Quando interesses mórbidos impõem a negação da ciência e da medicina

Especulações, propaganda e distribuição de medicamentos sem eficácia encobrem a falta de estratégia do governo para preservar a saúde pública

A Medicina Baseada em Evidências aplica o método científico a toda a prática médica. E ocupa um lugar especial na busca da racionalidade terapêutica, principalmente estruturada nos tempos contemporâneos. Sua prática cresce em importância no enfrentamento da pandemia do coronavírus SARS-CoV-2. Dos achados empíricos ao rigor dos estudos clínicos e a aplicação de critérios éticos na pesquisa, a regulação passa a ser importante na definição de protocolos e normas para o tratamento de agravos à saúde.

O Brasil tem um sistema de saúde (SUS) modelo para o mundo e uma regulação que coloca nossa Anvisa na categoria de Agência de Referência Regional. Mas ao contrário do que se esperaria, o que mais temos assistido em plena pandemia são especulações, propaganda e até distribuição de medicamentos sem eficácia comprovada e capazes de produzir efeitos colaterais de gravidade.

A Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), escritório regional da Organização Mundial da Saúde (OMS), avalia as agências reguladoras em quatro níveis de desenvolvimento. Apenas Brasil, México, Colômbia, Cuba, Argentina e Chile estão consideradas no Nível 4, entre as 17 autoridades reguladoras da América Latina. Nosso sistema tem sido pródigo em analisar com celeridade todos os projetos de pesquisa relacionados com a pandemia de covid-19. Produtos a serem incorporados nos protocolos e diretrizes terapêuticas no SUS passam pelo crivo da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologia no SUS (Conitec), nossa instância de avaliação tecnológica.

Plano nacional

Mas tudo isso vem sendo atropelado pelos fatos e pelos nossos governantes. O Plano Nacional de Enfrentamento à Covid-19, elaborado por um conjunto de entidades do campo da Saúde congregadas na Frente pela Vida, foi um passo seguinte à Marcha Virtual pela Vida há um mês e que teve a adesão de mais de 600 organizações e movimentos.

A Marcha teve como bandeiras a defesa do SUS, da ciência, da educação, do meio ambiente, da solidariedade e da democracia. Os pilares do Plano são a ciência, a competência técnica, capacidade gestora e responsabilidade política.

A proposta foi elaborada levando em consideração a gravidade da crise atual, a responsabilidade constitucional e a “ausência, inércia e, mesmo, promoção de boicotes e obstáculos, deliberada ou resultante de ignorância e negacionismo. O resultado dessa irresponsabilidade trágica é o fato de o Brasil entrar no quarto mês da pandemia, sem qualquer plano oficial de enfrentamento geral da pandemia”.

Emendas parlamentares

Depoimentos de integrantes da ex-base de apoio do atual governo mostram que a distribuição de recursos destinados a combater a pandemia são usados para garantir a construção de uma base de apoio destinando recursos em emendas a parlamentares. Vemos assim o nítido deslocamento da necessidade de confrontar a pandemia com os atuais interesses imediatos e mórbidos de dirigentes governamentais.

Entretanto, quando mais rigor se esperaria e mais compromisso com perspectivas regionais e de solidariedade global, assistimos na imprensa diária manifestações esdrúxulas de apologia de determinados medicamentos no tratamento (cloroquina, hidroxicloroquina, ivermectina, azitromicina), manifestações de mandatários desprovidos da necessária competência técnica ou científica para assim se manifestarem.

Pensamento ultraliberal?

Mas quem disse ser necessário esse conhecimento para alardear produtos farmacêuticos no atual regime político que enfrentamos? Renegam a Ciência, o conhecimento científico, transformando nossas instituições e o país em trincheiras do pensamento ultraliberal e do negacionismo. Mas haveremos de resistir!

Entretanto, mais apreensão nos causa a captura de entidades médicas pela irresponsabilidade dos nossos atuais governantes. Na defesa do Ato Médico e da Liberdade de Prescrição, representações médicas, incluindo conselhos, sindicatos e até a Federação, aplaudem políticas erráticas, equivocadas e sem a necessária representação científica ou institucional. Aplaudem as manifestações de distribuição do famigerado “Kit-Covid””, mais um embuste direcionado a nossa população leiga, que sente que está sendo atendida, mas que pode estar sendo exterminada pela volúpia irresponsável de nossos dirigentes, com a aquiescência e cumplicidade de entidades que teriam que zelar pela saúde de nossas populações.

Kits como estratégia

É estarrecedor escutar a apologia de “kits-Covid” como estratégia de prevenção e de tratamento da Covid-19, como estamos presenciando em vários estados, municípios e setores cooptados pela falácia do governo federal. Como contraponto, acabamos de ver manifestações de entidades negando o que o Ministério da Saúde insiste em apresentar como diretrizes, sem o respaldo científico necessário e levado adiante pela sanha de diretrizes inconsequentes e eivadas de interesses outros que não a proteção da saúde da população brasileira.

As entidades científicas sérias já se manifestaram. As organizações internacionais também têm posições claras. O Conselho Nacional de Saúde, como legítimo representante do controle social nas políticas de saúde acaba de externar sua posição clara. Autoridades brasileiras, menosprezando ou desprezando a Medicina Baseada em Evidências, teimam em insistir, na contramão do mundo! Irresponsabilidade, genocídio? Mais cedo ou mais tarde a história cobrara a conta, mas hoje as instituições com responsabilidade, devem cumprir suas obrigações, pois trata-se de proteger vidas.

Jorge Bermudez (Médico, Doutor em Saúde Pública, Pesquisador da ENSP/Fiocruz),

Ronald Ferreira dos Santos (Farmacêutico, Mestre em Farmácia, Presidente da Federação Nacional dos Farmacêuticos, Ex-Presidente do Conselho Nacional de Saúde)

Jorge Venâncio (Médico, membro suplente do Conselho Nacional de Saúde e Coordenador da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa- CONEP/CNS)

Rede Brasil Atual

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