Presença militar no governo Bolsonaro é corporativista e sem projeto, diz pesquisador

Cientista político e professor da FESPSP, William Nozaki analisa militarização da administração pública no Brasil

Mais de 6,3 mil militares brasileiros ocupam cargos civis em diferentes áreas, segundo levantamento apresentado pelo estudo A Militarização da Administração Pública no Brasil: Projeto de Nação ou Projeto de Poder?, de autoria de William Nozaki.

Em entrevista ao Brasil de Fato, o cientista político e professor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) traça um detalhado panorama da atuação militar ao longo das últimas décadas e critica o “apetite corporativista” das Forças Armadas.

“A busca por aumentos do soldo, por novas bonificações, gratificações, benefícios e privilégios é o que tem orientado esse volume de militares ocupando cargos de civis no último período”, afirma Nozaki.

O fato de estarem presentes em ministérios, empresas estatais e autarquias não significa que exista algum projeto para além das próprias regalias obtidas pelos próprios militares.

“A linha geral é a ocupação do Estado. Precisamos olhar para essa dimensão desconstruindo o mito de que os militares sentam em uma mesa e organizam tudo hierarquicamente, de maneira estratégica. O que as crises nos mostram é que isso não acontece. É uma ocupação de espaço desprovida de projeto”, explica o cientista político.

O artigo integra um caderno sobre a Reforma Administrativa produzido pelo Fórum Nacional das Carreiras Públicas de Estado (Fonacate) e pode ser acessado aqui.

Leia a entrevista na íntegra:

Brasil de Fato:  A afirmação inicial do estudo é a de que os militares estiveram presentes em momentos decisivos da história do Brasil. Qual tem sido o papel deles nessa história? Quais são as características gerais que os unem e como classificar sua atuação?

William Nozaki: A primeira observação a se fazer é que os militares não conformam um grupo homogêneo. Sempre que nos referimos aos militares, tratamos como se fosse um bloco monolítico, mas eles se diferenciam a partir de uma série de características. A primeira delas é exatamente a diferença entre as Armas.

Existem especificidades que recaem sobre o Exército, outras sobre a Marinha e outras sobre a Aeronáutica. É preciso levá-las em consideração quando fazemos essa leitura. Além disso, os militares não devem ser interpretados cindidos em bifurcações políticas muito esquemáticas. Muitas vezes, se vê debates tentando separá-los entre nacionalistas e entreguistas.

Do mesmo modo, não é a forma mais adequada tratá-los a partir das dualidades econômicas, simplificadoras, que tentam distinguir entre desenvolvimentistas e liberais.

Sobretudo no período da Nova República, o que tem se mostrado mais adequado é analisar as diferenças de visão de mundo entre os militares da ativa e os da reserva. No período mais recente, temos generais de tropas que participaram de missões fora do país nos últimos anos e outros que se concentraram nas atividades de Estado maior. Há de se considerar, inclusive, a presença de matrizes ideológicas no interior das Forças Armadas.

Esse conjunto de premissas nos leva à conclusão de que, a partir desses elementos, não necessariamente os militares dispõem de uma estratégia prévia, organizada, para a construção de um projeto de nação. O que se mostra mais contundente é exatamente uma tática organizada corporativamente de ocupação de espaço no interior da estrutura do Estado.

Esse estudo tem como hipótese geral responder o sentido da militarização da administração pública federal a partir de três elementos relevantes. O primeiro é o de natureza geopolítica, que diz respeito ao alinhamento automático, sobretudo do Exército Brasileiro, aos Estados Unidos.

O segundo elemento é de natureza ideológica. De fato, existe inoculada nas Forças Armadas uma visão de mundo que muitas vezes adota os valores do liberal conservadorismo presente na sociedade. Esses valores aparecem de formas particulares dentro das Forças Armadas.

E o terceiro, e mais importante, é o corporativo. A busca por aumentos do soldo, por novas bonificações, gratificações, benefícios e privilégios a partir da sobreposição da carreira militar com a ocupação de cargos de confiança estratégicos para a estrutura do Estado. É o que explica que esse volume de militares ocupando cargos de civis no último período.

Além disso, um ponto importante para se destacar é que, para poder enxergar todos os elementos refletidos na nossa conjuntura, há de se responder quem são os militares que ocupam o governo hoje.

De maneira esquemática, ainda que simplificando mas para tornar mais inteligível, temos um processo da seguinte ordem: quando olhamos para o alto generalato, e me refiro especificamente ao Exército porque é, das três Armas, a que mais ocupa o governo federal hoje, encontramos um contingente de generais formados por volta da década de 70.

Portanto, muito deles formados na Academia Militar das Agulhas Negras (Aman), inclusive contemporâneos do próprio Bolsonaro. Esse período, na Aman, foi marcado pela influência de uma visão de mundo que, naquele momento, se materializava na figura de Sylvio Frota.

Ele foi um general ministro da Guerra no final da ditadura militar e um dos grandes oposicionistas dentro do governo [Ernesto] Geisel à abertura democrática. Representava aquela ala que nunca aceitou a pactuação que levou adiante a transição democrática no Brasil – e que, portanto, sempre preencheu o papel das Forças Armadas como um papel de tutela sobre a República.

Essa é uma influência muito presente nos generais de hoje. Talvez o exemplo mais emblemático seja o do próprio general [Augusto] Heleno, ajudante de ordens do Sylvio Frota.

Há outro contingente dessa mesma geração, que já foi formado pelos ares e influencia de uma segunda figura importante para essa turma, que é o General Leônidas Pires, ministro do Exército no governo [José] Sarney pelo processo de construção da Constituinte de 1988.

Ao contrário do Sylvio Frota, ele tinha uma adesão maior à abertura democrática, mas também compreendia o papel das Forças Armadas como poder moderador. Prova disso é que, no bojo do próprio debate da Constituição de 1988, quando se fez a primeira redação do artigo 142, que é o artigo que trata das Forças Armadas, as primeiras propostas sinalizam que elas deveriam ter como papel principal a proteção das fronteiras e segurança do Brasil contra inimigos externos.

Não havia no texto a definição da proteção e segurança interna, por meio da garantia da Lei e da Ordem, que depois se consolidou no texto. Esse processo acontece porque, em meio ao debate sobre a extensão ou não do mandato do Sarney, as principais figuras do MDB na época entraram em conflitos internos.

Nessa ocasião, o general Leônidas interveio sobre o processo de redação da Constituição, e como resultado disso se marcou a presença da Garantia da Lei e da Ordem como uma das características das Forças Armadas. Abriu-se então essa possibilidade de interpretação, de tratar as Armas como poder moderador.

Faço essa digressão porque todos aqueles que entendem o papel das Forças Armadas enquanto poder de tutela, quanto os que entendem com o papel de poder moderador, estão presentes hoje no governo Bolsonaro. Isso significa que a cultura democrática majoritária dos militares que ocupam o governo sofre de um déficit democrático e de um ressentimento em relação ao processo da abertura democrática, que acaba marcando a atuação deles no governo.

Quando se trata do médio oficialato, se encontra outra situação. Nesse caso, há um contingente de soldados e outras figuras dentro da hierarquia do Exército que se formaram na década de 90. Portanto, foram marcados, nesse caso, por uma presença muito intensa do discurso neoliberal. Naquele período, as Forças Armadas realizaram muitos convênios e parcerias com instituições de ensino de viés pró-mercado.

Foi exatamente nesse momento que se começou a cultivar a ideia de que os militares teriam uma superioridade intelectual, moral, de gestão, que abriu o apetite para que paulatinamente fossem desejando ocupar mais espaços no governo, até que chegássemos a essa situação atual, de uma ocupação muito intensa.

A partir desse perfil, como disse antes, o que move os militares são os três elementos que dizem respeito ao alinhamento automático aos Estados Unidos. Essa visão de mundo que não é completamente democrática e que, ao mesmo tempo, tem a presença de características liberais e conservadoras muito intensas, e fundamentalmente esse apetite corporativista por ocupar um número expressivo de cargos dentro da administração pública federal.

É possível comparar a atuação e presença dos militares nos governos Lula e Dilma com o cenário pós-impeachment? Como chegamos ao que vivemos hoje?

Quando olhamos para a curva histórica da ocupação dos militares do governo federal, há dois elementos que precisam ser destacados: o primeiro é o ciclo da nova República por essa transição falhada, que acabei de descrever, com uma trajetória contínua de aumento de militares nos governos civis.

Esse é um fenômeno não é só do governo Bolsonaro, mas nos últimos anos isso assume uma ascensão exponencial que faz com que a presença de militares no governo, quando comparado aos governos da Nova República e até mesmo aos governos da ditadura militar, seja um ponto fora da curva.

Temos mais de 6,3 mil militares ocupando cargos da administração direta do governo federal. Quando comparamos os números de militares de 2016 com o número de militares de 2020, há uma escalada de mais de 108%.

Essa trajetória, de maneira esquemática, começa no início do governo Collor e depois governo Fernando Henrique Cardoso, com um conjunto de mudanças que passa pela extinção do Estado Maior das Forças Armadas e pela criação do Ministério da Defesa, ainda no governo FHC.

Por conta das políticas liberais, esse novo Ministério da Defesa passou a sofrer uma série de restrições orçamentárias, sucateamento de equipamentos, desestruturação de suprimentos militares. Além disso, as missões de defesa foram progressivamente substituídas por atividades mais policiais do que de natureza militar.

Essa ausência de projetos estratégicos acabou bloqueando o desenvolvimento das Forças Armadas no sentido mais forte da palavra. Por consequência, isso acabou reiterando aquela lógica territorial que historicamente faz com que as Forças Armadas entendam que sua principal tarefa é se ocupar da segurança interna, mais do que da defesa externa do país.

Como havia dito antes, é exatamente neste período que começam a se intensificar as relações das escolas militares com as escolas e instituições de ensino privado de natureza neoliberal ou pró-mercado. Essas são algumas características do governo FHC.

Elaboração: William Nozaki

Quando vamos para os dois mandatos do ex-presidente Lula, já notamos um restabelecimento da política de defesa nacional, um momento em que se desenha a estratégia nacional de defesa, em que se produz a política nacional de defesa, que se constrói o Livro Branco da Defesa Nacional, referência e marco para a construção das nossas estratégias.

É o momento em que se estabelecem as parcerias estratégicas com a ONU por meio das Missões de Paz. É quando se iniciam os primeiros projetos e contratos, por exemplo, de grandes iniciativas como a construção do Submarino com Propulsão Nuclear da Marinha e o projeto dos caças supersônicos Gripen da Aeronáutica junto com a Suécia.

Muitas vezes nos debates no campo progressistas surge a pergunta: se o governo Lula fez tanto pelos militares e pelas Forças Armadas, por que esse ressentimento, essa oposição?

Voltamos à premissa da minha análise de não tratarmos as Forças Armadas de maneira homogênea. Se observamos esse projetos, o submarino com propulsão nuclear foi uma parceria da Marinha, com a França. O dos caças Gripen foi uma parceria da Aeronáutica com a Suécia.

O Exército foi justamente o que teve menos grandes projetos estratégicos nessa monta. E, nessas parcerias, também pela política externa de defesa da soberania brasileira, o alinhamento automático com os Estados Unidos não estava dado.

Criou-se um ambiente que facilitou a aproximação entre o Exército, especificamente, e os Estados Unidos, o que acaba desaguando nesse alinhamento que vimos com o governo Bolsonaro.

Agora, tudo isso se complexifica quando avançamos em direção ao governo Dilma. A própria biografia da presidenta como resistente da ditadura militar já provoca desconfortos entre uma parte dos generais, sobretudo da reserva. É inequívoco que a instalação da Comissão Nacional da Verdade provocou uma turbulência na relação entre o governo e os militares, que nunca aceitaram completamente essa política.

Além de, nesse período, termos alguns episódios que podem parecer secundários do ponto de vista da conjuntura, mas que têm um peso muito significativo para os militares. Por exemplo, quando o Clube Militar se posiciona contra a Comissão Nacional da Verdade e a proposta de revisão da Lei da Anistia, a Dilma imediatamente desautoriza uma nota publicada e intervém sobre o Clube Militar, pede a demissão de generais.

Isso começa a esgarçar a relação da presidenta com o Exército e, na esteira, com o conjunto das Forças Armadas. Além disso, outra iniciativa que é pouco lembrada mas é muito importante: houve naquele período um começo de tratativas para que se institucionalizasse um alto-comando unificado das Forças Armadas com a presença de civis. Isso, os generais não aceitaram.

Por fim, nesse período, houve o uso policial do Exército, grandes eventos, Copa do Mundo, Olímpiadas e outros. Isso também foi alimentando esse sentimento entre eles de fazer parte da vida decisória do país.

Até que chegamos no processo turbulento dos últimos anos, em que os militares ou uma parte dos generais se posicionam, tanto no impeachment de Dilma, quanto na prisão de Lula, culminando naquele tweet do General Villas Boas e de uma própria declaração de Bolsonaro que o agradece por ter chegado à presidência sem esclarecer ao certo porque está fazendo aquele agradecimento.

Antes, no governo [Michel] Temer, se remonta o Gabinete de Segurança Institucional, uma estrutura que não fazia mais parte da Nova República, e se reforça o uso do dispositivo da GLO, fortalecendo o apetite para participar da administração pública nacional.

E então chegamos nesse quadro de um governo que não é militar mas certamente é militarizado, o governo Bolsonaro.

Partindo desse ponto, de que é uma estratégia corporativista, quais espaços os militares têm ocupado? Essa ocupação tão capilarizada é reversível?

Essa trajetória dos militares é uma estratégia que vai crescendo em diversos governos da Nova República até chegarmos no número atual de 6.357 militares, só na estrutura da administração direta do governo federal. Esses dados são difíceis de serem coligidos, então imagino que esse número seja ainda maior. Sobretudo quando desdobramos para autarquias, empresas estatais, segundos e terceiros escalões do governo.

Esse número exorbitante revela que eles estão extravasando as áreas onde estabelecem relações tradicionalmente, como a área de defesa e infraestrutura, e ocupando o conjunto do governo.

Na Esplanada dos Ministérios, os militares são praticamente metade dos conjuntos dos ministros hoje. Quando descemos para a análise do segundo e dos terceiros escalões, notamos uma presença muito intensa, sobretudo nas áreas ligadas ao Orçamento, Logística, Planejamento. São áreas que movimentam contratos muito significativos.

Por isso, eles têm um papel estratégico nas diversas pastas em que estão alocados. Um dos ministérios com presença intensa dos militares é exatamente o de Minas e Energia. O gabinete da pasta, hoje, tem 22 militares, tanto da ativa quanto da reserva.

Se estendo essa análise para empresas estatais ligadas ao Ministério, vou encontrar pelo menos mais 10 militares no sistema Eletrobrás, e aí destaco a EletroNuclear, que é um espaço que eles tradicionalmente ocupam, e também três militares na direção da Petrobras atualmente.

Elaboração: William Nozaki

Além do Ministério de Minas e Energia, também chama atenção na análise que fizemos o grau de militarização do Ministério da Saúde, que se intensifica no período em que o general [Eduardo] Pazuello foi ministro.

Não sei agora, com a chegada do [ministro Marcelo] Queiroga, como fica a situação. Sei que aconteceram trocas, mas não tenho notícias de que tenha diminuído significativamente o número de militares. Eles estão intensamente presente nas empresas estatais, naquelas ligadas ao complexo industrial da Defesa, como Imbel, Amazul, mas também estão, como disse, no setor de transportes e de infraestrutura, de maneira bastante significativa.

Também merece destaque o fato de que, muitas vezes, quando os militares estão a frente das empresas estatais, nem sempre defendem o discurso neoliberal de privatização, que muitas vezes aparece no discurso público.

É curioso. Eles defendem privatização para as empresas comandadas por civis, mas uma empresa ligada ao Ministério da Defesa, como a Emgepron [Empresa Gerencial de Projetos Navais], sofreu uma capitalização de mais de R$7 bilhões no último ano. Eles também reorganizaram a política de distribuição de gratificações para participação de militares em reuniões de conselhos de administração de empresas estatais.

Por isso, o argumento do corporativismo se reforça. Quando precisam defender seus privilégios e o aumento de seus ganhos, eles não são neoliberais. Quando precisam se legitimar diante do bloco que ocupa o poder, eles renunciam ao discurso neoliberal. Isso vai sendo modulado à luz dos interesses corporativos postos na conjuntura.

O artigo detalha diferenças remuneratórias importantes quando se trata da comparação entre militares e civis, que foram intensificadas com a reforma do “sistema de proteção social” dos militares. Quais são as principais?

Quando fazemos essa comparação entre a carreira militar e outras carreiras civis do serviço público, notamos alguns privilégios na maneira com que os militares participam desse processo.

O primeiro deles é que, no último período, tivemos um aumento de soldo acima da inflação. Não aconteceu a mesma coisa com o salário mínimo. Os salários dos militares aumentam, e inclusive no alto escalão teve a discussão recente sobre aumento dos ganhos de ministros e militares, ultrapassando o teto dos gastos estabelecidos pelos liberais conservadores que apoiam.

A mesma coisa vale quando observamos os efeitos da reforma trabalhista e previdenciária. O conjunto de desmontes que foram feitos no mercado de trabalho na CLT não impactou os militares. Pelo contrário, eles tiveram benefícios e reajustes de remuneração para o período em que estão estudando de maneira significativa no governo Bolsonaro.

Na reforma previdenciária, não só não foram atingidos, como foram beneficiados. Eles têm um teto de idade de aposentadoria menor que dos civis e desfrutam de privilégios. Por exemplo, um jovem militar, quando está em período de estudante na escola militar, já é considerado um servidor público. O tempo de serviço já começa a contar, além do salário que está recebendo.

Os servidores civis não têm bolsa garantida para estudar e não têm o tempo de estudo contabilizado para o conjunto da aposentadoria. Além disso, houve uma série de outros benefícios, bonificações e gratificações que foram incorporados e incrementados, fazendo com que os militares tenham ganhos bastante significativos.

Apesar da crise econômica, sanitária, pela qual passa o país, a situação média dos militares é melhor do que a dos civis, inclusive do ponto de vista da saúde. A divisão de pessoal e de recursos humanos do Exército organizou um grande processo de vacinação e da defesa do uso de EPIs. Isso vai mostrando como o tratamento dado aos militares é diferente do tratamento dado aos civis.

Por mais que os militares tenham ocupado esses espaços paulatinamente, neste momento estão no front. Não há uma preocupação de como a população irá receber essa movimentação, principalmente em meio a tantos privilégios, e apoiando um governo tão criticado?

Até muito pouco tempo, os militares não se preocuparam com como esse conjunto de privilégios e benefícios apareceria aos olhos da população, até porque se trata de uma das instituições que desfruta de maior credibilidade e prestígio, de acordo com a opinião pública.

No entanto, como o grau de presença dos militares no governo Bolsonaro é muito intenso e muito orgânico, eles passaram a compor e ter presença em todas as grandes crises que o Brasil atravessou no último período.

Passamos, por exemplo, por um apagão na região do Amapá. O ministro de Minas e Energia é um almirante.

Nós estamos passando por um aprofundamento severo da pandemia, do contágio, aumento do número de mortes, dificuldades com insumos, com vacinas e equipamentos. O caso do Pazuello talvez seja o mais emblemático de como essa ideia de que o militar tem uma superioridade moral, intelectual e capacidade de gestão é um mito que precisa ser desmontado.

Elaboração: William Nozaki

É evidente que há militares com imensa capacidade de liderança e de gestão, que devem participar da administração pública, mas nas áreas ligadas ao complexo industrial da Defesa. Não daquelas áreas que são e devem ser responsabilidade dos civis.

Hoje vivemos crises de múltiplas naturezas, em diversas áreas com presença de militares, sem conseguir dar respostas. Tudo isso combinado a algumas notícias que começaram a pulular na imprensa no último período sobre compras governamentais feitas pelos militares de artigos pouco ortodoxos, como cerveja, picanha e leite condensado.

Isso tudo cria um clima de descredibilização, e isso tudo vai criando um sentimento que já se revela nas pesquisas de opinião. Há uma queda na credibilidade das Forças Armadas.

Por isso, inclusive, passados dois anos do governo Bolsonaro, o grau de coesão entre as Forças Armadas é menor hoje do que era no início do governo. É bom que se diga que também há generais, almirantes e brigadeiros desconfortáveis com essa situação. Embora não sejam a maioria, eles existem.

Esse desgaste, tanto interno quanto externo, é suficiente para ameaçar esse projeto corporativista?

O problema do avanço dos interesses corporativistas é que eles tocam em um ponto que dizem respeito a interesses materiais, econômicos e pessoais. É muito difícil recolher alguns privilégios e alguns ganhos após as pessoas acessá-los. Acho que será uma situação difícil.

É um desafio, inclusive, para o Brasil. Como vai se lidar com essa situação em eventuais próximos governos depois de Bolsonaro? Em governos de esquerda, progressistas, eu não acredito que esse mesmo contingente de militares voltará para o quartel de maneira natural e espontânea. São muitos salários aumentados, e é difícil lidar com isso.

Elaboração: William Nozaki

O orçamento da Defesa também tem sido maior do que em outros períodos?

Sim. Estava destacando os elementos relacionados aos ganhos corporativistas, mas também há ganhos institucionais relevantes da política de Defesa como um todo. O orçamento da pasta é o maior da história, nunca foi tão elevado. Mesmo em um momento de pandemia com a necessidade de recursos extraordinários para a área da saúde como esse que vivemos.

Além disso, o Ministério da Defesa fechou acordos estratégicos de intercâmbio de tecnologias de uso de área militar com os Estados Unidos, que envolve recursos significativos. Claro, todos orientados por essa política contestável do alinhamento automático, mas que mobilizam recursos, contratos.

Há uma série de outros elementos que fortalecem o Ministério da Defesa, agora com a hegemonia do Exército, não mais com uma força da Marinha e da Aeronáutica, como havia no governo Lula.

Diz muito sobre as prioridades da gestão…

Exatamente. É um governo quem a partir dessa perspectiva, secundariza a importância do papel do Estado na construção de políticas públicas e reforça a leitura do Estado como a instituição que tem monopólio do uso da força. Monopólio, esse, que conta com as Forças Armadas.

E, no caso da base de apoio do governo, também conta com apoio das policias militares estaduais, além das milícias.

Elaboração: William Nozaki

A perspectiva é que essa tutela militar se mantenha?

Isso é uma questão em aberto, que precisamos acompanhar no próximo período. Essa ligeira queda de popularidade das Forças Armadas, combinada com a CPI da Covid, pressões sobre o Pazuello e a perda da coesão entre as Forças Armadas acenderam alguns sinais amarelos. Tenho a impressão de que essa discussão está sendo feita de outra forma hoje.

Mas isso tudo precisa ser monitorado, acompanhado, daqui pra frente. Isso só revela a importância desse tema e a necessidade de nós, que somos da sociedade civil e do campo progressista, encararmos esse problema como muitos outros que precisam ser enfrentados para a reconstrução do Brasil.

Nós, civis, não podemos ter tantos dedos, melindres e medo de tratar da questão militar. Isso faz parte do nosso amadurecimento democrático, e isso terá que ser enfrentado daqui para diante.

A tese de que os militares criaram ou tentam criar de fato um Estado paralelo é um exagero?

Como estamos em um momento em que esse avanço foi muito intenso e ao mesmo tempo percebemos, em muitas das áreas que estão presentes, que os resultados de gestão não são os melhores, a minha impressão é que atribuímos um grau de coordenação a esse processo que é maior do que realmente impõe.

Como se trata de um movimento corporativista, a característica é que todos seguem uma linha geral. E a linha geral é a ocupação do Estado. Precisamos olhar para essa dimensão da questão militar construindo menos o mito de que os militares sentam em uma mesa e organizam tudo hierarquicamente de maneira estratégica. O que as crises nos mostram é que isso não acontece. É uma ocupação de espaço desprovida de projeto.

Há uma grande preocupação com a ala ideológica e antidemocrática por parte da sociedade civil. Esse corporativismo está acima da ala ideológica ou, em meio a um acirramento, por exemplo, das eleições de 2022, ele pode crescer?

Os desdobramentos da CPI da Covid vão dizer muito sobre esse processo. Temos alguns generais que apoiam o bolsonarismo de maneira orgânica hoje, como Braga Netto, Augusto Heleno e Eduardo Ramos, que são bolsonaristas orgânicos, mas há uma série de desconfortos que vão se expressando.

O mais evidente deles é o do general Santos Cruz, mas também o general Pujol, o próprio general Paulo Chagas e outros coronéis. O Almirante Barra Torres [chefe da Anvisa], no depoimento da CPI, demonstrou um grau de organicidade menor ao bolsonarismo.

É um quadro em mudança, em transformação, que precisa ser observado. A expansão disso vai depender da capacidade de reação do governo Bolsonaro para enfrentar os próximos passos da crise sanitária, mas sabendo que isso deixa um desconforto constitutivo para as Forças Armadas.

Os generais da reserva e os que estão em cargos de médio-baixo escalão devem permanecer como estão, seguindo a toada do corporativismo?

A minha impressão é que sim. Estão em compasso de espera. Nem a ocupação vai se acelerar, nem vai sofrer um recuo nesse momento.

Brasil de Fato

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