Pobreza menstrual
Por Valdete Souto Severo (Foto: Elisa Heidrich)
Não gosto desse termo. Não há pobreza na menstruação. Ao contrário, menstruação é abundância, parte da potência complexa da geração da vida. Se existem meninas e mulheres – e são tantas – que não conseguem acesso a absorventes, não é de pobreza menstrual que se trata. É de miséria social. É de miséria econômica, em uma realidade em que o dinheiro é a via exclusiva para obter acesso a bens necessários a uma vida digna. É também miséria moral de quem opta por negar essa condição básica de dignidade às mulheres brasileiras.
No Brasil, são quase 30 milhões de pessoas, pelo índice oficial, vivendo em condições de pobreza extrema. Pelo menos metade delas é composta de meninas e mulheres, que sangram e que não têm condição econômica de comprar absorvente. O mais curioso é perceber que talvez muitos de nós – certamente a maioria dos homens, senão todos – jamais se colocou a questão de que a ausência de absorvente limita a vida de meninas e mulheres, as impede de ir às aulas, ao trabalho, de estar nas ruas. Essa não é uma pauta discutida nas escolas, nem em muitas famílias.
Há uma espécie de acordo velado, pelo qual o sangue que sai do nosso corpo não deve ser visto. Uma cultura hipócrita, que nos ensina a esconder as marcas do ciclo vital. Lembro de uma professora de Química, no ensino médio, que foi alvo de deboche por parte de colegas, porque estava com a calça manchada de sangue. Ao saber a razão dos risos abafados, enquanto tentava ensinar a matéria, ela parou a aula e nos disse que menstruação não é algo para se envergonhar, pois todas as mulheres, em sua vida fértil, lidam mensalmente com a realidade do sangue que se renova em seus corpos, enquanto precisam seguir trabalhando, estudando, vivendo. “Meninas, vocês talvez um dia se encontrem em uma situação como essa”, ela nos disse. “Não tenham vergonha, tenham orgulho do corpo que habitam e que é também potencial abrigo para novas vidas.” Depois pediu licença. Saiu, voltou em seguida com um moletom amarrado à cintura. Ela tinha consciência da potência que encerra o ato de menstruar, mas também sabia do tal acordo que nos obriga a invisibilizar esse processo que todos os meses nos implica e transforma.
Menstruar não é apenas sangrar, é sentir todos os efeitos emocionais e físicos de um corpo que se despede da possibilidade de gerar. Por isso, há um nome – bastante carregado de preconceito – para o que sentimos nos dias que antecedem o ciclo: tensão pré-menstrual. Algumas de nós sentem cólicas fortes, vontade de chorar, dores no corpo; outras apenas sentem que o corpo prepara-se para a renovação. É já um momento ímpar, que nos convoca. Nesses dias, enquanto nosso corpo promove uma revolução, seguimos trabalhando, estudando, interagindo. A necessidade de esconder ou de algum modo conter esse sangue, para que não manche nossas roupas nem se torne visível, exige o uso de absorventes. Estamos falando, portanto, de uma condição indispensável para que meninas e mulheres possam ir à escola, ao trabalho, ocupar o espaço público enquanto estão menstruadas.
O veto do presidente à regra jurídica que permite a meninas e mulheres em condição de pobreza acesso gratuito a absorventes é apenas mais um ato de perversidade, dentro do que tem sido a atuação dos poderes de Estado. O principal argumento é a ausência de recursos. Na mesma semana, soubemos que o ministro da Economia tem milhões de dólares aplicados em uma Offshore (empresa em paraíso fiscal) e que, portanto, está lucrando com a desvalorização do real. Soubemos também que seu ministério retirou R$ 600 milhões de investimento em Ciência e Tecnologia. O mesmo governo que, de janeiro a agosto deste ano, pagou R$ 5,8 milhões em viagens e despesas domésticas da família de Bolsonaro. É bastante evidente, portanto, que não se trata de preocupação com gastos; trata-se de reafirmar uma postura de desrespeito à vida, à dignidade das mulheres. Trata-se de reafirmar o machismo, reafirmar a aposta na pobreza, na desigualdade, na miséria.
Isso fica muito claro na pergunta de Damares: “a prioridade é a vacina ou é o absorvente?” Não se trata apenas de um falso dilema; é um deboche.
A vacina, que foi negada aos brasileiros e brasileiras em 2020 e vem sendo ministrada apesar do boicote do governo federal e de sua postura negacionista, não se coloca em contraposição aos absorventes que precisam ser utilizados todos os meses por nós. O que essa pergunta revela não é a ignorância em comparar coisas não comparáveis. É uma vez mais o escárnio, afinal bem sabemos que para a ministra e para todos que compactuam com o atual governo, absorventes e vacinas não são prioridade. Aliás, a vida não é prioridade. A retirada de recursos para a Ciência e Tecnologia demonstra isso, pois em meio a uma pandemia que, muito provavelmente segundo cientistas não será a última que enfrentaremos, a aposta na pesquisa científica deveria ser prioridade. Não é, como também não é prioridade a imunização ou a possibilidade de garantir às meninas e mulheres acesso a um produto essencial como o absorvente.
Trata-se, portanto, de um ataque a todas as mulheres, àquelas que seguirão sendo diretamente afetadas pela pobreza que as impede de ocupar espaços públicos nos dias em que estão menstruadas e daquelas que, tendo condições de acesso a esses produtos, compreendem a profundidade da agressão sexista que mal se esconde nesse veto presidencial.
A repercussão social dessa medida desumana talvez ajude a sensibilizar o Parlamento. Na sexta, o presidente declarou que fará esforço para que a medida, por ele vetada, seja implementada. O recuo diante do escândalo não altera a gravidade da violência; é apenas materialização do assédio a que temos sido sujeitadas. Tal como o agressor que bate e em seguida pede desculpas, chora e promete que não repetirá a conduta, para em seguida bater outra vez, esse aparente recuo do governo é apenas uma forma de legitimar e perpetuar a violência com que nos tem constrangido.
É urgente compreender que não se trata de uma opção sobre alocação de recursos públicos. Trata-se de violência de gênero e como tal deve ser encarada. Trata-se da explicitação do retrocesso machista em que estamos mergulhados, de que faz parte o aumento do número de feminicídios, de violência contra a população LGBTQI+, assim como a tentativa de alteração constitucional para tornar ainda mais difícil a já tão dolorida opção pelo aborto.
A política conservadora em termos de costumes, como vem sendo rotulada essa verdadeira profissão de fé sexista, é uma política de dominação dos corpos femininos, de assujeitamento, de exclusão e de morte. O veto do presidente e a fala da ministra explicitam isso. Não surpreendem, pois estão em harmonia com tudo o que vem sendo dito e feito em relação às questões de gênero em um país no qual duas em cada dez pessoas admite simpatia pelo pensamento conservador da ultra-direita. Uma espécie de reação à visibilidade dada aos estudos feministas, especialmente aqueles que colocam em xeque a forma de organização social, demonstrando o quanto nossa origem colonial, racista e patriarcal incide sobre nossos pensamentos e ações políticas.
Há uma mudança em curso, que é resultado de estudos empreendidos por mulheres que nos antecederam, maximizado pela possibilidade de ocupar os espaços de comunicação ouvindo mulheres, debatendo histórias de resistência, propondo alternativas a essa forma tão masculina de gerir nossa sociabilidade. Esse movimento não será contido. Somos oito, em cada dez pessoas, e não calaremos diante do retrocesso.
Saibam, portanto, os que de algum modo compactuam com a violência contra as mulheres: não há como voltar para a invisibilidade. As questões relativas ao respeito à diversidade sexual, ao aborto, à (im)possibilidade de acesso a absorventes, à violência contra as mulheres em âmbito doméstico são pautas que não serão mais silenciadas.
Quem professa o obscurantismo sabe disso e por isso nos ataca.
Eis a aqui a aposta: nós resistiremos. E para cada ataque, gritaremos mais alto.
Repudiamos esse veto e convocamos o Parlamento a derrubá-lo!
Valdete Souto Severo é doutora em Direito do Trabalho pela USP/SP, juíza do trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da Quarta Região, professora de Direito e Processo do Trabalho da UFRGS e escritora.