“Queda na popularidade de Bolsonaro evidencia valorização da ciência”
Em entrevista, o ex-ministro da Educação e presidente da SBPC Renato Janine Ribeiro afirma que o negacionismo mata e que a maior parte da população brasileira mostra apreço pela ciência ao desaprovar o presidente
Para o filósofo Renato Janine Ribeiro, ex-ministro da Educação e novo presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), existe um fenômeno “curioso” em curso no mundo.
“Temos hoje uma série de setores que não crê na ciência, na autoridade dela, e prefere apelar para a superstição, conselhos sem fontes verificáveis. Talvez isso seja uma reação contra o conhecimento, contra os direitos humanos. Talvez haja pessoas que se sentiram de alguma forma alijadas deste tempo novo. Creio que quando no mundo as pessoas começam a clamar pela igualdade de direito, isso é chocante para alguns que se sentem, equivocadamente, prejudicados”, disse, na entrevista a seguir à DW Brasil.
O ex-ministro considera que o papel da ciência para alavancar a prosperidade econômica e social de uma nação não é compreendido pelo governo do presidente Jair Bolsonaro. O negacionismo, afirma, não é inocente, não se trata de uma opinião – “ele mata”, enfatizou, ao falar sobre as atitudes de Bolsonaro na pandemia e de reações contrárias às vacinas nos Estados Unidos e na Europa.
Ao mesmo tempo, “o fato de que o presidente perde popularidade é um sinal de que a maior parte da população está valorizando a ciência, o conhecimento rigoroso, os direitos humanos, valores que para ele não são preciosos”.
A seguir, os principais trechos da entrevista:
DW Brasil: A diáspora de cérebros na ciência brasileira tem se acentuado. Como o senhor encara essa questão e de que maneira a SBPC pode auxiliar pesquisadores para não deixarem o Brasil?
Renato Janine Ribeiro: O Brasil não tem exatamente uma tradição de evasão de cérebros. A Índia e a Argentina têm evasão de cérebros bem maior. O que está acontecendo, e já tinha acontecido no final da década de 90: não tem emprego, não tem onde colocar as pessoas, sobretudo no campo de pesquisa – e estou falando de doutores. Com a expansão das universidades federais, em 2003 e 2004, os doutores no Brasil, a grande maioria, conseguiram uma colocação profissional como docentes. Hoje, nós temos uma amplidão de pessoas que ou terminaram o doutorado e não têm colocação profissional, ou que para fazer mestrado ou doutorado não recebem bolsa – embora o valor da bolsa seja muito baixo, R$ 1.200. Mesmo essa bolsa exígua não está sendo paga. Houve corte no número de bolsas e não reajuste no valor sequer para contemplar a inflação dos últimos anos.
Essa falta de perspectiva de colocação profissional, por um lado, e a falta de recursos para equipamentos, de outro, são as causas da fuga de cérebros. Nossos talentos, os pesquisadores que o Brasil formou colocando dinheiro público, no caso de universidades públicas, estamos dando de presente essas inteligências prontas, preparadas, aos países desenvolvidos, Europa Ocidental, EUA e Canadá. É um desperdício gigantesco de recursos humanos por causa de uma política equivocada do governo federal no tocante à pesquisa.
O Brasil tem uma questão conjuntural, que é o desemprego, mas há também o olhar deste governo para a ciência e a pesquisa. O senhor vê equívocos nesses dois aspectos?
Este governo não parece entender que a economia depende da saúde. Ele criou uma oposição entre pandemia e economia, falsa, porque os países que desenvolveram o melhor combate à covid – seja por barreiras, precauções sanitárias, seja pela adesão mais rápida à vacina – são os países que voltaram à normalidade mais cedo. O governo também criou uma oposição entre a economia e o mundo da pesquisa, que é um equívoco gigantesco. Qualquer pessoa que acompanha a discussão liberal no mundo vê que o principal fator de desenvolvimento é a educação somada à ciência. Você tem que ter esse círculo virtuoso de investir na educação, para produzir a ciência mais rica, gerar tecnologia e inovação. Tudo isso aumenta a prosperidade e permite investir nos setores sociais. Não se trata apenas de tornar o Brasil socialmente mais justo, mas se trata também de torná-lo um país mais próspero economicamente. E isso, curiosamente, parece não ser compreendido pelo governo, embora o ministro da Economia, Paulo Guedes, tenha sempre sido proprietário de várias empresas de comunicação. É uma coisa curiosa esse descaso e esse desconhecimento sobre o papel da ciência no desenvolvimento econômico.
O senhor assume a SBPC num momento em que o negacionismo foi explicitado na pandemia. Quais os impactos disso para uma nação, em diferentes dimensões?
Um efeito imediato é que mata gente. Pessoas se recusaram a se vacinar nos EUA, na Europa há negacionistas, na França tem tido manifestações grandes contra a vacina. Agora, as pessoas que estão morrendo nos EUA são as que não quiseram ser vacinadas. O primeiro grande problema do negacionismo é que ele não é inocente, ele mata, não é apenas uma opinião. Fake news matam pessoas. E disso decorre uma desconfiança em relação à ciência, que é um fenômeno que precisa ser mais estudado.
Temos hoje uma série de setores que não crê na ciência, na autoridade dela, e prefere apelar para a superstição, conselhos sem fontes verificáveis. É curioso, mas talvez isso seja uma reação contra o conhecimento, contra os direitos humanos. Talvez haja pessoas que se sentiram de alguma forma alijadas deste tempo novo. Vamos fazer um paralelo com a globalização. A globalização foi muito positiva para pessoas que se sentiram muito bem num universo mais aberto, mais plural, com menos fronteiras. Aí tivemos o plebiscito do Brexit, que em boa parte foi um ressentimento de pessoas que se sentiram alijadas – para usar um termo de Shakespeare – deste admirável mundo novo e reagiram.
Creio que há reação de pessoas que não se sentem muito à vontade quando você começa a ter uma sociedade com menos preconceito, com mais aceitação do lugar da mulher, mais aceitação do lugar do negro, da população LGBTQI+, mais espaço para o conhecimento científico. Tudo isso veio junto, é um mundo de paz, de mais igualdade e justiça, mas isso chocou certas pessoas, ou por preconceito ou por medo de perderem lugares e privilégios. Desde 2008 tivemos uma crise econômica significativa mundo afora, e há pessoas que culpam por essa crise esses novos costumes, esses novos valores, e que pensam que uma sociedade mais conservadora seria uma sociedade mais adequada.
Parece-me que o negacionismo faz parte de uma volta ao passado, um passado mítico, harmônico, em que cada um “conhecia o seu lugar”. Aqui no Brasil há uma expressão horrorosa, de que o negro sabe qual é o seu lugar. Lembro-me de ter ouvido isso nos anos 60, quando houve as grandes manifestações norte-americanas de igualdade dos negros. Vi pessoas dizendo que aqui no Brasil nós não tínhamos problema com isso porque o negro conhece o seu lugar, ou seja, o negro aceitaria ser subserviente, subordinado. O que é totalmente absurdo, sem base ética. E para muitas pessoas isso era correto, o justo. Creio que quando no mundo as pessoas começam a clamar pela igualdade de direito, isso é chocante para algumas pessoas que se sentem, equivocadamente, prejudicadas.
No Brasil houve um efeito paradoxal do negacionismo, porque as pessoas começaram a celebrar a vacina com o slogan “viva a ciência”? Isso ainda é muito pequeno para superar essa reação anticonhecimento que o senhor menciona?
Aqui no Brasil temos pesquisas conflitantes. Há uma pesquisa dizendo que 20% dos brasileiros acreditam que a Terra é plana. É um número minoritário, mas significativo. São pessoas que tiveram ensino fundamental. Como a pessoa passa pelo ensino fundamental e acredita que a Terra seja plana? Por outro lado, outra pesquisa nos diz que 95% dos brasileiros confiam na ciência. Então não dá para ter 20% de terraplanistas.
O nosso problema maior é que em posição de poder, no governo federal e em órgãos que têm muito impacto sobre a sociedade, como certas igrejas, temos pessoas que difundem a superstição, o contrário do conhecimento científico. Essas pessoas têm impacto na definição de políticas públicas. Veja o caso do presidente da República: é visível que ele quer a reeleição e é sabido que ele se opôs a todas as medidas de contenção da covid. Agora, se ele tivesse adotado uma política oposta, se tivesse liderado o Brasil nas medidas de profilaxia contra a doença, se tivesse se batido em favor da vacina, se reelegeria com a maior facilidade. O fato de que o presidente perde popularidade é um sinal de que a maior parte da população está valorizando a ciência, o conhecimento rigoroso, os direitos humanos, valores que para ele não são preciosos.
No Brasil temos um problema com vários componentes. Os cientistas têm um problema de comunicação com a sociedade, de maneira mais didática e direta. E temos as fake news, deep fakes, pós-verdade. Quais desafios o senhor vê pela frente nesse contexto?
Deveríamos mirar no exemplo de áreas médicas. A medicina foi capaz, nos últimos 20 anos, de fazer comunicação muito boa com a sociedade sobre uma serie de cuidados com a saúde, por exemplo: os riscos da ingestão de gordura para o colesterol, que o açúcar não é positivo, realizar exames periódicos. Temos vários cientistas que foram capazes, entre eles o Dráuzio Varela, de fazer essa comunicação com o grande público. E temos políticas de Estado que entraram nessa direção. O Bolsa Família, por exemplo, requer que a beneficiária grávida faça todos os exames gestacionais. Isso salvou muitas vidas e, ao mesmo tempo, trouxe muito conhecimento sobre a ciência da saúde.
O que nos falta é fazer com que outras ciências também cheguem ao grande público. Isso depende de haver demanda e haver oferta. A demanda da área de saúde é mais forte do que qualquer outra. Educação não tem a mesma popularidade política, porque a ignorância não causa sintomas. Ninguém sente dor no pé porque desconhece alguma questão da educação. O jornalismo científico cresceu muito nas últimas décadas, mas muito tem que ser feito. Eu seria muito favorável a termos spots nas redes de televisão explicando pontos em que a ciência melhora a vida das pessoas, fazendo com que o conhecimento não fique só nas universidades ou só nos gabinetes de pesquisadores e doutores.
Outro braço do negacionismo tem ligação com a mudança climática. O momento é grave, com fenômenos extremos no mundo. Como o senhor enxerga o Brasil nesta discussão?
O Brasil tem tradição em pesquisa de mudança climática importante. O professor Carlos Nobre, que eu nomeei presidente da Capes quando era ministro de educação, é uma das grandes autoridades no assunto, assim como o vice-presidente da SBPC, professor Paulo Artaxo. Os cientistas brasileiros e a academia brasileira conhecem muito bem esse assunto, temos pesquisas a respeito que detectam impacto no regime de chuvas e secas no Brasil. O Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), cujo diretor foi forçado a pedir demissão pelo governo Bolsonaro antes de concluir o mandato, diz a mesma coisa: as mudanças climáticas trazem uma série de efeitos negativos, e isso vai alterar a geografia do plantio brasileiro. E, no entanto, temos uma negação por parte do governo brasileiro.
O Ministério do Meio Ambiente, paradoxalmente, não militou até agora a favor do meio ambiente, mas contra. Assim como o Ministério da Saúde não favoreceu o combate à covid, ao contrário, pecou por inércia e inépcia. Temos uma das maiores áreas verdes do mundo, muita riqueza na Amazônia. Floresta vale muito mais de pé do que cortada. Quando a gente olha fotos do ex-ministro [Ricardo] Salles na frente de árvores cortadas, vê que elas tinham centenas de anos. Poderiam ter sido alvo de pesquisas sobre evolução e regime climático na Amazônia em vez de terem sido enviadas para virar móveis sabe-se lá onde. Há um desperdício muito grande, um equívoco de política, inclusive econômica. Muita gente não percebe que a ciência é decisiva para melhorar a qualidade de vida das pessoas. Esse governo é muito resistente ao conhecimento. A pressão deve existir, porque, afinal de contas, há uma sociedade que se organizou em favor de uma série de causas nobres. Temos que continuar lutando para ver se conseguimos melhorar o meio ambiente e a educação.
Em relação à educação, temos assistido à negligência e silêncio do MEC durante todo o período da pandemia. Como ex-ministro, crê que será possível recuperar o desmonte e desarticulação na pasta após esta gestão?
O MEC tinha que ter assumido a liderança. O Ministério da Educação deveria ter chamado a si a elaboração de protocolos de como lidar com o ensino remoto emergencial. Deveria ter tomado a iniciativa de colocar dinheiro público na construção de torres de banda larga em periferias, bem como distribuição de tablets a alunos de baixa renda no ensino público. Um projeto de lei [para acesso à internet por alunos carentes e professores] foi vetado por Bolsonaro, derrubado o veto, e na semana passada o presidente baixou medida provisória praticamente anulando essa lei, o que me parece errado no método e no mérito. Precisaremos, quando o MEC reassumir suas funções, e espero que o faça ainda neste mandato presidencial, correr atrás do prejuízo. Vamos ter que construir uma série de alternativas. O MEC precisa assumir seu papel. Já há cálculos de que perdemos quatro anos [de aprendizagem].
A probabilidade de mudanças nas áreas ambiental e educacional seria para um próximo mandato, se Bolsonaro não for reeleito. Qual a perspectiva real na sua opinião?
Em nome da SBPC não posso opinar partidariamente. Como cidadão e analista posso dizer que, neste momento, aparentemente o presidente tem poucas chances de reeleição, dado o fato de que obstou uma série de políticas que teriam sido positivas para a saúde, educação, meio ambiente e inclusão social.