Por que vacinas não são vitória apenas do setor privado, como disse Paulo Guedes
Vacina desenvolvida pela Pfizer/BioNTech recebeu milhões do governo alemão
O ministro da Economia, Paulo Guedes, atribuiu a resposta em tempo recorde das vacinas contra covid-19 aos esforços empreendidos pelo setor privado em meio à pandemia.
A afirmação veio no contexto de mais uma declaração atrapalhada de Guedes, que disse em reunião do Conselho de Saúde Suplementar nesta terça (27/04) que a China teria “inventado” o vírus, enquanto defendia a eficiência da indústria dos Estados Unidos.
“O chinês inventou o vírus, e a vacina dele é menos efetiva do que a americana. O americano tem 100 anos de investimento em pesquisa. Então, os caras falam: ‘Qual é o vírus? É esse? Tá bom, decodifica’. Tá aqui a vacina da Pfizer. É melhor do que as outras”, declarou, sem saber que o encontro estava sendo transmitido pela internet. Após a reunião, o vídeo foi retirado do ar.
Posteriormente, ao se desculpar por ter usado o que chamou de “imagem infeliz” para se referir à China, o ministro disse que sua intenção com a fala foi “dar a importância do setor privado, como ele consegue dar a resposta”.
A vacina “da Pfizer”, elogiada pelo ministro, recebeu um vultoso investimento do governo alemão, por meio da BioNTech, parceira da farmacêutica americana.
O mecanismo de funcionamento da vacina, aliás, não foi criado nos Estados Unidos. A tecnologia baseada no RNA mensageiro foi desenvolvida pela BioNTech, companhia fundada por uma casal de cientistas alemães de origem turca.
Em setembro do ano passado, a farmacêutica recebeu 375 milhões de euros (aproximadamente R$ 2,4 bilhões) do Ministério Federal da Educação e Pesquisa para aplicar na pesquisa do imunizante.
O caso não é isolado.
A farmacêutica Moderna, que também desenvolveu uma vacina contra a covid-19 baseada na tecnologia de RNAm, tem um contrato de mais de um bilhão de dólares com a Biomedical Advanced Research and Development Authority (BARDA), uma divisão do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos.
Conforme um comunicado divulgado neste mês pela empresa americana, o valor dos repasses para financiar licenciamento, estudos clínicos e aceleração da produção foi recentemente aumentado em US$ 235 milhões, levando o total à cifra de US$ 1,25 bilhão (cerca de R$ 6,7 bilhões).
A pesquisa também recebeu apoio de uma série de entidades públicas, entre elas o National Institute of Allergy and Infectious Diseases e o National Center for Advancing Translational Sciences, que são parte do National Institute of Health (NIH, o Instituto Nacional de Saúde), uma agência do Departamento de Saúde.
Essas e outras entidades estão listadas no relatório preliminar sobre o imunizante, publicado no periódico científico The New England Journal of Medicine.
O mesmo texto cita também a cantora Dolly Parton, ícone da música country americana, que foi uma entre muitos que doaram para a iniciativa. Ela contribuiu financeiramente para a pesquisa conduzida pelo centro médico da Universidade de Vanderbilt, que fez parte dos esforços no desenvolvimento da vacina.
A Biomedical Advanced Research and Development Authority (BARDA) também colocou dinheiro na pesquisa da vacina da Johnson&Johnson, a Janssen. Em um comunicado de março do ano passado, a empresa anunciou a parceria com a entidade pública, afirmando que ambas investiriam, juntas, US$ 1 bilhão na pesquisa.
A vacina da anglo-sueca AstraZeneca, por sua vez, foi largamente financiada com recursos públicos ou de entidades filantrópicas. Um estudo aponta que 97% do financiamento veio dessas fontes, conforme levantamento feito pela organização Universities Allied for Essential Medicines UK e publicado em versão ainda não revisada por pares no último dia 15.
A pesquisa foi uma reação a uma declaração dada em março pelo primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, que atribuiu o sucesso da vacina da farmacêutica ao “capitalismo” e à “ganância”.
Na onda de reações negativas à fala do premiê, especialistas também lembraram que a pesquisa em si para o desenvolvimento do imunizante foi conduzida pelos cientistas da Universidade de Oxford, uma instituição pública.
Em um relatório recente, o Conselho Estratégico para Indústria do Reino Unido aponta que o envolvimento do setor público foi fundamental para acelerar o desenvolvimento do imunizante.
Para o economista Caetano Penna, pesquisador sênior no Centre for Global Challenges na Universidade de Utrecht, na Holanda, e professor licenciado UFRJ, a declaração de Guedes exprime um “preconceito que é prejudicial ao próprio desenvolvimento da Medicina”.
“Estabelece uma oposição falsa entre o setor privado e o Estado, como se um fosse mais responsável pelas conquistas que o outro. O que se precisa [no contexto da inovação] é de parceria, de sinergia entre duas esferas, entre a estatal e a privada”, pontua o especialista em política científica e tecnológica.
“O que a gente vê quando analisa o financiamento à saúde é que há um papel fortíssimo do Estado na liderança dos investimentos. E não estamos falando aqui de China ou Rússia, mas de países como os Estados Unidos”, completa.
A rede de laboratórios públicos do National Institute of Health (NIH), ele destaca, recebe bilhões de dólares anualmente.
Desde o ano 2000, o orçamento do instituto nunca foi inferior a US$ 30 bilhões, tendo chegado a US$ 41,7 bilhões no ano passado, conforme os dados disponíveis.
De forma geral, cerca de 10% dos recursos vão para os laboratórios do próprio NIH, e o restante é usado para financiar pesquisas em mais de 2,5 mil universidades, escolas de Medicina e centros de excelência.
Além de dar apoio financeiro e institucional ao setor privado no desenvolvimento das inovações no setor de saúde, o setor público também tem dado contribuição importante no âmbito da ciência aplicada, ressalta Penna.
Tem-se a impressão errada de que o financiamento público está majoritariamente restrito à ciência básica – a chamada ciência “pura”, que faz novas descobertas e que demanda um investimento considerado mais arriscado.
“Com a revolução da biotecnologia, os laboratórios públicos fazem hoje todas as etapas de pesquisa”, diz o economista.
Um estudo de 2011 publicado no New England Journal of Medicine que analisava o papel da pesquisa conduzida pelo setor público na descoberta de novos medicamentos e imunizantes nos Estados Unidos chama atenção para o papel central no desenvolvimento de vacinas.
“Praticamente todas as vacinas importantes e inovadoras introduzidas nos últimos 25 anos foram criadas por instituições de pesquisa públicas [PSRI na sigla em inglês, referente a public-sector research institutions]”, diz o texto.
No Brasil, as chances de o país ter uma vacina própria contra a covid-19 vêm de instituições públicas de pesquisa, entre elas Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e Instituto Butantã, que têm tido papel central no combate à pandemia.