Promulgação da Emenda Constitucional 95: congelamento do Brasil
Por José Geraldo de Santana Oliveira*
O dia 15 de dezembro, ao longo dos séculos, foi palco de acontecimentos que se tornaram marcos inesquecíveis, como, por exemplo, o do ano de 1907, quando se deu à luz o imortal Oscar Niemayer, e o de 1939, data da estreia do consagrado filme “E o vento levou..”.
Porém, desalentadoramente, foi também neste dia, no corrente ano de 2016, que o Congresso Nacional decretou o congelamento do Brasil e da sociedade brasileira, por 20 anos, com a promulgação da Emenda Constitucional (EC) N. 95/2016, resultante da aprovação da vulgarmente conhecida como PEC – Proposta de Emenda Constitucional — da morte, que recebeu o N. 241/2016 na Câmara Federal e 55/2016 no Senado.
Esta EC reveste-se de características de criopreservação às avessas. Essa técnica médica desenvolveu-se a partir de 1962, sobretudo nos EUA — visando à preservação de corpos humanos mortos, em temperatura baixíssimas, na expectativa de cura, no futuro; estima-se que haja, atualmente, cerca de 200 corpos nessa condição.
No Brasil, ela chegou ao final de 2016, na área social, com sentido e propósitos diametralmente opostos aos de sua similar médica, pois que tem como objetivo o congelamento das despesas primárias — que são as que sustentam a máquina administrativa, educação, saúde, previdência social, segurança, investimentos públicos etc. — não para preservá-las, mas, sim, para destruí-las, como se colhe do seu conteúdo. Daí a razão de poder classificá-la como criopreservação às avessas.
Para comprovar esta assertiva, basta que façam o cotejo entre os dois primeiros direitos fundamentais sociais, determinados pela CF, em seu Art. 6º, que são a educação e a saúde, com a EC sob comentários.
A EC N. 86/2015, que alterou o Art. 198, da Constituição Federal (CF), que trata do financiamento da saúde, assim dispunha, no seu Art. 2º:
“Art. 2º O disposto no inciso I do § 2º do art. 198 da Constituição Federal será cumprido progressivamente, garantidos, no mínimo:
I – 13,2% (treze inteiros e dois décimos por cento) da receita corrente líquida no primeiro exercício financeiro subsequente ao da promulgação desta Emenda Constitucional;
II – 13,7% (treze inteiros e sete décimos por cento) da receita corrente líquida no segundo exercício financeiro subsequente ao da promulgação desta Emenda Constitucional;
III – 14,1% (quatorze inteiros e um décimo por cento) da receita corrente líquida no terceiro exercício financeiro subsequente ao da promulgação desta Emenda Constitucional;
IV – 14,5% (quatorze inteiros e cinco décimos por cento) da receita corrente líquida no quarto exercício financeiro subsequente ao da promulgação desta Emenda Constitucional;
V – 15% (quinze por cento) da receita corrente líquida no quinto exercício financeiro subsequente ao da promulgação desta Emenda Constitucional”.
Como se vê, a EC N. 86/2015 estabeleceu a seguinte progressividade, para o financiamento da saúde, pela União: 13,2%, da receita líquida, em 2016; 13,7%, em 2017; 14,1%, em 2018; 14,5%, em 2019; e 15%, a partir de 2020, inclusive.
No tocante à educação, o Art. 212 da CF, com a sua redação originária, dispõe:
“Art. 212- A União aplicará, anualmente, nunca menos de dezoito, e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios vinte e cinco por cento, no mínimo, da receita resultante de impostos, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino”.
O Art. 214 da CF, que trata do Plano Nacional de Educação, estipula, em seu inciso VI, com a redação dada pela EC N. 59/2009:
“(…)
VI- estabelecimento de meta de aplicação de recursos públicos em educação como proporção do produto interno bruto”.
A Lei N. 13.005/2014, que aprovou o PNE, com duração de dez anos, na sua Meta N. 20, determina que, até o final de seu período vigência, o percentual do produto interno bruto (PIB) investido em educação seja de 10%; o que, em valores de hoje, se já fosse exigível, equivaleria ao algo em torno de 400 bilhões de reais.
Pois bem. A EC N. 95/2016, no Art. 110, acrescentado ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), determina:
“Art. 110. Na vigência do Novo Regime Fiscal, as aplicações mínimas em ações e serviços públicos de saúde e em manutenção e desenvolvimento do ensino equivalerão:
I – no exercício de 2017, às aplicações mínimas calculadas nos termos do inciso I do § 2º do art. 198 e do caput do art. 212, da Constituição Federal; e
II – nos exercícios posteriores, aos valores calculados para as aplicações mínimas do exercício imediatamente anterior, corrigidos na forma estabelecida pelo inciso II do § 1º do art. 107 deste Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.”
O Art. 3º da EC N. 95/2016 revoga o Art. 2º da EC N. 86/2015, que é exatamente o que vincula as despesas com saúde aos percentuais da receita líquida da União.
“Art. 3º Fica revogado o art. 2º da Emenda Constitucional nº 86, de 17 de março de 2015”.
Extraem-se do cotejo entre os dispositivos constitucionais, insertos nos Arts. 198, § 2º, inciso I, e 212, caput, com os da EC N. 95/216, as seguintes conclusões:
I – De 2018, inclusive, a 2036, os investimentos em saúde e educação terão, em termos reais, os mesmos valores de 2017, corrigidos, anualmente, pelo índice de preços ao consumidor ampliado (IPCA), e nada mais; não importando o crescimento do PIB, das receitas líquidas da União, e, o que é pior, da população e de suas demandas sociais.
II – Os valores destinados à saúde, a serem congelados, por 19 anos (2018 a 2036), serão equivalentes a 15% das receitas líquidas da União em 2017, o que importou a antecipação deste percentual, assegurado pela EC N. 86/2015, para 2020. Porém, com a ressalva do relator-geral da Lei do Orçamento Anual (LOA), Eduardo Braga, sobre o risco de o investimento mínimo orçado não se realizar, no próximo ano, e, por consequência, nos demais19. Segundo o senador, boa parte das verbas para a saúde depende da repatriação de recursos no exterior, processo que pode levar muito tempo e levar a um contingenciamento no primeiro semestre do ano.
III – O dispositivo constitucional que os assegurava foi revogado pela EC N. 95/2016.
IV – Os valores destinados à educação, pela União, de 2018, inclusive, a 2036, serão equivalentes a 18% das receitas de impostos, apuradas em 2017, corrigidos, anualmente, pelo IPCA, nenhum centavo a mais. Com isso, o aumento das receitas de impostos, a partir de 2018, inclusive, não terá incidência do total destinado à educação; e o percentual de 10%, do PIB, previsto para 2024 pela Meta 20 do PNE jamais será alcançado.
A partir desta EC, os objetivos da Ordem Social do Brasil, ditados pelo Art. 193 da CF, e que se consubstanciam em bem-estar e justiça sociais, não passarão de meras formalidades constitucionais, sem nenhuma eficácia e concretude, pois que o seu conteúdo foi totalmente esvaziado por aquela, sem qualquer pejo ou comiseração. Importa dizer: a EC N. 95/2016 representa o “requiem aeternam” (‘repouso eterno’) desses objetivos.
Para que não paire dúvidas sobre os verdadeiros objetivos da EC N. 95/2016, de desmonte do Estado de Bem-Estar Social em absoluto proveito do capital, basta que se tome o Orçamento da União para o ano de 2017, aprovado ao dia 16 de dezembro corrente; conforme descrição do gráfico abaixo:
Todo o teatro de horrores imposto ao Brasil a partir do impeachment da presidenta Dilma, que o conduz a passos acelerados para o abismo político, social e econômico, traz à memória o golpe de Estado perpetrado na França, em dezembro de 1851, pelo seu então presidente, Luís Napoleão Bonaparte, a quem o escritor Vitor Hugo, sarcasticamente, intitulou de “Napoleão, o pequeno”, no majestoso e atemporal livro com este título.
No citado livro, Vitor Hugo faz registros, que cabem perfeitamente na realidade brasileira pós-impeachment, incluindo os três poderes da República, com as devidas correções de tempo, de lugar e de nomenclaturas; veja-se:
“As nações jamais conhecem toda a sua riqueza em matéria de pessoas vis. Torna-se necessária essa espécie de subversão, tal gênero de mudanças, para mostrar-lha. […] Assim, o homem certa manhã agarrou a Constituição, a República, a Lei, a França pelo pescoço; apunhalou pelas costas o Porvir, calcou aos pés o Direito, o Bom-senso, a Justiça, a Razão, a Liberdade. […] Há, pois, na loja em que se fabricam as leis e os orçamentos, o dono da casa, que é o Conselho de Estado, e o criado, que é o Corpo Legislativo. Nos termos da ‘Constituição’, quem nomeia o dono da casa? O Sr. Bonaparte. Quem nomeia o criado? A Nação. […] E todos juntos, estelionatário, falsário, falsa testemunha, bandido, ladrão, assassino, acrescentarão: ‘E vós, juízes, fostes cumprimentar aquele homem, foste elogiá-lo por haver-se tornado perjuro, saudá-lo por haver levantado falso testemunho, glorificá-lo por haver praticado estelionato, felicitá-lo por haver roubado e agradecer-lhe o haver assassinado! Que é que nos quereis?”.
Para Michel Temer, o adjetivo ‘o pequeno’ soa como elogioso; o mais adequado talvez seja ‘o nanico’. Para o Congresso Nacional, salvo honrosas vozes dignas, o de criado veste-o muito bem. Quanto ao Supremo Tribunal Federal (STF), parece que se calham as advertências feitas aos juízes franceses pela citadas pessoas inidôneas; ao menos, não restam dúvidas de que a sua conduta presente não o faz alto, muito menos supremo.
*José Geraldo de Santana Oliveira é consultor jurídico da Contee