Saiba por que é preciso ignorar Bolsonaro e continuar a usar máscara mesmo vacinado contra a covid-19
A OMS e infectologistas ressaltam que, ao contrário do que afirmou o presidente, além do risco de reinfecção, pessoas imunizadas ainda podem contrair formas leves da doença e transmitir o coronavírus
O presidente Jair Bolsonaro surpreendeu o país na quinta-feira ao anunciar que solicitou ao ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, um parecer para “desobrigar” o uso de máscaras por pessoas vacinadas contra a covid-19 ou que já tenham contraído a doença. Nesta sexta-feira, retomou a afirmação a jornalistas, mas dizendo que a decisão caberá apenas ao próprio Queiroga —que depôs pela segunda vez na terça-feira na CPI da Pandemia— e que poderia ser aplicada ou não por governadores e prefeitos. “Ontem pedi para o ministro da Saúde fazer um estudo sobre máscara. Quem já foi infectado e quem tomou a vacina não precisa usar máscara. Mas quem vai decidir é ele, vai dar um parecer”, afirmou o presidente. A afirmação de Bolsonaro, entretanto, não tem base científica. Infectologistas e a própria Organização Mundial da Saúde (OMS) reafirmam que o uso de máscaras é essencial no controle da pandemia, especialmente em cenários como o do Brasil, que soma mais de 482.000 mortos pela doença, onde a cobertura vacinal ainda é baixa.
“Ainda não é o momento para avaliar a suspensão do uso de máscaras. O país tem baixíssima cobertura de vacinas e elevada taxa de contágio, com uma possibilidade de terceira onda em vários Estados”, alerta Valéria Paes, médica infectologista e professora da Universidade de Brasília (UnB). De acordo com os dados da OMS, replicados pelo Our World in Data, apenas 11,1% da população brasileira está completamente imunizada, ou seja, recebeu as duas doses do imunizante contra a covid-19 (24,4% receberam a primeira dose). A média móvel de novos casos da doença no país está acima das 50.000 confirmações diárias, de acordo com o próprio Ministério da Saúde.
“Além disso, as vacinas disponíveis no Brasil são mais eficazes em prevenir formas graves da doença, mas ainda não há comprovação de que elas reduzam totalmente o risco de contágio”, ressalta Paes. O imunizante mais usado contra a covid-19 no país, a CoronaVac, desenvolvido pelo laboratório chinês Sinovac e produzido pelo Instituto Butantan, apresentou eficácia de aproximadamente 50% no estudo brasileiro. Ou seja, é uma vacina eficaz para evitar mortes e internações, mas os vacinados ainda podem contrair e transmitir o vírus. “Por isso a fala do presidente Bolsonaro é bastante equivocada e totalmente descabida, porque quem está vacinado pode ter a doença de forma assintomática ou pouco assintomática e transmiti-la para os 90% da população que estão em risco de parar na UTI”, comenta Mirian Dal-Den, infectologista do Hospital Sírio-Libanês. O maior estudo já feito sobre a carga viral nos pacientes de covid-19, com mais de 25.000 participantes e publicado em pelo maio confirmou que pessoas sem sintomas da doença podem ser tão contagiosas quanto pacientes hospitalizados. “Há ainda o risco de reinfecção por parte de pessoas que já contraíram o Sars-Cov-2. Para prescindir do uso de máscaras, o Brasil deveria ter uma transmissibilidade no mínimo três vezes menor do que a que registramos agora”, acrescenta a especialista.
Nos Estados Unidos, o Governo desobrigou o uso de máscaras em meados de maio, quando mais da metade da população já havia recebido as duas doses da vacina —o uso ainda é obrigatório em locais como hospitais e aviões. Além disso, o país utiliza principalmente os imunizantes da Pfizer/BioNTech e da Moderna, desenvolvidos com a tecnologia de RNA mensageiro e que possuem eficácia acima de 95%, oferecendo elevada proteção. “Ainda assim, nenhuma vacina oferece proteção total. Todas elas têm um percentual residual de possibilidade de infecção”, explica Dal-Den.
O neurocientista e pesquisador Miguel Nicolelis, colunista do EL PAÍS, lembra que, mesmo nos Estados Unidos, a comunidade médica e cientifica refuta a falta de obrigatoriedade no uso de máscaras. “Os especialistas falam atualmente na necessidade de 75% da população imunizada para que se possa cogitar com segurança uma medida como essa”, diz ele, citando uma pesquisa feita por The New York Times com mais de 700 epidemiologistas
“A máscara é um recurso valioso porque serve tanto para a proteção individual quanto de terceiros. No futuro, seu uso pode ser prescindido no Brasil, primeiramente em locais abertos, mas isso quando tivermos maior cobertura vacinal e menor taxa de ocupação nos hospitais”, explica Valeria Paes. De acordo com o último o boletim do Observatório Covid-19 Fiocruz, publicado na quarta-feira (09/06), o cenário no país é de “alto risco”, com pelo menos 20 Estados e o Distrito Federal, além de 17 capitais, com taxas de ocupação hospitalar iguais ou superiores a 80%.
Paes ressalta ainda que a desobrigação do uso de máscaras geraria animosidade social e confusão em relação aos protocolos adotados em diversos ambientes, como os aviões, por exemplo. “Isso dificulta os protocolos de fiscalização. Se um fiscal vê uma pessoa sem máscara, como essa pessoa vai provar que já foi totalmente imunizada contra a doença?” questiona.
Após as declarações de Bolsonaro, a própria OMS reforçou o pedido para que todas as pessoas, incluindo as vacinadas, usem máscaras contra a covid-19. “Deixamos a cada país tomar sua decisão, mas essa [o uso de máscaras] é a nossa recomendação. Vacinas são muito boas para evitar doenças. Mas não são um tratamento e só agem se você já foi infectado”, disse Margaret Harris, porta-voz da organização, à coluna do jornalista Jamil Chade (que também assina no EL PAÍS) no UOL.
Drauzio Varella, um dos médicos brasileiros mais renomados, também insiste na recomendação: “A essa altura do campeonato, depois de tantos testes e estudos, o uso da máscara segue sendo uma das únicas medidas cientificamente comprovadas de controle da covid-19. Não faz sentido suspendermos o uso obrigatório quando apenas 11% da população está imunizada”, escreveu ele no Portal Drauzio, lembrando que os países que optaram por dispensar o uso obrigatório são exceção. “A recomendação da OMS e dos especialistas continua sendo a mesma: use máscara. Máscara salva”, conclui.