‘Qualidade para poucos não é qualidade’: novo indicador sobre educação põe desigualdade em foco
Iporã do Oeste, cidade que fica perto da fronteira de Santa Catarina com a Argentina, tem 9 mil habitantes e uma educação pública de destaque no cenário nacional. Quase 80% das crianças da 5ª série têm aprendizado adequado em matemática, contra 44% da média brasileira.
A nota da cidade no Ideb – Índice de Desenvolvimento da Educação Básica, usado como parâmetro para medir a qualidade das escolas – de 2017 está entre as de nível mais alto do país: 7,3 nos anos iniciais do ensino fundamental.
Os indicadores positivos acima, porém, ocultam um problema que não aparece no Ideb: também no 5º do ensino fundamental, os alunos negros e mais pobres têm aprendido, em média, bem menos do que os alunos brancos e mais ricos. A cidade tem uma das mais pronunciadas desigualdades do país no que se refere a raça e renda.
O exemplo da cidade catarinense se repete, em diferentes graus, na ampla maioria das escolas públicas das cidades brasileiras, segundo um novo indicador sobre desigualdade na educação que está sendo lançado nesta terça-feira (25/6) em seminário realizado em São Paulo.
O Indicador de Desigualdades e Aprendizagens (IDeA), elaborado pelo professor emérito da UFMG e ex-presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) Francisco Soares e outros acadêmicos para a Fundação Tide Setubal, pretende medir se o ensino oferece igualdade de oportunidades a todos os alunos, independentemente de suas condições socioeconômicas.
A ideia é verificar se, além de bons indicadores de aprendizado, o ensino em cada município reflete também igualdade em termos de raça, gênero e renda na educação e aprendizado dos alunos.
“Qualidade para poucos não é qualidade. Essa frase diz um pouco do que estamos buscando”, afirma Soares, destacando que, embora o Brasil tenha registrado avanços nas últimas décadas nos resultados de aprendizado e acesso ao ensino básico, essa melhora tem acontecido de maneira muito desigual.
“O Ideb do Brasil tem melhorado, principalmente nos anos iniciais. É uma vitória que quero comemorar. Mas queria colocar nessa vitória algo que não está presente. Por isso, dividimos os alunos de escolas públicas em cinco grupos de nível socioeconômico – começando pelos mais pobres e terminando com uma classe média um pouco mais estabelecida. A diferença de desempenho entre esses dois grupos é, hoje, equivalente a dois anos de escolarização.”
Ou seja, crianças de classe média que cursam a oitava série estudam lado a lado, na mesma sala de escola pública, com colegas mais pobres que, na realidade, apresentam desempenho escolar equivalente à 6ª série.
“É uma diferença brutal”, opina Soares, que quando comandou o Inep, órgão do Ministério da Educação responsável por exames como o Prova Brasil e o Enem, foi o responsável por criar outro índice social – o Indicador de Nível Socioeconômico das Escolas de Educação Básica (Inse), que pondera o desempenho das escolas por fatores socioeconômicos, como a renda familiar dos alunos.
Poucas escolas têm igualdade
A base de dados para o IDeA será alimentada com os resultados do Prova Brasil de 2007 a 2015, exame que mede o desempenho dos alunos do ensino fundamental em Português e Matemática.
Segundo a medição, uma minoria dos 5.570 municípios do país tem conseguido oferecer ensino público de qualidade de forma igualitária para negros e brancos, meninos e meninas, crianças mais e menos pobres. Há também uma pequena minoria de municípios com dados “atípicos”, em que negros e pobres aprendem mais que os demais.
Um dos principais destaques positivos é a cidade cearense de Sobral, que não apenas tem a maior nota do Ideb no Brasil (9,1 nos anos iniciais do ensino fundamental), como conseguiu que essa qualidade se estendesse a alunos de diferentes raças e níveis socioeconômicos na rede pública.
Entre as capitais, Francisco Soares vê como caso interessante o de Teresina (PI), “que, embora não esteja no topo (de índices de aprendizado), tem certo equilíbrio” de ensino entre pessoas de diferentes rendas.
“Mas não quero igualdade na pobreza. Temos que querer os dois faróis do carro iluminados (em referência à qualidade do ensino e à igualdade do ensino).”
Capacitar todos os jovens é uma questão econômica
Soares afirma que, além de questões sociais ou políticas, a igualdade de ensino é um problema econômico. À medida que o país envelhece, jovens mais bem educados serão caminho essencial para que a produtividade do trabalho brasileiro – que não cresce desde os anos 1980, segundo um estudo de 2017 do Banco Credit Suisse – volte a avançar.
O Brasil vive atualmente os momentos finais de seu bônus demográfico, período que favorece o crescimento da economia porque a população jovem é maioria em relação ao número de idosos.
Para garantir que a economia cresça de maneira sustentável no futuro, o país precisaria ter aproveitado este período para educar os jovens e criar uma força de trabalho qualificada, sem excluir a população de baixa renda.
“A produtividade do trabalhador brasileiro é baixa porque ele aprendeu pouco”, afirma Soares.
“Nosso sucesso precisa ser mais sólido em duas dimensões: primeiro, com a transição demográfica, vamos ter mais jovens apoiando mais idosos, portanto esses jovens precisarão ser mais produtivos e fazer mais. Segundo, com a tecnologia, as profissões manuais repetitivas estão desaparecendo. O novo trabalhador tem que ter educação para operar instrumentos de trabalho que exigirão mais conhecimento.”
“Estou falando de milhões de pessoas. Para a economia rodar, não basta ter um pequeno grupo (com acesso à boa educação), é preciso ter uma massa. Essa dimensão tem sido pouco considerada na educação.”
Soares, no entanto, diz que atualmente não vê a desigualdade de oportunidades no centro dos debates sobre políticas de educação no Ministério da Educação do governo de Jair Bolsonaro.
“(A liderança do MEC) mudou tanto em tão pouco tempo que ainda não sabemos quais são as políticas para a educação básica. É algo sério, porque estamos perdendo tempo que a educação não tem no Brasil”, diz.
Dinheiro e estratégias para a educação
Outro indicador de desigualdade que foi divulgado nesta terça-feira refere-se à quantidade de recursos públicos que diferentes Estados e municípios destinam à educação pública.
Segundo o Anuário Brasileiro da Educação Básica 2019, feito pela organização Todos Pela Educação em parceria com a Editora Moderna, no Brasil há desde cidades que gastam R$ 19,5 mil por aluno anualmente quanto as que gastam apenas R$ 2,9 mil anualmente – o que equivale, na prática, a gastar R$ 241 reais por mês com o ensino de cada estudante.
No âmbito estadual, São Paulo é o que tem a maior média anual de recursos da educação dividido pela quantidade de alunos (R$ 6,5 mil), contra apenas R$ 3,5 mil no Maranhão.
Além de gastos, Francisco Soares afirma que o objetivo é influenciar políticas públicas que levem em conta necessidades locais e dos alunos – tendo em mente que todos são capazes de aprender se tiverem as condições e os estímulos adequados.
“(As estratégias para enfrentar a desigualdade) serão diferentes. Mas é preciso uma intervenção que impeça que isso se transforme em um problema social”, diz o pesquisador.
“O que queremos é que a escola se dê conta de que tem que tomar iniciativas mais rápidas, mais sólidas, por aqueles alunos que vão embora se ela não fizer nada. Não quero confundir isso com uma questão de cidadania – é uma questão econômica, porque esse aluno vai ficar muito caro. Ele vai voltar (repetir o ano), não vai terminar os estudos. Temos motivos econômicos fortes para tratar da desigualdade”, conclui.