Por que o governo quer o fim da Justiça do Trabalho?

Por Marcos Aurélio Ruy

Com a aproximação do Dia do Trabalhador, neste sábado (1º), foi realizada uma conversa com a juíza do Trabalho, Valdete Souto Severo, presidenta da Associação Juízes para a Democracia (AJD), para a compreensão sobre a importância da Justiça do Trabalho como mediadora entre o capital e o trabalho, pondo freio à exploração de quem só tem a força de trabalho para vender.

O 1º de maio acarreta muita reflexão sobre a vida da classe trabalhadora e o futuro da humanidade. Principalmente nestes tempos dominados pela ideologia ultraliberal, que, cada vez mais, volta-se para a exploração extenuante do homem pelo homem.

O capital destrói tudo o que a classe trabalhadora necessita para viver com dignidade. Mas a história permite afirmar que o futuro pertence a quem vive do trabalho.

A luta e organização da classe trabalhadora fizeram o sistema criar em 1923, o Conselho Nacional do Trabalho. A instalação da Justiça do Trabalho, como se conhece hoje, surgiu somente em 1943 com a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Mas a reforma trabalhista de 2017 trouxe um retrocesso de décadas sobre os direitos trabalhistas.

Os dados do Observatório Digital de Segurança e Saúde do Trabalho, entre 2012 e 2018, comprovam isso ao apontarem que uma pessoa morreu por acidente de trabalho a cada 3h40, no Brasil. Em 2017 foram 1.992 mortes e em 2018, 2.022 mortes em acidentes do trabalho.

Segundo o relatório do Observatório, “o corte e laceração, com 734 mil casos (21%). Em seguida, vêm fraturas, com 610 mil casos (17,5%), contusão e esmagamento, com 547 mil (15,7%), distorção e tensão, com 321 mil (9,2%) e lesão imediata, com 285 mil (8,16%)” foram os principais tipos de acidente ocorridos.

As profissões mais atingidas foram “as de alimentador de linha de produção (192 mil), técnico de enfermagem (174 mil), faxineiro (109 mil), servente de obras (97 mil) e motorista de caminhão (84 mil)”. Isso antes da pandemia.

Na pandemia, a situação se agravou, por causa da falta de equipamentos de segurança para as profissões consideradas essenciais, como mostra a reportagem “Mortes entre caixas, frentistas e motoristas de ônibus aumentaram 60% no Brasil no auge da pandemia”, do El País Brasil.

Para Valdete, não é somente “a Justiça do Trabalho, mas todo o sistema de fiscalização, os auditores fiscais e o Ministério Público do Trabalho (MPT) formam uma tríade para garantir algum nível de prevenção contra os acidentes e adoecimentos no âmbito do trabalho”.

Por isso, as primeiras medidas do golpe de Estado de 2016 foram para minar a importantíssima resistência do movimento sindical pelos direitos de quem vive do trabalho. Mas o sindicalismo existe porque o povo necessita dele para impedir a barbárie.

Valdete destaca a importância da Justiça do Trabalho, dos auditores e do MPT e, de acordo com ela, é por isso que “numa lógica de ultraliberalismo vivido hoje no país, essas são as instituições mais atacadas para impedir o respeito às leis que garantem a civilização”.

A juíza gaúcha diz também que “o Brasil tem um sistema de pagamento de encargos que não revertem à população em geral. E os empresários também pagam uma carga tributária extremamente expressiva, muito menor do que em outros países é verdade, mas é expressiva porque não há retorno”.

Em verdade, afirma, “não há investimento em educação pública de qualidade, em saúde pública e em políticas públicas que combatam as desigualdades e valorizem o trabalho”.

Diz ainda que “o que vemos acontecer é o desmanche e não há o incentivo ao cumprimento dos direitos sociais, entre eles os direitos trabalhistas”.

Além de juíza do Trabalho e presidenta da AJD, Valdete Souto Severo é professora universitária e escritora.

Valdete Souto Severo, presidenta da AJD (Arquivo Pessoal)

Leia a entrevista completa abaixo:

Falta uma cultura de prevenção e de respeito à legislação e aos direitos da classe trabalhadora que coloca o Brasil como um dos campeões de acidentes e adoecimentos no mundo do trabalho?

Valdete Souto Severo: Não só a Justiça do Trabalho, mas todo o sistema de fiscalização, os auditores fiscais e o Ministério Público do Trabalho (MPT) formam uma tríade para garantir algum nível de prevenção contra os acidentes e adoecimentos no âmbito do trabalho, são fundamentais para impedir ilegalidades.

Sem a Justiça do Trabalho seria muito mais grave?

A Justiça do Trabalho é essencial porque fixa os parâmetros para a troca entre o capital e o trabalho. Ela acaba, de algum modo, contendo esse número de adoecimentos e de acidentes.

Porque certamente quem trabalho 8 horas diárias, tem menos risco de se acidentar do que quem trabalha 12 horas ou mais por dia. Quem tem uma hora de intervalo para o almoço e alimentação adoece menos do que quem trabalha direto, sem intervalo para o repouso.

Por isso, sem dúvida nenhuma a Justiça do Trabalho, a auditoria fiscal do trabalho e o MPT são essenciais. Não é por acaso que numa lógica de ultraliberalismo vivido hoje no país, essas são as instituições mais atacadas para impedir o respeito às leis que garantem a civilização.

O desmonte promovido pelo projeto ultraliberal não visa minar a resistência da classe trabalhadora e assim extinguir os direitos trabalhistas?

A auditoria fiscal vem sofrendo cortes contundentes no orçamento com respectiva redução no número de auditores. O Ministério do Trabalho foi extinto por esse governo em seus primeiros atos, o MPT, assim como a Justiça do Trabalho contam cada vez mais com uma estrutura precarizada porque, por exemplo, não há substituição das pessoas que se aposentam porque não estão realizando concursos com esse objetivo, entre outros motivos.

Essas instituições são atacadas exatamente pela ação que têm de contenção sobre a lógica de exploração do trabalho pelo capital. E o sindicalismo é fundamental para mobilizar, organizar e levar informação às trabalhadoras e trabalhadores.

A mentalidade atrasada dos empresários é uma das causas principais disso acontecer?

Na realidade, há uma mentalidade colonial, escravocrata, que nos atravessa como país. Isso faz a sociedade olhar para as relações de trabalho como uma benesse. Os empregadores têm a noção de que eles dão emprego e que fazem um favor quando empregam alguém.

Existe uma relação de trabalho, no Brasil, tão vertical a ponto de justificar, por exemplo, que o empregado sofra penalidades. Veja só um exemplo disso. Não há previsão na lei para que o empregado seja advertido ou suspenso, só que essa é uma prática absolutamente comum na realidade das relações de trabalho. Aceita como doutrina e pela jurisprudência trabalhista.

Quando se discute a demissão por justa causa em processos trabalhistas, os juízes, muitas vezes, consideram o que eles chamam de gradatividade da pena, isto é, se a pessoa foi advertida e depois suspensa para só então ser despedida. Quando não há previsão de se aplicar a penalidade ao trabalhador.

Então por que se aceita, se aplica e se utiliza isso como critério inclusive para poder despedir por justa causa? Porque há uma lógica de mentalidade colonial e escravocrata.

A segunda parte do problema é o fato de que descumprir os direitos trabalhistas acaba sendo um ótimo negócio. Não há uma fiscalização efetiva porque toda a rede de fiscalização e prevenção está sucateada.

Com a reforma trabalhista ficou muito mais difícil recorrer à Justiça do Trabalho?

A inobservância dos direitos trabalhistas e, se por acaso, a empregada, o empregado judicializa a questão, conta com o risco dessa incumbência em função da reforma trabalhista.

E esse medo faz com que muitas pessoas não ajuízem ações. O recado social que se passa é que não é bom ir à Justiça do Trabalho porque correm o risco de uma conciliação por um valor menor que deveriam receber e ainda com divisão em várias parcelas.

Esse pagamento acaba nem respondendo ao valor histórico, por exemplo, das horas extras não pagas ou de uma rescisão não paga como cláusula de quitação de contrato. Isso porque a quitação do débito sai lá com uma cláusula que impede que qualquer outra discussão seja feita na Justiça do Trabalho em relação àquele vínculo de emprego.

Como vê a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre os juros nos pagamentos dos processos trabalhistas?

Essa decisão do STF acabou com os juros na Justiça do Trabalho. Ficando claro que a melhor dívida que se pode ter no Brasil, a dívida mais fácil de administrar, de dar conta e inclusive de não pagar é a dívida trabalhista.

Porque essa dívida não vai ser atualizada com juros, conforme, por exemplo, as dívidas de outros contratos ou as dívidas bancárias. É essa dívida que o Estado vai se empenhar em tentar conciliar por menos da metade do valor devido, muitas vezes.

O segundo fator a impedir o cumprimento dos direitos trabalhistas, portanto, é justamente a prática judiciária e as decisões recentes adotadas sobretudo pelo STF, que acabam tornando um ótimo negócio não pagar os direitos trabalhistas, que a Constituição diz que são fundamentais.

A Justiça do Trabalho na verdade faz um trabalho hercúleo porque consegue dar conta de ser a justiça mais efetiva do país, com os processos que caminham mais rápido, apesar dos pesares.

Apesar de súmulas que dificultam a aquisição de direitos, apesar da lógica de conciliação que destrói direitos na Justiça do Trabalho todos os dias. Apesar da decisão, muito recente, do STF sobre a questão dos critérios de atualização dos créditos trabalhistas.

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Com essa prática, como fazer com que o empresariado entenda a importância de pagar os direitos trabalhistas?

O papel da Justiça do Trabalho é inverter a ordem sobre o pagamento dos direitos trabalhistas, mostrando que dever direito trabalhista deve ser realmente um mau negócio. Deveria haver um caráter pedagógico nas decisões que reconhecem o descumprimento desses direitos. Aí eles seriam mais respeitados.

Há que se considerar também que o Brasil tem um sistema de pagamento de encargos que não revertem à população em geral e os empresários também pagam uma carga tributária extremamente expressiva, muito menor do que em outros países é verdade, mas é expressiva porque não há retorno.

Com isso, temos uma lógica de que nós pagamos impostos e não há investimento em educação pública de qualidade, em saúde pública e em políticas públicas que combatam as desigualdades e valorizem o trabalho. O que vemos acontecer é o desmanche disso tudo e não há o incentivo ao cumprimento dos direitos sociais, entre eles os direitos trabalhistas.

Isso quer dizer que o Estado beneficia os patrões que desrespeitam as leis?

O empregador que deseja fazer tudo certo se vê diante dessa carga tributária e de uma concorrência absolutamente desleal porque o vizinho que vai concorrer no mesmo ramo de atividade, aquele que não vai cumprir os direitos trabalhistas, que vai sonegar impostos, enfim que vai agir na ilegalidade vai conseguir do Estado essa atitude de complacência. Por exemplo, de estar numa reclamatória trabalhista e ter o Estado propondo uma conciliação pela metade do valor e em várias parcelas e ainda sem qualquer correção. Há um estímulo a esse desrespeito, essa é a verdade.

Os empresários agem por má fé?

Não acredito que exista uma subjetividade de empregadores que deliberadamente agem para boicotar os direitos trabalhistas, mas há um estímulo estrutural para isso. Toda uma estrutura criada para fazer com que aqueles empregadores que tentam fazer tudo certo sintam-se ludibriados dentro desse sistema porque eles fazem tudo certo, mas veem outros não fazerem.

É só pensar num pequeno comércio de alimentos que respeita todas as regras jurídicas, todos os direitos trabalhistas e sofrem a concorrência de uma grande rede de supermercados que não cumpre os direitos trabalhistas, não paga as horas extras, forja justas causas para mandar as pessoas embora sem sequer pagar as verbas resilitórias e ainda é uma das maiores clientes da Justiça do Trabalho.

É uma inversão de valores com o Estado facilitando a vida de quem não anda nos trilhos da Constituição e estimula o inadimplemento do direito trabalhista.

Com a pandemia muitos trabalhadores estão mais expostos, adoecendo e morrendo. Do ponto de vista da Justiça do Trabalho o que deve ser feito?

Essa exposição dos corpos é uma escolha política também. É a primeira coisa que temos que considerar. Porque outros países, Portugal e vários países da Europa optaram por um lockdown nacional com renda suficiente para que as pessoas pudessem permanecer em casa. Até vizinhos nossos e os Estados Unidos distribuíram uma renda suficiente para isso, enquanto não havia vacina.

Esses países apostaram na vacinação. Como os Estados Unidos e Israel, por exemplo, que já vacinaram grande parte de sua população. Os corpos das trabalhadoras e trabalhadores, portanto, desses países não estão expostos ao adoecimento e morte por covid-19 da mesma forma que estão os corpos das trabalhadoras e trabalhadores brasileiros.

Como disse, é uma escolha política. Então o que a Justiça do Trabalho tem que fazer é cumprir a Constituição. E a Constituição diz que é preciso preservar a dignidade humana. A Constituição diz que a economia deve servir aos ditames da justiça social. A Constituição diz que os direitos sociais e trabalhistas são fundamentais e é dever do empregador proteger a saúde das pessoas cuja força de trabalho ele toma.

Valendo a Constituição, a Justiça do Trabalho consegue determinar uma maior proteção aos corpos dessas pessoas. Claro que isso depende em larda medida da ação governamental, que no nosso caso não existe, mas existe uma função, e acho que é isso que importa na tua pergunta, existe uma função para a Justiça do Trabalho, que ela está sempre sendo chamada a exercer.

Porque são inúmeras as demandas que chegam revelando trabalhadoras e trabalhadores contaminados pela covid-19, que estão sendo obrigados a expor seus corpos sem que haja efetiva necessidade disso ou estão sendo dispensados sem receber sequer as verbas rescisórias em plena pandemia.

Isso significa que a Justiça do Trabalho tem que dar efetividade à Constituição para fazer valer os direitos trabalhista e o direito elementar à vida.

CTB

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