Por reparação e bem viver: toda mulher negra tem o seu lugar na marcha
2ª Marcha Nacional das Mulheres Negras ocupou Brasília nesta segunda-feira, 25 de novembro, no Dia Internacional da Eliminação da Violência Contra as Mulheres, e se consolidou como um dos atos mais potentes da história recente.
Logo na chegada, uma mulher negra inflável de 14 metros, monumental, com a mensagem “Mulheres Negras Decidem”, abriu caminhos na Esplanada dos Ministérios. Ergueu-se como símbolo de denúncia e afirmação: um país só será pleno quando a pluralidade se cumprir, a discriminação for dissipada.
Adiante, os movimentos sociais realizaram uma intervenção de forte impacto simbólico: uma bandeira gigante do Brasil, de 30 x 20 metros, estendida ao longo do percurso, exibindo a frase “Ministra Negra no STF” no lugar do tradicional “Ordem e Progresso”.
Desde a primeira edição, em 2015, quando 100 mil mulheres negras marcharam pela capital, entre desafios e conquistas, fica evidente que a dívida histórica segue profunda. Dez anos depois, a 2ª Marcha Nacional das Mulheres Negras revelou os avanços nesse intervalo e as feridas ainda abertas.
Segundo organizações da marcha, 300 mil mulheres negras caminharam pela Esplanada ontem; organismos e movimentos internacionais presentes estimaram cerca de 500 mil pessoas no total, considerando os arredores e delegações de mais de 40 países afro-latinos e afro-caribenhos.
A marcha cresceu, o Brasil cresceu e a ancestralidade cresceu junto.

As caravanas traziam mulheres de quilombos, terreiros, periferias, universidades, sindicatos, movimentos de educação, coletivos urbanos e rurais. A mensagem era clara: mulheres negras movem o Brasil, sustentam o Brasil e têm o direito de governá-lo.
O tema deste ano, “Reparação e Bem Viver”, articulou justiça racial, ampliação de direitos, combate às violências, soberania dos territórios e reconstrução democrática. Em cada canto e faixa, repetia-se a síntese da mobilização: toda mulher negra tem o seu lugar na marcha, na política, na memória, na justiça, no país. A agenda do dia também incluiu uma sessão solene no Congresso Nacional, reforçando que as pautas das mulheres negras pertencem ao centro do debate político.

A presença emblemática de Conceição Evaristo
No centro da marcha, a voz de Conceição Evaristo, presente no ato, fez o Planalto tremer. Sua frase, símbolo das lutas negras, tornou-se o coração pulsante da multidão: “Combinaram de nos matar, mas a gente combinamos de não morrer”.
O tapete de fotos de vítimas da violência nas favelas do Rio de Janeiro, estendido no chão, lembrou que o Brasil segue violando vidas negras, sobretudo as vidas que as mulheres negras geram, criam e enterram.
Mulheres como Daniela Augusto, do Movimento Mães de Maio, ergueram suas vozes contra a política de extermínio que atinge a juventude negra. Uma violência que, como ela salientou, tem raízes no racismo e no machismo estrutural; corpos negros vistos como descartáveis; mulheres negras tratadas como propriedade e alvo privilegiado do feminicídio.

Reivindicações
A marcha também foi território de afirmação quilombola. Centenas de mulheres quilombolas reivindicaram seus direitos territoriais e denunciaram o racismo estrutural que ameaça suas comunidades.
Para Aparecida Mendes, de Conceição das Crioulas, marchar é mostrar ao Brasil e ao mundo que os quilombos cuidam do país: da terra, da cultura, da biodiversidade. E que o Estado deve, portanto, reconhecer sua dívida histórica.
No meio do povo, professoras como Maria Edna Bezerra, da UFAL, lembraram outra dívida: a sub-representação de docentes negras nas universidades públicas, que persiste apesar das políticas de cotas e dos concursos.

Política, Estado e o vazio no STF
A marcha aconteceu poucos dias após o presidente Luiz Inácio Lula da Silva anunciar, no Dia da Consciência Negra, a indicação de Jorge Messias para a vaga deixada por Luís Roberto Barroso no Supremo Tribunal Federal. O gesto reacendeu uma contradição histórica: em 134 anos de Supremo e mais de 170 ministros, nenhuma mulher negra ocupou a Corte.
As mulheres responderam com símbolos contundentes: a bandeira gigante, as faixas e o canto coletivo contestando a falta de representatividade negra no STF e as injustiças seculares que atravessam gerações.
A ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, chegou à marcha ladeada por duas referências: Benedita da Silva, primeira mulher negra a ocupar cadeiras de deputada federal e senadora, e Talíria Petrone. No carro de som, Anielle afirmou que o Ministério representa a ponte entre movimento e Estado. Sua presença evocava Marielle Franco, lembrada o tempo todo com o canto: “Marielle presente, Marielle vive”.
Luyara, filha de Marielle, reforçou que não há democracia possível sem mulheres negras no poder.
A marcha não termina na Esplanada
Ao cair da tarde, afro-brasileiras, afro-latinas e afro-caribenhas formaram um grande círculo. Reafirmaram que a luta por reparação e bem viver não cabe em um dia e tampouco cabe numa Esplanada. Se hoje 300 mil mulheres negras marcharam juntas, é porque antes delas caminharam outras milhares que desafiaram violências, quebraram paradigmas e recusaram o silêncio.
Se hoje esse movimento tem força para mobilizar meio milhão de pessoas em Brasília, é porque existiram as mulheres da ancestralidade, as que ergueram quilombos, seguraram a vida nos braços, desafiaram a lógica colonial, enfrentaram o Estado e abriram espaço para que outras pudessem existir.
Também existiram as que amamentaram o país sem nunca serem reconhecidas como mães da nação. Existiram as que desafiaram o açoite, as que enfrentaram ditaduras, as que resistiram ao feminicídio, ao racismo institucional e ao apagamento acadêmico, político e cultural.
A marcha continua nos quilombos, nas escolas, nos terreiros, nos sindicatos, nas periferias e nos tribunais que ainda não contam com uma mulher negra julgando. Enquanto persistir um mundo desigual, desumano e separatista, haverá mulheres negras mobilizadas nas ruas. A marcha por respeito e dignidade é permanente.

Com informações da Agência Brasil
Por Romênia Mariani





