Professor à distância: entenda o que esperar dos docentes formados por EaD
Modalidade responde por mais de 80% das matrículas em licenciaturas no país, segundo o Censo do Ensino Superior. O curso de Pedagogia é o mais buscado
Thais Borges
Imagine os instrumentos de uma professora ou um professor. Lousa, projetor de slides, livros didáticos, giz ou pincel atômico. Para muita gente, pensar no ofício dos educadores significa lembrar automaticamente de uma sala de aula. No entanto, quando se trata da formação dos próprios professores – em especial, da educação básica – essa imagem tradicional de uma sala de aula física, com encontros presenciais, está cada vez mais distante da realidade.
Numa busca rápida em um site que reúne descontos em universidades privadas, é como escolher por opções de um cardápio. Pela bagatela de R$ 59,90 por mês, é possível cursar Pedagogia na modalidade educação à distância (EaD) em uma universidade com sede em outro estado. Se aquela instituição não for do agrado, existem outras ofertas para a mesma graduação, todas EaD e com mensalidades variando entre R$ 90 e R$ 150.
A mesma coisa acontece com os demais cursos de licenciatura – ou seja, o tipo de graduação que é específico para quem se prepara para a docência. Ainda que o futuro ou a futura estudante queira um curso à distância de uma universidade do próprio estado, é possível escolher em instituições renomadas da Bahia por mensalidades que custam menos do que R$ 100.
Há, ainda, outra alternativa: para quem vive em algumas dezenas de municípios do interior, é possível cursar uma licenciatura EaD pela chamada Universidade Aberta do Brasil (UAB), uma iniciativa do governo federal que permite que universidades públicas ofertem cursos — a maioria de licenciatura — à distância em polos diferentes das cidades onde têm campi.
Foi a partir deste cenário que a formação de professores por cursos à distância atingiu um número nunca antes visto no Brasil: ao menos 81% das pessoas que se matricularam em licenciaturas no ano passado escolheram a modalidade EaD. Quando se observam apenas as instituições particulares, que são maioria no estado e no país, esse percentual chega a 94% dos ingressos. Os dados fazem parte do último Censo do Ensino Superior, divulgado pelo Ministério da Educação (MEC) este mês.
“Nós já vínhamos monitorando esse avanço das EADs, porque houve uma explosão, especialmente, após a pandemia”, diz o presidente do Sindicato dos Professores no Estado da Bahia (Sinpro-BA), Allysson Mustafá. Para ele, esse crescimento está diretamente ligado a fatores financeiros. “O custo para manutenção de um curso à distância é muito menor, se contar bibliotecas, laboratórios e funcionários. Por uma esperteza mercadológica, isso acabou ganhando muito impulso com mensalidades baratas”, explica.
Assim, esse crescimento fez acender um alerta entre especialistas, gestores e o próprio MEC sobre o que esperar desses futuros profissionais. Enquanto há quem seja taxativo quanto à qualidade e eventuais lacunas da formação à distância, existem também correntes que defendem que essas graduações têm a mesma base dos cursos presenciais e que os profissionais podem ser tão competentes quanto os outros.
Dentro da modalidade EaD, há diferentes modelos. Há desde aqueles em que o estudante não tem momentos presenciais até os que há encontros nos polos, com acompanhamento de tutores ou mesmo dos professores formadores. Essas diferenças podem ser decisivas, segundo a pesquisadora Marlene Bíscolo Parrilla, que defendeu a tese de doutorado sobre docentes formados na educação à distância na Universidade de São Paulo (USP), este ano.
“A gente precisa ter um olhar muito atento para essa formação. A maioria dos professores que estão entrando na rede pública vem de cursos da modalidade EaD. Então, se faz necessária uma reflexão para a formação de crianças e adolescentes”, afirma ela, que fez um trabalho de campo com docentes da rede pública de São José dos Campos (SP).
Enade
O problema é que muitas dessas licenciaturas não têm atingido parâmetros mínimos para assegurar a qualidade da formação – e, posteriormente, do ensino de crianças e adolescentes. De acordo com um levantamento feito pelo Todos pela Educação a partir de análises do Censo da Educação Superior e do Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade), nove de 15 licenciaturas tiveram redução na nota bruta geral do último Enade.
Além disso, aumentou também a distância entre as notas de concludentes das modalidades presencial e à distância. Entre as maiores quedas estão Educação Física e Pedagogia, cujas médias caíram de 43,43 em 2014 para 31,28 em 2021 e de 45,45 para 34,88 no mesmo período, respectivamente.
Na avaliação da presidente-executiva da entidade, Priscila Cruz, a modalidade EaD não é capaz de preparar professores para uma profissão considerada complexa pelos vínculos em sala. “Não tem como você preparar um professor EaD para depois ele atuar em sala de aula e ter que conviver com os alunos. Não faz o menor sentido a gente ter essa precarização, essa formação absolutamente insuficiente para professores por EAD e esperar que depois esse professor vai ser capaz de dar aulas incríveis”, enfatiza.
A outra consequência, segundo ela, é que, uma vez que os docentes não conseguiriam entregar tudo que precisam, outras políticas seriam prejudicadas. Assim, políticas educacionais já em andamento no país, como para alfabetização e conectividade, teriam o potencial reduzido devido à formação dos professores.
Nesse cenário, Priscila afirma que a formação dos professores deve ser colocada como prioridade pelo MEC. Caberia ao governo federal, portanto, melhorar a regulação desses cursos. “Não pode deixar essa farra do EAD acontecer de forma completamente solta. Tem que ter uma avaliação desses cursos e descredenciar. A gente não pode permitir que cursos continuem a formar futuros professores sem ter um mínimo de qualidade”, acrescenta.
Para ela, a valorização da carreira docente está diretamente associada à formação, incluindo tempos adequados para estágio e articulação de teoria e prática. “Um país que forma professores por EAD é um país que está dizendo para sua população que está expressando uma desvalorização da carreira docente nenhuma carreira de verdade valorizada é tem a sua formação por EAD a distância”.
Na última quinta-feira (19), o MEC deu início à consulta pública sobre cursos de graduação EaD, que ficará aberta até 20 de novembro. No mês passado, em um evento, o ministro da Educação, Camilo Santana, chegou a declarar que era preciso garantir que os cursos de licenciatura fossem presenciais. “Garantir uma educação de qualidade para as nossas crianças depende da qualidade do professor que está em sala de aula”, disse, na ocasião.
Públicas
Apesar das críticas do ministro, o próprio MEC fomenta a formação de professores na modalidade EaD através da chamada Universidade Aberta do Brasil (UAB). O programa é um dos mais consolidados do setor e tem parcerias com as principais universidades públicas de cada estado, incluindo a Universidade Federal da Bahia (Ufba) e a Universidade do Estado da Bahia (Uneb).
A situação desses cursos, contudo, é diferente de muitos cursos de instituições privadas. A própria fundação da UAB tem como bases a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, sancionada em 1996. Passou a ser exigido que profissionais que já atuassem na área tivessem licenciatura na área em que trabalham. Até então, muitos docentes da educação básica tinham apenas o nível médio do tipo magistério.
Para atender esse contingente, uma das políticas públicas implementadas foi justamente a UAB, formalizada em 2006. Ao mesmo tempo, porém, a legislação que permitia a expansão do ensino superior EaD foi sendo afrouxada. Em 2017, por exemplo, o MEC tornou possível o credenciamento de instituições de ensino para EaD sem que elas tivessem cursos presenciais. Na mesma portaria, o governo federal possibilitou a ampliação de mais polos de educação à distância para as faculdades já credenciadas.
“Chegamos a um momento em que grandes grupos empresariais passaram a adquirir instituições de ensino superior. A gente percebe uma mercantilização no Brasil inteiro e essas organizações vêm com objetivo de lucro”, diz a coordenadora da UAB na Ufba, Marcia Rangel.
Para ela, o crescimento da modalidade no país está diretamente associado à permissividade no marco regulatório ao longo dos últimos anos. “Houve uma plataformização de várias soluções educacionais sem a devida formação de professores para isso, sem metodologias adequadas e sem nenhuma fiscalização que fizesse cumprir as métricas do projeto pedagógico dos cursos”, aponta.
Na Ufba e em outras universidades públicas, porém, ela diz que é possível garantir que o projeto pedagógico seja cumprido, inclusive com os estágios obrigatórios e as atividades complementares. Atualmente, há 59 mil estudantes da UAB em todos os polos do estado. Só a Ufba já formou mais de 3,9 mil, desde o início. “Esses alunos (da UAB) entraram por demanda do próprio governo para assegurar que, nos rincões, no interior, na educação do campo, as pessoas também pudessem ter acesso ao nível superior”, diz.
Além disso, a coordenadora ressalta que, nas universidades federais e estaduais, a fiscalização é permanente. “Se eu matricular 150 alunos e, em seis meses eles não frequentarem o ambiente virtual, eles automaticamente serão desligados do curso. A gente não fica agregando números. Mas a gente acompanha algumas universidades (privadas) que praticamente alugavam CPF para ter um número maior e receber mais alunos”, completa Marcia.
Outra das instituições baianas que participa da UAB, a Uneb tem atualmente 14 licenciaturas à distância, entre cursos próprios e cursos do programa, divididos em 51 polos presenciais. Desde 2009, quando teve início, a demanda por novos cursos só cresce, segundo a coordenadora geral da unidade EaD da instituição, Francine Mendes. “A pandemia ajudou, mas esse crescimento já vinha no decorrer do tempo, da própria rotina da área”.
Segundo ela, a grade curricular das licenciaturas da Uneb é a mesma tanto para as presenciais quanto para as que são oferecidas à distância. Com exceção de alguns componentes específicos da EaD, criados devido à própria forma do ensino, a base é igual. Até as 400 horas de estágio supervisionado são as mesmas.
No caso da Uneb, os estudantes também têm encontros presenciais uma vez por semana, com acompanhamento dos tutores, e visitas dos professores formadores em atividades de prática. Por isso, ela defende que é possível formar bons professores na EaD.
“A gente tem resultados em concursos públicos na Bahia e em outros estados com profissionais aprovados. Posso dizer que a nossa oferta dos cursos EaD dá todo o aporte acadêmico e profissional que o estudante precisa para atuar na licenciatura, assim como os cursos da modalidade presencial”.
Privadas
A maioria das licenciaturas à distância, porém, está nas universidades privadas. Na Bahia, 63,7% dos concluintes desses cursos no ano passado fizeram licenciatura EaD, segundo a análise do Todos Pela Educação a partir dos dados do MEC. É praticamente o dobro do percentual de dez anos antes: em 2012, eram 32,9% os estudantes que se formavam em licenciaturas EaD em instituições privadas.
Em geral, a educação à distância atrai muitos estudantes que têm necessidades do tipo estudar e trabalhar. Além disso, segundo o presidente do Sindicato das Entidades Mantenedoras dos Estabelecimentos de Ensino Superior da Bahia (Semesb), Carlos Joel, a mensalidade costuma ser um dos aspectos que atrai boa parte do público.
No entanto, ele diz que valores cobrados por muitas instituições representam uma distorção do próprio sentido da modalidade EaD. “Em outros países, o valor da mensalidade EaD é igual ou até superior ao presencial”, pontua. De acordo com Joel, futuros estudantes podem buscar identificar algumas características antes de se matricular em uma instituição.
“A primeira coisa é que, se é barato demais, você tem que desconfiar. Não dá para dizer que um curso de R$ 49,90 é sério”. Além disso, é importante verificar se a instituição é credenciada e autorizada pelo MEC a oferecer cursos e também se tem sede física.
Ele elenca duas diferenças entre os alunos: há aqueles que simplesmente querem ter um diploma e há os que desejam ter uma formação. “O segundo normalmente é mais exigente. Mesmo fazendo EaD, ele vai buscar mais resultados. Não é que o EaD não forme bem. Pode formar até melhor do que o presencial. Mas, para isso, tem que ter alguns instrumentos que são tão ou mais caros do que o presencial”, diz, citando exemplos de laboratórios e residências específicas.
Em qualquer curso de licenciatura, os estudantes precisam passar por um estágio obrigatório. Na modalidade à distância, isso não é diferente. “Formar em EaD ou não formar não é o grande detalhe. O ponto é como está se formando. Se a gente se propõe a formar profissionais, tem que ter responsabilidade com a formação e não se pode ter algumas mensalidades como algumas instituições estão se propondo. Não tem cabimento que alunos do ensino básico paguem 10 vezes o valor de um curso de ensino superior”.
A disparidade entre as mensalidades de escolas e universidades privadas é ainda mais gritante quando são considerados apenas os colégios com melhores desempenhos no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). O primeiro colocado na Bahia em 2022, o Colégio Bernoulli, como revelou uma reportagem do CORREIO esta semana, tem mensalidades que chegam a R$ 5,8 mil no terceiro ano do Ensino Médio, quase 100 vezes maior do que algumas faculdades.
Como a explosão das licenciaturas EaD é um fenômeno mais recente, ainda não é algo que se observa na maioria das escolas, de acordo com o Sindicato dos Estabelecimentos de Ensino da Bahia (Sinepe), que representa as escolas particulares. O presidente da entidade, Jorge Tadeu, acredita que a maior parte desses profissionais ainda não chegou ao mercado de trabalho. Apesar disso, pelo cenário atual, ele diz já ser possível inferir que possivelmente esses docentes não terão experiência para lidar com alunos e os grupos com os quais vão trabalhar.
“Isso reflete a baixa importância que estamos dando à educação. É preciso entender que a educação é muito além dessa transmissão de conteúdos e que, portanto, a presença física faz parte desse processo. Sem contar que a gente não está falando de turmas de 30, 40 pessoas, mas de 100, 150, até 200 alunos”, diz ele, que defende que a formação de professores seja como a de outras carreiras tradicionais. “Ser professor, assim como ser médico ou de outras profissões na área de saúde, requer conhecimento prático e teórico”, completa.
Valorização
Aluna de um curso de Administração na modalidade à distância, a estudante Débora Gama, 46 anos, não quis seguir o modelo EaD quando decidiu cursar Pedagogia. Hoje, ela faz as duas graduações de forma concomitante, mas a licenciatura é presencial na Uneb. Ainda no primeiro semestre, diz que não faria Pedagogia sem ser no modo presencial.
“No curso presencial, você tem muito seminário. É um curso de oratória também. Por mais que tenha estágios, acho mais interessante as aulas presenciais para o curso de pedagogia”, avalia ela.
Débora nunca tinha trabalhado com educação, mas sempre quis cursar Pedagogia. Por muito tempo, adiou os planos para cuidar dos três filhos. Foi enquanto acompanhava a educação deles que o desejo começou a crescer. “Eu queria dar um complemento, algo a mais. Eram três filhos, mas cada um era diferente e a abordagem era a mesma para todos. Acho que, na educação, a gente precisa ter essa mentalidade de que nem todas as crianças e pessoas ali são iguais”.
Para a pesquisadora Marlene Bíscolo Parrilla, que estudou o tema no doutorado, o modelo de EaD mais adequado seria semipresencial, também conhecido como híbrido. Neste caso, os alunos têm encontros periódicos com os tutores e com docentes, de forma que o acompanhamento é mais próximo. “O futuro professor se forma com outros professores. Ele vai construindo a sua identidade na interação com o professor e, às vezes, a EaD não tem isso. Ela pode ser falha nesse sentido”, pondera.
Entre os professores formados por EaD entrevistados por ela durante a pesquisa, havia também a leitura comum de que a modalidade funcionaria melhor numa segunda licenciatura do que na primeira. Neste caso, os professores já teriam mais experiência. “É possível formar à distância? Sim, é possível, porque depende muito do aluno também. Precisa ter muita disciplina, dedicação e compromisso, porque tudo acontece no ambiente virtual de aprendizagem”, acrescenta.
Com boa ou má formação, porém, a regra para professores de ensino básico no Brasil tem sido a má remuneração. Um estudo conduzido pela pesquisadora Janaína Feijó, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), e divulgado este mês, mostrou que os professores da pré-escola – ou seja, os pedagogos – têm os salários mais baixos entre as 10 carreiras com pior remuneração no Brasil. Os rendimentos chegam a pouco mais de R$ 2,2 mil por mês.
Ao todo, entre as 10 piores posições, seis são de profissionais ligados ao ensino e à educação. Segundo o presidente do Sinpro-BA, Allysson Mustafá, a pior situação é dos professores da rede privada, já que a rede pública segue o piso do magistério. Nas escolas privadas, o piso por hora-aula de 50 minutos na Bahia é inferior a R$ 10. “Não dá para você existir, enquanto educador, com uma desvalorização tão grande da sua profissão”, diz ele, que é professor de História da educação básica.
Além disso, ele pondera que, nas escolas, é possível que o trabalho dos pedagogos na educação infantil tenha muito mais especificidades do que em outras séries, como do ensino fundamental e do ensino médio. “Se a gente soma tudo isso, tem o velho conhecido problema que até conseguimos avançar por um tempo, mas que retrocedemos nos últimos anos, que a desvalorização da figura docente”, completa.