Se a educação fosse prioridade durante a pandemia, a vida estaria acima do lucro

Por Carolina Figueiredo Filho

Se a educação fosse prioridade durante a pandemia, a primeira medida a ser tomada pelas autoridades do país seria a revogação da Emenda Constitucional 95, que instituiu o teto de gastos para o conjunto das áreas sociais, constrangeu ainda mais os já escassos recursos destinados à educação e impactou irremediavelmente a escola pública por pelo menos 20 anos. Para garantir educação de qualidade aos cerca de 40 milhões de crianças e adolescentes em idade escolar no Brasil, com condições de acesso, permanência, segurança alimentar, materiais didáticos, profissionais em número adequado, seria indispensável o aumento do investimento público. Na contramão disso, enquanto esse dispositivo do teto de gastos parece intocável mesmo diante da maior tragédia sanitária do século, o governo Bolsonaro fez de 2020 o ano com o menor gasto em educação da década. Além disso, o bolsonarismo agiu junto aos lobistas para atacar o Fundeb – a principal fonte de financiamento da educação básica – e tentou articular para que uma parcela do cobertor já curto da verba pública fosse direto encher os bolsos das instituições privadas. Como se não bastasse, o presidente atuou para sabotar uma das grandes conquistas obtidas pelo movimento em defesa da educação pública durante a aprovação da Constituição Federal de 1988 e defendeu a desvinculação das receitas orçamentárias destinadas à educação, através da chamada PEC Emergencial. Optou-se por conformar um modelo de ensino remoto a custo zero e por criar mais oportunidades para a entrada da iniciativa privada por dentro da escola pública.

Se a educação fosse prioridade durante a pandemia, desde março de 2020, seria formado um comitê de crise com professores de vários níveis de ensino da rede pública, representação de estudantes e funcionários, pesquisadores da educação das universidades públicas brasileiras para discutir e decidir quais as medidas mais adequadas a serem tomadas em um momento excepcional de calamidade. Deveria haver planejamento diante da emergência e não consolidação do improviso como política pública. Um improviso que, no entanto, é também proposital: contribui para aprofundar a desregulamentação da legislação educacional existente, para acentuar a precarização da educação pública e para abrir ainda mais espaço para a sanha das corporações privadas. Com gestão democrática, planejamento sério e compromisso com a escola pública de qualidade para todas e todos, seria possível reorganizar o currículo, os métodos didáticos, os tempos, os ritmos, as rotinas, as avaliações para além da falsa disjuntiva “ensino remoto privatizado ou nada”. O modelo hegemônico em vigor ou tornou a educação inacessível, ou quando havia acesso, estimulava que os alunos ficassem por horas a fio na frente de uma tela, absorvendo informações e fórmulas. Há uma diversidade enorme de possibilidades para a educação durante o isolamento social que poderiam ser exploradas, tais como a distribuição massiva de livros e a construção de roteiros de estudo a partir das leituras, atividades guiadas a partir das medidas da casa e de tantas outras coisas do dia a dia, da observação orientada e sistemática dos movimentos do Sol, da Lua, do clima, das plantas, das propriedades dos alimentos, do funcionamento do próprio corpo, da execução de rotina de atividades físicas e artísticas, do estímulo à escrita de diários e cartas, da elaboração de mapas, etc. Ao invés disso, como mais um capítulo da reforma tributária concentradora de renda do Ministro da Economia Paulo Guedes, a Receita Federal proclama que “só ricos leem livros no Brasil” e propõe taxá-los para afastá-los ainda mais dos pobres.

Se a educação fosse prioridade durante a pandemia, a preocupação com as desigualdades sociais e educacionais que atravessam o Brasil nortearia o modelo a ser implementado. A internet e as tecnologias de informação e comunicação, sem sombra de dúvidas, seriam aliadas imprescindíveis para garantir o acompanhamento e o vínculo dos estudantes com sua escola e seus professores, embora não fossem o fundamento único, total e absoluto da educação. Para garantir que nossas crianças e jovens das mais distintas regiões e lugares do país tivessem condições de acesso, seria necessário fornecer equipamentos eletrônicos aos alunos e universalizar uma rede pública de internet. O ministro astronauta, contudo, opera para dar respaldo ao discurso e às políticas que negam o desenvolvimento da ciência e das inovações tecnológicas no país. Em combate aberto contra a democratização da sociedade e contra a população mais pobre, o presidente Jair Bolsonaro ainda vetou totalmente um projeto de lei que previa a garantia de acesso à internet a estudantes e a professores da rede pública.

Se a educação fosse prioridade durante a pandemia, os recursos e a estrutura dos Planos Nacionais de Transporte e de Alimentação Escolares seriam reorientados para que tanto os alimentos, quanto os livros, os materiais didáticos, os instrumentos necessários, os equipamentos eletrônicos chegassem na casa de cada estudante de forma inequívoca e segura. A articulação intersetorial com a saúde e a assistência social seria primordial. As escolas públicas, já que em contato direto e permanente com as comunidades, poderiam contribuir ainda com o monitoramento da COVID-19 nos bairros e com a distribuição de insumos de prevenção ao contágio.

Se a educação fosse prioridade durante a pandemia, seria redundante falar em retorno presencial seguro e, portanto, seria inadmissível sequer pensar em voltar presencialmente às escolas em meio ao pior momento das contaminações e óbitos. Desde o início da decretação da quarentena, o comitê de crise também se debruçaria em traçar um plano para a retomada segura das aulas presenciais, com previsão de mais contratação de profissionais por concurso público, menos alunos por sala, construção de mais escolas, reforma estrutural nas unidades já existentes para melhorar a ventilação, as condições de bebedouros, pias, refeitórios e banheiros, edificação de mais espaços ao ar livre (como quiosques, quadras cobertas, teatros de arena), testagem massiva da comunidade escolar, fiscalização rigorosa da Vigilância Sanitária, distribuição a contento de equipamentos de proteção individual para toda a equipe e o alunado, vacinação em massa. Em contrariedade a qualquer bom senso, durante todo o período de mais de um ano de vigência da pandemia, não houve adequação consistente de infraestrutura escolar para adaptar as quase 180 mil escolas públicas do país em relação às condições sanitárias exigidas, muito menos para equipá-las com mais instrumentos tecnológicos, bibliotecas, laboratórios, a fim de fortalecer o espaço escolar a longo prazo. As perspectivas reais de testagem e vacinação em larga escala continuam muito longe no horizonte.

Se a educação fosse prioridade durante a pandemia, o cuidado com a vida dos alunos, de suas famílias e dos profissionais da educação seria o principal balizador de qualquer política. Assim, jamais se cogitaria torná-la “serviço essencial”, para obrigá-la a funcionar a todo vapor independente da catástrofe que transformou nosso país no lugar que mais mata por COVID-19 por dia no mundo. A escola é, por excelência, um espaço de circulação e aglomeração, ou seja, um ambiente propício para maior disseminação do coronavírus, já que movimenta milhões de pessoas. Aqueles que agora propõem oportunamente incluir a educação enquanto “atividade essencial” são os mesmos que atentam contra a escola pública diariamente, que atuam para reduzir seus recursos, para sucateá-la, que têm as professoras e os professores como inimigos, que negam o acesso à ciência e ao conhecimento sistematicamente, que agem em nome de interesses econômicos, que operam para manter o povo em condições de pobreza, fome, desemprego, que propuseram uma espécie de “ração humana” no lugar da merenda escolar, que concebem a educação como um bem ou mercadoria. A vida estaria acima do lucro, se a educação fosse prioridade durante a pandemia.

Carolina Figueiredo Filho é professora da rede pública paulista, militante do Coletivo Quinze de Outubro e doutoranda na Faculdade de Educação da Unicamp

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