Redes sociais sem sede no Brasil viram brecha indesejável para ações do TSE

O amplo planejamento executado pelo Tribunal Superior Eleitoral para garantir a lisura do processo eleitoral de 2022 em meio a extremismo político e campanhas de desinformação no Brasil, apesar de eficiente, conta com uma brecha incômoda, a um ano do pleito: a migração de eleitores, candidatos e influenciadores para redes sociais sem sede no Brasil.

São plataformas e fóruns novos que, fora do alcance da legislação nacional, não fazem parte do rol de empresas que se tornaram parceiras do TSE no programa de enfrentamento à desinformação inaugurado em 2020 — ou que ao menos foram constrangidas a tomar posição em relação ao tema.

A mais proeminente delas parece ser a Gettr, que conta com contas oficiais do clã Bolsonaro e foi sugerida aos seguidores pelo próprio presidente da República, o político com a presença online mais expressiva e que, não raro, tem conteúdo tirado do ar ou de alcance restringido devido a violações dos termos de conduta das redes mais populares.

Gettr entrou no ar em julho já com a pecha de rede social pró-Trump. Foi criada por Jason Miller, que integrou a equipe do ex-presidente dos Estados Unidos. O aplicativo é descrito como “baseado na liberdade de expressão e que rejeita a censura política e a cultura do cancelamento” e tem atraído políticos e apoiadores da extrema direita.

Em outubro, Eduardo Bolsonaro usou-a para postar uma live do presidente que fora removida por Facebook, Instagram e Youtube. Trata-se de trecho do mesmo vídeo em que Jair Bolsonaro associou, sem evidências científicas, a vacina contra Covid-19 ao desenvolvimento da Aids por portadores do vírus HIV.

Pelo mundo, há outras redes que surgiram com o mesmo objetivo, como Gab e Parler.

No TSE, o tema preocupa. Em evento na segunda-feira (22/11), o presidente do tribunal, ministro Luís Roberto Barroso, afirmou que a corte tem defendido que só possam operar as mídias sociais e plataformas que tenham sede ou representação no Brasil, para que exista accountability [responsabilização] de quem cumpre a legislação eleitoral brasileira.

“Esse é um ponto muito importante. Nós já fizemos essa solicitação ao Congresso Nacional”, disse.

Brecha eleitoral?

Na prática, redes sociais e aplicativos sem sede ou representação no Brasil se encontram fora do alcance da legislação brasileira. O meio de obriga-los a cumprir determinações judiciais é por carta rogatória, o expediente usado pelo Judiciário brasileiro para pedir à Justiça de outros países a realização de atos jurisdicionais.

Advogados consultados pela ConJur têm dúvidas sobre a efetividade da medida: é um processo demorado e burocrático, que passa por autoridades políticas e é melhor cumprido se a legislação estrangeira coincide com a brasileira. Em regra, leva meses. Para a urgência que as campanhas de desinformação exigem, torna-se inviável.

Existem outros caminhos, embora mais sensíveis e problemáticos. Um deles é limitar o acesso de brasileiros a esses sites via bloqueio em provedores de backbone — rede responsável pelo envio de dados entre diferentes localidades.

Outro é forçar, por decisão judicial, as lojas de aplicativo a vetarem a possibilidade de download de apps usados para espalhar desinformação. A legislação brasileira ainda permitiria punir o candidato beneficiado por campanhas de desinformação, mesmo que não seja o operador delas. Não são saídas ideais.

“Mais importante do que a punição é não deixar que a vontade do eleitor seja influenciada de forma maliciosa. Não adianta punir e as informações falsas continuarem sendo divulgadas. A dificuldade do Judiciário de operacionalizar essa medida é enorme”, apontou o advogado Joaquim Pedro de Medeiros Rodrigues.

Para ele, a hipótese de candidatos, eleitores e influenciadores migrarem para redes sociais e aplicativos sem sede ou representação no Brasil configura brecha relevante para o processo eleitoral e difícil de ser atacada. Para outros juristas consultados, nem tanto.

Marcelo Pelegrini diz que a avaliação é difícil porque é um tema afetado por muitas variáveis: alcance da campanha de desinformação, veto e controle pelas plataformas, a desinformação em si, jurisdições internacionais. “Não tem como fechar um diagnóstico”, afirma.

Já Fernando Neisser destaca que mesmo nos Estados Unidos pós-presidência de Donald Trump, a tentativa de levar as pessoas às redes sociais sem controles “ideológicos” fracassou: resumiu-se a núcleos pequenos que conversam entre si. “O grosso da população está na rede social que todo mundo está. Você não consegue gerar uma chave e, de repente, falar ‘vamos todos migrar para o programa tal’. Não consigo acreditar que isso tenha efeito prático”, opina.

Por outro lado, alerta para um cenário de maior potencial: a possibilidade de que os esquemas de inseminação de fake news sejam multimodais. Essas campanhas seriam geradas em aplicativos que não restringem tais práticas e, a partir deles, disseminadas nas plataformas mais populares com o restante da população. “Isso torna mais difícil para as próprias plataformas fazerem o controle”, explica.

Legislação e contra-ataques

No Brasil, o marco para o uso de fake news eleitorais foi a eleição de 2018, por meio do chamado “gabinete do ódio” já identificado em inquéritos do Supremo Tribunal Federal e que, segundo o próprio TSE, utilizou-se de disparos em massa via WhatsApp para atacar adversários em benefício da candidatura de Jair Bolsonaro e Hamilton Mourão.

Desde então, o TSE fechou o cerco. Determinou a suspensão do repasse de valores de monetização de redes sociais a canais e perfis dedicados à propagação de desinformação sobre o sistema eleitoral brasileiro; promoveu a primeira cassação de parlamentar por fake news; e modernizou a jurisprudência sobre uso abusivo dos meios de comunicação. Seria difícil mandar recado mais claro que isso.

A batalha passou a ser travada no campo legislativo. Na véspera do 7 de setembro, data prevista para manifestações antidemocráticas no país, Bolsonaro assinou Medida Provisória que limitava o poder de remoção de conteúdo pelas redes sociais. A norma foi suspensa pela ministra Rosa Weber, do STF, e devolvida pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG).

Mais tarde, o governo federal enviou ao Congresso um projeto de lei com o mesmo objetivo: alterar o Marco Civil da Internet para prever regras relacionadas à moderação de conteúdo. O PL 3.227/2021 aguarda despacho do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL) e promete ser tratado com “boa vontade” por Rodrigo Pacheco no Senado.

O TSE tanto leva a sério a questão legislativa que ela constitui um dos eixos do programa de enfrentamento à desinformação. O objetivo é “a revisão e a elaboração de normas que combatam a prática da desinformação no âmbito da competência da Justiça Eleitoral, especialmente no que se refere às campanhas eleitorais”.

Uma das discussões que é acompanhada de perto é a do Projeto de Lei 2.630/2020, chamado PL das Fake News, o único que se aproxima do que o ministro Barroso propugna para o tema. Em 4 de novembro, o relator, deputado federal Orlando Silva (PCdoB-SP) apresentou substitutivo em que ampliou o alcance da norma.

O parágrafo 2º do artigo 1º do PL agora indica que a lei “aplica-se, inclusive, aos provedores de redes sociais e de serviços de mensageria privada sediados no exterior, desde que ofertem serviço ao público brasileiro ou que pelo menos uma integrante do mesmo grupo econômico possua estabelecimento no Brasil”.

Para Fernando Neisser, o grau de permeabilidade e de influência que os apps passaram a ter na discussão e campanha políticas torna necessário a existência de algum tipo de controle. “Se da televisão, que é algo que hoje talvez tenha menos influência que esses programas, a gente exige concessão e controle, por que não esperar algo minimamente próximo de plataformas tão relevantes?”, indaga.

Joaquim Pedro de Medeiros Rodrigues entende a preocupação, mas acha temerária qualquer forma de regulamentação dos meios de comunicação. “Essa é uma questão para o Congresso Nacional resolver. Acho que teremos uma dificuldade”, prevê. Já Marcelo Pelegrini concorda com a discussão legislativa e define-a como “um problema muito sério”.

Ainda na segunda-feira, o ministro Barroso tratou do tema e afirmou que todo o mundo está procurando uma forma de regulação das mídias sociais que não interfira com liberdade de expressão, mas que não permita que sejam instrumento de destruição da democracia. “Desmonetização e eventualmente até procedimentos de natureza penal são o caminho para enfrentar não críticas, mas ataques desestabilizadores”, disse.

Revista Consultor Jurídico

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