Quando os entregadores se fazem classe
A pandemia revelou o escárnio trabalhista que é plataformização e precarização das relações de trabalho causadas pela mistura do capitalismo rentista, ideologia do Vale do Silício, extração de dados e gestão neoliberal. A luta do #BrequeDosApps é a luta dos trabalhadores – e a greve é um primeiro passo rumo a melhores condições, sem perder de vista a possibilidade de expropriação ou hackeamento das plataformas.
O trabalho em plataformas é hoje um verdadeiro laboratório da luta de classes, com os entregadores encarnando a síntese dos desafios da classe trabalhadora em um momento de reorganização do capital frente a crise do novo coronavírus. O breque dos aplicativos promete ser um capítulo central na história desse laboratório.
A plataformização do trabalho – a crescente dependência dessas infraestruturas digitais para conseguir ou se manter em uma atividade de trabalho – é consequência de um processo histórico que mistura capitalismo rentista, ideologia do Vale do Silício, extração contínua de dados e gestão neoliberal. Trata-se de uma dinâmica que vai, aos poucos, se generalizando por toda a classe trabalhadora: já há aplicativos não apenas para pedir “qualquer coisa”, mas também “qualquer pessoa” – de professor a Papai Noel.
Os trabalhadores passam a depender cada vez mais de mecanismos das plataformas, como vigilância extrema, extração de dados e gestão algorítmica do trabalho. Como confrontar sistemas que se colocam como infalíveis – além do bem e do mal? A exploração parece ser gerida por um patrão impessoal, que mais parece uma lei da natureza do que um inimigo de carne e osso, que poderia ser pressionado e derrotado. É comum escutar: “é culpa do algoritmo”, “meu chefe é um algoritmo”. Mas são as empresas detentoras das plataformas as responsáveis por desenhar essas lógicas – para seu próprio benefício, com o objetivo de extrair o máximo de valor possível dos trabalhadores. De neutro o algoritmo não tem nada.
É a gestão empresarial capitalista que determina o desenho das plataformas será feito para maximizar o engajamento, e no limite induzir ao vício ou sobre-trabalho: seja por meio de dispositivos de avaliação e pontuação, ou por tentativas de fazer o trabalhador depender cada vez mais dessas lógicas. Quando o trabalhador está inteiramente absorvido pela lógica da plataforma, as empresas desfrutam de um imenso poder de pressão, enquanto os entregadores se veem com capacidade de barganha reduzida. Nessa relação de poder tremendamente desigual e assimétrica, a posição precária do trabalho é um prato cheio para abusos, arbítrios e caprichos empresariais, como por exemplo os bloqueios indevidos, quando os entregadores são surpreendidos com desligamentos repentinos das plataformas.
O que as pesquisas sobre trabalho em plataformas têm mostrado é que há muito em comum entre um entregador no Brasil, na Indonésia, na África do Sul, ou mesmo na Inglaterra, cujo cenário é marcado por trabalhadores migrantes, muitos deles brasileiros. As conexões entre as lutas dos trabalhadores ao redor do mundo são evidentes. O que talvez a América Latina tenha de específico é que, aqui, o bico, o gig, sempre foi a norma. Agora o bico está sendo plataformizado. O trabalho de entregadores marcado racialmente, perifericamente e pela juventude passa a ser marcado por, como diz Ludmila Abílio, um autogerenciamento subordinado em relação às plataformas digitais. E não há dúvidas de que existe uma geopolítica do trabalho digital – como evidenciam a centralidade dos treinadores de dados para carros autônomos na Venezuela e os moderadores de conteúdo terceirizados das empresas de mídias sociais nas Filipinas. A plataformização, e a precarização das relações de trabalho que ela implica, é tão acelerada nos países pobres justamente devido à massa de mão de obra empobrecida que não consegue encontrar oportunidades de sobrevivência no mercado formal de empregos. Na ausência de outras fontes de renda, essa população é empurrada para a viração via aplicativos. Bianca Sousa dos Santos, entrevistada no documentário Vidas Entregues (Renato Prata Biar, 2019), desabafa: “eu sou uma desesperada”. Nem sempre é uma questão de escolha.
Durante a pandemia, os entregadores no Brasil estão trabalhando mais, ganhando menos, correndo risco para manter parte da sociedade em isolamento social. Conhecem de memória o cheiro de todas as comidas, que carregam enquanto a barriga ronca.
Quando tudo parecia convergir para uma extrema competição entre os trabalhadores que muitos viam como sem volta, a pandemia vem nos lembrar uma lição. Não existe trabalhador inorganizável. Se há novos métodos de controle e organização do trabalho, são necessárias também novas formas de organização por parte dos trabalhadores. Sem esquecer das lutas históricas, a classe trabalhadora sempre se reinventa – sempre se recompõe a partir da nova realidade técnica do trabalho.
As jornadas extenuantes de trabalho, de domingo a domingo, para não comprometer a pontuação e conseguir atingir metas, não são um limite para a organização coletiva dos trabalhadores das plataformas digitais. E não é de hoje. Ao longo dos últimos anos, vimos crescer associações, sindicatos e novas formas de organização nas mais diferentes categorias – do setor de tecnologia ao de games passando pelos youtubers. E o mesmo acontece com os entregadores. Asociación de Personal de Plataformas (APP), na Argentina, Independent Workers’ Union of Great Britain (IWGB), na Inglaterra, e #NiUnRepartidorMenos, do México, são alguns exemplos de como os trabalhadores estão se organizando. Na semana passada, houve a primeira conferência digital global de trabalhadores. No Brasil, só entre os motoristas, já há, no mínimo, 18 sindicatos e associações, algo que também vem emergindo em relação aos entregadores.
A comunicação tem um aspecto central na organização dos trabalhadores, a começar pelo papel do WhatsApp. Se as plataformas são, ao mesmo tempo, meios de comunicação e produção, que servem, por um lado, para o controle do capital, elas também têm sido reapropriadas para os trabalhadores se organizarem. Servem também para circular sentidos sobre as lutas dos entregadores por meio de vídeos, correntes e fotos. Se, por um lado, as empresas querem mostrar que estão fazendo tudo pelos “parceiros” em cenário de “disrupção” e “transformação digital”, é preciso circular significados que vêm dos trabalhadores. A comunicação atua como organização e circulação de sentidos – fazendo chegar as lutas por toda a classe trabalhadora.
O breque dos apps tem potencial prefigurativo – isto é, de imaginar e espalhar essas lutas por toda a sociedade. O movimento está crescendo pelo Brasil e outros países da América Latina. Esta é a primeira vez que uma plataforma de delivery divulga “que não desativa o trabalhador por participar de manifestações”. É também a primeira vez que o tema não é pautado por pretenso “consumo ético” individualizado, mas a partir da autonomia dos trabalhadores, por meio da própria ação coletiva independente. São os entregadores que estão dizendo: “não peça nada”. Isso tem potencial de quebrar, ainda que por um instante, um circuito de produção-consumo do capital. O velho Marx já dizia que os meios de comunicação e os meios de transporte aceleram a circulação do capital, diminuindo seus tempos de rotação. O trabalho em plataformas de entrega são a expressão contemporânea dessa tendência. Ao se organizarem coletivamente, os trabalhadores mostram que podem frear a circulação do capital, e assim reencontram sua capacidade de barganha – e de pressão contra as empresas, em nome de uma vida melhor.
Falar em potencialidades não significa idealizar, mas ajudar a construir outros mundos possíveis. Isso é ainda mais necessário em um mundo em que o velho está morrendo e o novo sempre vem. A organização coletiva dos entregadores pode ser incipiente e em construção, mas demonstra já ser uma significativa força coletiva e com potencial de fazer circular as lutas dos trabalhadores. E é a partir disso que precisamos compreender o breque dos apps não como um momento isolado, mas como parte da luta de classes em torno da plataformização do trabalho. Não só o primeiro de julho.
É inútil, e contraproducente, exigir um movimento pronto – fast food – sem contradições ou com todas as soluções “para ontem”. O movimento real está em plena construção. São tentativas em meio à dança dialética do trabalho. Os movimentos por regulação do trabalho em plataformas e plataformas alternativas, incluindo autogestão e cooperativismo de plataforma só fazem sentido quando ligados à organização coletiva dos trabalhadores. Caso contrário, sem saber as reais necessidades e demandas dos trabalhadores, o risco é de ou cair em um solucionismo tecnológico – mais uma iteração da ideologia californiana dos magnatas do silício – ou de pressionar “de cima para baixo” sem a construção de um movimento orgânico.
Como argumentam Sai Englert, Jamie Woodcock e Callum Cant, “podemos começar a ver o germe de uma alternativa que surge da recusa dos trabalhadores das plataformas. No entanto, se propusermos formas de socialismo digital de cima para baixo, corremos o risco de não apenas perder esses germes radicais, mas também de perder a possibilidade de fazer circulá-los na economia digital e para além dela”.
A organização dos entregadores está se compondo técnica, social e politicamente. A greve é um passo rumo à prefiguração dos germes radicais sem perder de vista a possibilidade de expropriação das plataformas por parte dos trabalhadores. Se o trabalho em plataformas é um laboratório de lutas de classes, precisamos experimentá-lo nas lutas em torno da classe trabalhadora. É apenas na luta, e por meio dela, que a classe se faz classe. São nesses momentos de intensa solidariedade, de organização coletiva, que o trabalhador se vê como trabalhador, e vê na luta de outros trabalhadores também sua própria luta. Aí protesto particular do entregador contra a injustiça e a exploração ganha dimensão de uma universalidade insurgente. Como costuma dizer Paulo Lima – o Galo – dos Entregadores Antifascistas, todo mundo é entregador – “se você entrega a sua força de trabalho, você é um entregador”.
Rafael Grohmann é professor do Mestrado e Doutorado em Ciências da Comunicação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) e coordenador do Laboratório de Pesquisa e Intervenção DigiLabour, que mantém uma newsletter. Coordena no Brasil o projeto Fairwork, da Universidade de Oxford. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP.
Paula Alves é mestranda em Ciências da Comunicação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) e pesquisadora do DigiLabour. Pesquisa o papel da comunicação na organização coletiva de trabalhadores de plataformas digitais.