Raimundo Pereira: As contas do Brasil são da sua conta

O governo Temer está completando a armação da nova crise do desenvolvimento dependente do País.

Raimundo Rodrigues Pereira*

1. O Brasil está saindo de uma das maiores crises econômicas de sua história. Faz isso dentro do padrão de desenvolvimento das economias capitalistas dependentes: atrai capital estrangeiro; esses capitais promovem um surto de crescimento; esse surto não se sustenta, por falta de recursos em moeda estrangeira para compensar seus custos; e, em crise, para cobrir o déficit, o crescimento interno é contido, as condições de exploração da mão de obra se intensificam e, de um modo geral, se vende patrimônio nacional na bacia das almas.

A recessão dos anos 2015-2016, dos governos Dilma-Temer, tem o papel das três anteriores – a dos anos 1981-1983, do final dos governos militares; a dos anos 1990-1992, do início dos governos liberais, com Fernando Collor de Mello; e a dos anos 1998-1999, da continuidade desses governos, com o segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso. Cada uma delas preparou o Brasil para retomar o ciclo logo a seguir, em condições piores. Esse padrão de desenvolvimento econômico não é uma imposição dos céus, da natureza geral do desenvolvimento das economias: se dá num contexto de amplas lutas sociais e políticas.

O caminho da dependência do Brasil, nesse sentido, foi aberto a ferro e a fogo, com o golpe militar de 1964 que derrubou o governo de João Goulart e pôs fim à longa Era Vargas, iniciada com a Revolução de 1930. Os governos liberais de Collor e FHC surgiram na esteira de uma convulsão política global, a do desmantelamento da União Soviética em 1989, quando pareceu não haver mais alternativa ao modelo de desenvolvimento econômico-financeiro dependente do dólar, tornado o centro das finanças globais, ao final da II Guerra Mundial, com a Conferência de Bretton Woods, nos EUA, em 1945. E a recessão nos governos Dilma-Temer preparou a articulação política do impeachment que afastou, com um golpe parlamentar, a presidente eleita – provisoriamente, em 12 de maio, após 16 meses de seu segundo mandato, e em caráter definitivo, de 31 de agosto de 2016 até o final deste ano de 2018, quando por suposto, estará eleito um novo presidente para o lugar do antigo vice que a substituiu, Michel Temer.

Antes de prosseguir, duas observações:

1) a recessão atual não é a maior da história econômica do País, como dizem muitos. A do fim da ditadura militar foi pior. Na de agora, ocorreram duas quedas do Produto Interno Bruto do País, de -3,5%, e já em 2017 a economia parece ter se recuperado – segundo o IBGE, com um crescimento em torno de 1%. A do final do regime militar foi maior, durou praticamente três anos: houve duas quedas do PIB, mais ou menos do mesmo valor que as recentes, uma de 4,4% e outra de 3,4%, mas mediadas, em 1982, por uma estagnação, um crescimento do PIB de apenas 0,2%.

2) a crise atual é seguramente pior do ponto de vista político. A da queda do regime militar ajudou a desencadear um amplo processo de mobilização política, que persistiu e se fortaleceu com as duas crises seguintes, dos governos liberais, a de Collor e a de FHC e cujo desdobramento último foi a subida ao poder dos governos liderados pelo Partido dos Trabalhadores. O problema é que, como confessou recentemente o grande líder do partido, Luís Inácio Lula da Silva, para chegar ao poder em 2002 o PT ignorou a questão da dependência econômico financeira do País. E, hoje, embora seja a principal força de oposição ao governo nascido do golpe parlamentar e à sua tentativa de sair da crise aprofundando o caminho da dependência, o PT está visivelmente enfraquecido.

2. O debate sobre a dependência econômico-financeira do Brasil tem uma longa tradição. Fazendo uma grande simplificação para introduzi-lo, vamos apresentar três gráficos. O primeiro é o das taxas médias de crescimento do PIB brasileiro nas suas conhecidas etapas históricas: a República Velha, a Era Vargas, a Ditadura Militar, a Nova República, os governos liberais de Collor e FHC e os governos petistas, de Lula e Dilma.

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O que se vê? Primeiro, a economia brasileira parece ter tido uma progressão, para mais crescimento, da República Velha para a Era Vargas e, desta, para a Ditadura Militar. Segundo, depois dos militares, a economia brasileira parece despencar: cai com a Nova República do governo José Sarney; cai mais com os governos liberais de Collor e FHC; e nem mesmo os governos petistas, de Lula e Dilma, com todo o estímulo que tentaram dar à economia, conseguiram elevar o patamar de crescimento de modo mais expressivo.
Como explicar uma coisa e outra, a subida e a descida? O que parece igual na Era Vargas e na Ditadura Militar é o fato de nos dois períodos ter havido grande intervenção estatal na economia e a industrialização do País. E o que é bem diferente? É a natureza da intervenção e da industrialização nos dois períodos. Muito resumidamente se pode dizer que na Era Vargas se desenvolveu um esforço essencial para a industrialização brasileira de base com apoio nas estatais – com Volta Redonda, a Vale do Rio Doce, a Petrobras e a Eletrobras; e sob os militares, o essencial foi a intervenção estatal na atração de capital estrangeiro para o desenvolvimento da indústria de bens de consumo duráveis, destacadamente, a indústria automobilística estrangeira.

No auge do “milagre econômico” dos governos militares – de crescimento econômico acima de 10% em média, nos anos 1968-1973 – o semanário Opinião, do empresário nacionalista Fernando Gasparian, publicou a capa “Dívida Externa do Brasil”, 10 bilhões de dólares na qual se demonstrava que o “milagre” estava sendo feito às custas de um enorme aprofundamento da dependência externa do País, um preço que logo seria cobrado.

Esse preço pode ser visto com relativa clareza no segundo gráfico, o do saldo de transações correntes do Brasil, abaixo:

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O gráfico mostra, em porcentagem do PIB, o saldo entre a soma de tudo que o país recebe pelo que vende a outros países e a soma de tudo que ele paga pelo que compra. Como se vê: 1) é uma situação de déficit quase permanente; 2) e os déficits maiores, abaixo de 3,5% do PIB, marcam os momentos de deflagração das crises recentes do desenvolvimento dependente brasileiro: o do início do segundo governo Dilma; o dos governos liberais de Collor e FHC; e o mais fundo ainda, a crise após o “milagre” do governo militar.

3. O terceiro gráfico, das taxas de juros reais praticadas no Brasil depois da ditadura militar, ajuda a entender as decisões que levaram os governos liberais a montarem o esquema que atrelou a moeda nacional ao dólar e agravaram a dependência financeira do País. Foi uma construção demorada.

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• De 1965 até o começo dos anos 1980, os juros reais no Brasil oscilam – ora são positivos ora são negativos – mas não muito. É um período no qual a inflação é baixa e os salários são mantidos arrochados pela repressão aos trabalhadores e ao movimento sindical.

• Os anos do fim da ditadura e da Nova República (1981-1990) são de ampliação da força do movimento popular, com grandes manifestações contra a carestia, com o surgimento das greves e grandes lideranças sindicais e políticas desse movimento das quais Lula foi a expressão maior. Mas, a inflação passa, então, a oscilar muito, os juros reais ora são muito positivos, ora são muito negativos e isso a despeito dos sucessivos planos de estabilização da moeda nacional por meios chamados de heterodoxos, como o Plano Cruzado, o Plano Bresser, o Plano Verão e o Plano Collor.

Em maio 1992, já lutando para se manter no poder, ameaçado por um processo de impeachment, Collor tenta uma manobra que teve extraordinária aceitação pelo grande capital financeiro internacional – coloca no comando da alta finança do País, três homens já famosos em Wall Street:

• como ministro da Fazenda, Marcílio Marques Moreira, ex-embaixador do Brasil em Washington, consultor do banco de investimentos americanos Merrill Lynch;

• como presidente do Banco Central, Francisco Gros, que também fora diretor de banco de investimentos em Wall Street, o Kidder Peabody;

• e na área externa do banco, Armínio Fraga, associado de George Soros no famoso Quantum Fund.

A trinca de financistas coloca a taxa de juros de curto prazo do Brasil, no overnight, nos níveis mais altos do mundo, de cerca de 40% de rendimento real, descontada a inflação, em termos anuais. Isso tem um grande peso na dívida pública, mas em compensação atrai dólares em abundância para o País. Com isso o Banco Central começa a acumular reservas em dólar e com base nelas, em 1994, FHC lança o Plano Real e logo a seguir torna-se presidente do Brasil.

No gráfico se vê a crise dos planos de FHC, em 1998. O governo tinha criado o real ao par com o dólar: 1 dólar = 1 real na entrada e 1 real =1 dólar na saída. Assim, um investidor de fora que entrasse com 1 milhão de dólares, ao sair com 1,2 milhão de reais – um lucro de 20%, em reais – receberia 1,2 milhão de dólares, manteria seu lucro em dólar, portanto.

Ou seja, não seria perturbado por uma eventual desvalorização da moeda brasileira de 20%, que lhe comeria todo o lucro. Esse esquema no entanto, não funcionou. Com o real supervalorizado – chegou a ser cotado a 1,2 dólar – as compras no exterior se avolumaram e o déficit em transações correntes do Brasil surgiu de novo, espetacularmente.

No gráfico se vê um repique de elevação dos juros, para cerca de 30% reais, no final dos anos 1990.

4. A solução dada por FHC para a nova crise foi internar o País no Fundo Monetário Internacional (FMI), logo após sua reeleição em 1998, tendo feito, antes disso, um pacto sigiloso com o Fundo e a equipe do Tesouro dos EUA para fazer aprovar no Brasil uma nova norma para gestão da dívida pública, a Lei de Responsabilidade Fiscal, que iria também alterar a lei dos crimes da Presidência da República e cuja primeira grande aplicação foi permitir o impeachment de Dilma Rousseff em 2016, pela intenção de gastar uns trocados numa situação em que se previa déficit nas contas públicas no ano.

Vale a pena recordar:

• o Congresso aprovou para Dilma em 2015 um orçamento de 2 trilhões e 938 bilhões de reais;

• Dilma deixou de gastar 25% desse valor: contingenciou 61 bilhões, não liberou 495 bilhões e não pagou 137 bi já liberados. Ou seja, fez um dos maiores cortes orçamentários da história, que lançou o País na recessão e no desemprego;

• mas uma Comissão Especial do Impeachment, (CEI) formada no Senado, encontrou nas contas de Dilma, nas 75 mil ações orçamentárias autorizadas, três ações, ou seja, 0,004% do total de ações, cujos decretos foram assinados quando já se previa que não haveria superavit primário suficiente para pagar juros da dívida. As três ações representavam um gasto de 25,1 milhões de reais, 1 décimo de milésimo do orçamento aprovado.

E o que é pior, quando a defesa de Dilma argumentou que os tais gastos não existiram de fato em função dos cortes brutais no orçamento feitos pela presidente, o senador Antônio Anastasia, relator da CEI, disse em seu parecer simplesmente: “Argumenta a defesa, contudo, que a simples abertura de créditos suplementares, por si só, não afetaria a obtenção da meta de resultado primário. Seria necessário executá-los com efetivo desembolso para que se pudesse falar em incompatibilidade com a meta fiscal. E essa execução seria controlada pelos decretos de contingenciamento. Ocorre que a execução dos créditos suplementares também não constitui o escopo da Denúncia. O que se questiona é o ato de abertura dos créditos, e não a sua execução. Reitero e leio novamente: o que se questiona é o ato de abertura dos créditos, e não a sua execução”.

Vejam bem: Anastasia disse, e repetiu, no seu parecer, que o crime não é a ação, mas a intenção. Ter havido gasto ou não, para ele, não importava. Foi, como dissemos em outras ocasiões, um julgamento do tipo medieval. A acusação não se empenhou em levar testemunhas para provar a existência material do crime. O crime era imaterial. Não era preciso prova material de sua existência. Era como o julgamento das bruxas, por exemplo. Elas eram julgadas não por seus atos, mas por suas intenções. Elas tinham o propósito de fazer maldades.

No nosso caso: Dilma se recusou a confessar o crime? Pior para ela: se as bruxas resistiam à tortura e não confessavam suas intenções era, finalmente, a prova cabal de que tinham um pacto com o demônio.

(*) Jornalista, foi editor dos semanários Opinião, Movimento e das revistas Realidade, Reportagem e Retrato do Brasil. Trabalhou na Veja, IstoÉ e CartaCapital. Atualmente é diretor da Editora Manifesto que está em campanha: “Por um novo semanário, em defesa da independência nacional, da democracia e da elevação do padrão de vida material e cultural dos trabalhadores”.

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