Polícia do estado do Rio de Janeiro nunca matou tanto
A letalidade policial nunca foi tão alta no Rio de Janeiro. O Instituto de Segurança Pública (ISP), que monitora o indicador desde 1998, contabilizou 194 mortes causadas por agentes do Estado somente no mês de julho. Na última década, apenas em 2018 um ano completo registrou mais casos do que nos sete primeiros meses de 2019, quando 1.075 pessoas foram vitimadas em ações policiais.
Os dados foram divulgados um dia após o sequestro de um ônibus com 39 passageiros na Ponte Rio-Niterói, que terminou com a execução do sequestrador, de 20 anos, por um atirador de elite da Polícia Militar. O governador Wilson Witzel chegou ao local de helicóptero, celebrando aos pulos o desfecho do sequestro.
Embora seja um caso deslocado da dinâmica de confrontos com criminosos ligados ao tráfico de drogas, Witzel aproveitou a ocasião para defender a ação ostensiva da polícia em favelas do Rio: “Se hoje esse foi abatido, por que os que estão de fuzil não podem ser abatidos?”, indagou.
Desde que assumiu, em janeiro, Witzel prega o “abate” de criminosos como solução para os problemas de segurança pública do estado. Logo em sua primeira semana de governo, falou em utilizar seniores para executar quem estivesse portando fuzis em favelas do Rio. Mais recentemente, culpou as ONGs defensoras dos direitos humanos pelas “mortes de inocentes”.
As sucessivas declarações em prol do enfrentamento aberto contra o crime organizado são acompanhadas pela presença do governador na apresentação do balanço de operações – em algumas ocasiões, com a farda da corporação responsável pela ação.
Em maio, ele participou de uma operação da Polícia Civil no município de Angra dos Reis. Imagens gravadas no interior do helicóptero onde estava o governador mostraram um agente disparando tiros de metralhadora contra uma tenda azul, num monte da região. Dias depois, soube-se que o local é um ponto de peregrinação para evangélicos locais.
A postura de Witzel, que é ex-juiz e trabalha nos bastidores para viabilizar sua candidatura à presidência da República em 2022, pode ser lida como uma estratégia de marketing político. Todavia, até que ponto sua abordagem estimula ações arbitrárias entre os agentes de segurança pública na ponta da cadeia de comando?
As operações policiais em favelas são parte da rotina do Rio há décadas. No governo atual, tornaram-se mais frequentes e letais, com uso de forte aparato repressivo. Em fevereiro, 15 cidadãos foram mortos nas comunidades do Fallet e Fogueteiro, no centro da capital. Uma ação da força de elite da Polícia Civil em maio deixou outros oito mortos na Maré, zona norte.
Em ambos os casos, registraram-se denúncias de execuções de vítimas já rendidas, tanto na Defensoria Pública da União e do Estado como no Ministério Público do Rio. No caso Fallet-Fogueteiro, a perícia da Polícia Civil já confirmou essa prática. Moradores das comunidades em questão também relataram outras ações abusivas dos agentes, como invasão de casas sem mandado judicial, agressões, furtos e prisões sem suspeita concreta.
A antropóloga e cientista política Jacqueline Muniz, professora da Universidade Federal Fluminense (UFF), lembra que o governador é comandante-em-chefe das polícias, sendo responsável pela autorização política das estratégias policiais. Nesse sentido, o salto nos indicadores de letalidade policial tem a chancela de Witzel, afirma.
“Ele legitima a lógica do ‘matar primeiro’. É um governante que está empurrando o trabalho policial para um total amadorismo. Com cabeça quente, coração aflito e dedo nervoso, a polícia abandona a expertise, para se transformar em mais um bando armado”, critica.
Muniz aponta que o governador do Rio se vale de um limbo normativo legal que regule o uso da força pela polícia. Soma-se a isso a vigência da súmula 70 no Tribunal de Justiça do Rio, que dá peso de prova ao depoimento do policial.
“O governador sabota a institucionalidade da polícia para ter capangas que agem sem nenhuma accountability e responsabilização. Assim, manobra a situação para o seu marketing político. Ele não aposta na repressão qualificada, porque cada velório é um palanque eleitoral.”
Para o coronel reformado Robson Rodrigues, ex-comandante do Estado Maior da Polícia Militar do Rio de Janeiro, a postura de permissividade de Witzel encontra ecos no governo federal e gera um entendimento de liberalização. Porém ele acredita que a baixa eficácia dos instrumentos de controle da ação policial seja mais nociva do que os discursos do governador.
“O que o governador fala é verdade na prática, esse é o quadro. Se houvesse freio das instituições de controle, com responsabilização e punição exemplar, a inibição seria muito maior, porque é o que o policial vê na prática. Se o colega foi preso, vai pensar duas vezes antes de atirar sem necessidade.”
Robson lembra que, especialmente nos anos 1990, secretários de Segurança que estimularam o enfrentamento seguiram carreiras políticas após deixar o cargo, enquanto policiais tiveram que responder criminalmente por suas ações. Entretanto a didática informal que prevalece nos batalhões não possibilitaria a consolidação dessa memória.
“Numa sociedade democrática, o policial deve ser o mais técnico possível e se blindar tanto do ‘oba-oba’ como das críticas infundadas. Isso passa pelo respeito à lei acima de tudo e pela busca da redução de riscos, sabendo que confrontos e mortes podem acontecer.”
Em maio, após a morte de um professor de jiu-jítsu no Complexo do Alemão durante incursão policial, Witzel rebateu críticas à abordagem dos agentes: “A polícia não chega atirando. A polícia é recebida à bala com armas de guerra e, se a polícia não chegar, a facção adversária vai chegar e a guerra vai ser pior ainda”, defendeu.
Em 20 de junho deste ano, a Organização das Nações Unidas (ONU) e a Organização dos Estados Americanos (OEA) enviaram um comunicado ao governador do Rio de Janeiro, questionando o uso abusivo da força contra comunidades pobres do estado.
No documento, as organizações destacam que, se confirmadas as denúncias, o governo do Rio pode estar violando artigos da Convenção Internacional de Direitos Civis e Políticos, da Convenção sobre os Direitos das Crianças, da Declaração Universal dos Direitos Humanos e da Convenção Americana de Direitos Humanos.
“O estímulo oficial do que parece ser uma política deliberada de atirar para matar no contexto de esforços antidrogas e anticrime foi supostamente expressado em recentes declarações públicas do governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel”, consta no documento.
“Pedimos ao governo que alinhe sua legislação local aos parâmetros internacionais, em especial as preocupantes práticas ou políticas de segurança pública que incidem sobre suspeitos de crimes, incluindo afrodescendentes”, requerem a ONU e OEA.