Prêmio Nobel e acesso a tecnologias na Covid-19: direito coletivo X disputa comercial
Enquanto ecoam visões otimistas no mundo, tentando inferir que, da pandemia ou sindemia, poderemos estar evoluindo de contingência para a convivência da sociedade global com a Covid-19, transformando a doença em uma endemia, a OMS nos alerta que a declaração de uma vitória contra o vírus seria “prematura”, diante do aumento no número de mortes na maioria das regiões do planeta e da desigualdade da cobertura vacinal entre países de alta e de baixa e média renda. Embora, nitidamente, estejamos vivenciando um aumento na cobertura de vacinas e a menor gravidade do quadro com a variante ômicron em vacinados, ainda não chegou o tempo de levantar as restrições que as pressões políticas e comerciais tensionam no mundo inteiro. Após dez semanas da identificação da nova variante, de acordo com a OMS, mais de 90 milhões de casos foram identificados (ver aqui).
Algumas análises baseiam-se no fato de que está havendo aumento no número de casos assintomáticos (chegando à proporção de 40% dos casos), ou de casos menos graves, o que poderia levar à expectativa de que a doença estaria se tornando endêmica e que, até o final de março de 2022, mais da metade da população mundial terá sido infectada. Essas estimativas poderiam indicar que a Covid ainda vai persistir, mas que o caráter pandêmico pode estar chegando ao fim (ver aqui). Manifestamos preocupação quanto a essas afirmações, para nós, de fato precipitadas e, ainda, com as expectativas de que as medidas profiláticas adotadas venham a ter pouco impacto nos números da doença. Pelo contrário, é mais do que necessário continuar com as medidas de proteção preconizadas.
Ao longo dos dois anos de restrições e de contenção, desde a declaração da pandemia, temos nos manifestado procurando a construção de um ambiente de mais justiça social e menos disputa comercial, enfatizando a necessidade de que a Ciência desbanque o negacionismo e a importância de fortalecer nossas instituições públicas de Ciência, Tecnologia e Inovação. E, ainda, que a solidariedade se sobreponha à desigualdade que a pandemia acirrou nos países menos providos de recursos, desigualdade que foi significativa em nosso país e em nossa região.
Temos advogado também que o acesso a medicamentos, vacinas e tecnologias, ainda mais agora, em tempos de Covid, seja considerado como direito humano fundamental (ver aqui e aqui). Assim, temos denunciado o que vem sendo denominado de um apartheid de vacinas, relacionado com as discussões intermináveis no âmbito da OMC (Organização Mundial do Comércio) OMC pelos países desenvolvidos, a partir da proposta formulada por Índia e África do Sul, desde outubro de 2020, no sentido de quebrar as patentes de produtos usados no combate à Covid-19, em que pesem afirmativas ou propostas tentando superar esse dilema.
A propriedade intelectual, efetivamente, se coloca como barreira ao acesso, acarretando preços monopólicos e inacessíveis, impedindo a competição de produtos genéricos, intercambiáveis ou biossimilares e, mesmo, impossibilitando o acesso a essas tecnologias pelas compras antecipadas e mecanismos de captura da produção nos países desenvolvidos. Essas iniciativas acabam bloqueando as possibilidades concretas de multilateralismo, nas opções por acordos comerciais bilaterais que penalizam as iniciativas globais e provocam seu subfinanciamento.
Apesar das manifestações de solidariedade e da Chamada para Ação (Call to Action), que se esperava poder promover o compartilhamento, em nível global, de conhecimento, propriedade intelectual e dados, essa solidariedade sucumbiu, desde a declaração da pandemia, ante as demandas de propriedade intelectual que todos os produtores de insumos relacionados à Covid colocaram na frente de suas agendas. É claro que diversas iniciativas de transferência de tecnologia vêm sendo implementadas para expandir a produção de medicamentos ou vacinas, mas nunca na dimensão necessária para suprir a demanda de uma população mundial estimada em 7,9 bilhões de habitantes.
Entretanto, nem tudo é monopólio; nem tudo favorece apenas interesses lucrativos; nem tudo enriquece ainda mais os mais ricos no mundo e empobrece os mais pobres dos pobres; nem tudo atropela os direitos coletivos em nome de interesses comerciais. Dois cientistas renomados, Peter Hotez e Maria Elena Bottazzi, anunciaram na última semana de 2021, o desenvolvimento de uma vacina utilizando tecnologia conhecida há décadas e replicável, fácil de ser reproduzida e colocada por eles em disponibilidade global sem qualquer proteção patentária. Em outras palavras, podemos ter uma vacina de acesso e reprodução universal, invertendo radicalmente a lógica do monopólio e da não concorrência que os tratados de propriedade intelectual ainda asseguram.
Milhões de doses já foram encomendadas, e a expectativa é que a vacina, chamada Corbevax, chegue a mais pessoas nos países de baixa e média renda do que as doses doadas pelos países do G7 (ver aqui). Esse é o mundo que Indira Gandhi sonhava em 1981, há mais de 40 anos, quando abriu uma Assembleia Mundial de Saúde com as palavras: “Minha ideia de um mundo mais ordenado seria aquela em que as descobertas médicas fossem livres de patentes e não houvesse lucro com a vida ou com a morte”.
Esse também é o mundo pelo qual nos empenhamos e lutamos. Vimos com atenção, não surpresos, que a congressista Lizzie Fletcher, do Partido Democrata dos EUA, Texas, encaminhou moção nomeando esses dois pesquisadores para o Prêmio Nobel da Paz 2022. Além de representar para eles uma honraria o fato de terem sido nominados, para todos aqueles que acompanhamos essa luta entre interesses do comércio e saúde pública, é o reconhecimento de que estamos no caminho certo, na luta por melhores condições de saúde e de vida para nossas populações e pelo acesso a medicamentos e tecnologias como direito humano fundamental, estreitamente ligado ao direito à saúde que nossa Constituição assegura.
Para além das transferências de tecnologia com escopo geográfico limitado; para além da manutenção dos monopólios dos atuais detentores de tecnologia e de patentes, estamos diante de uma iniciativa corajosa e comprometida com o acesso universal, com fatos concretos. Consideramos possível perceber que o atual sistema de propriedade intelectual faliu no que se refere a promover o acesso às tecnologias como um direito.
E essa iniciativa ecoa no Brasil. Viva o SUS, em defesa da VIDA!
* Jorge Bermudez, pesquisador em Saúde Pública da Ensp/Fiocruz, pesquisador parceiro do CEE-Fiocruz; Luana Bermudez, assessora da Presidência da Fiocruz, doutoranda da Ensp/Fiocruz e membro da Universidades Aliadas por Medicamentos Essenciais (Uaem Brasil).