamos por direitos, precisamos também mudar nosso jeito de ser, conhecer a realidade do País, ouvir as pessoas, sair desse pedestal, dessa arrogância de achar que a gente sempre tem a verdade”, defende o professor.

“A gente precisa ouvir muito as pessoas, permitir que as pessoas contem suas histórias, ter empatia. A gente não precisa reconstruir só a economia. A gente precisa reconstruir a esperança, a ideia de direitos, a ideia de cidadania, a ideia de democracia. E a gente não faz isso sem se reaproximar do nosso povo que foi massacrado, seja economicamente, seja pela ideologia da extrema direita.”

Táscia Souza

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