‘Se acontece na Inglaterra, ministro renuncia’: a visão de observadores no exterior sobre conversas de Moro e Dallagnol

A troca de mensagens por um aplicativo entre o juiz Sérgio Moro – atual ministro da Justiça e Segurança Pública – e o procurador da República Deltan Dellagnol, reveladas recentemente pelo site The Intercept, ferem os princípios de independência e neutralidade, básicos em Judiciários de várias partes do mundo, na opinião de juristas e acadêmicos internacionais e brasileiros ouvidos pela BBC News Brasil.

Os especialistas criticam a proximidade entre acusador e juiz – ambos protagonistas dos processos julgados no âmbito da Operação Lava Jato -, como na discussão de estratégias conjuntas e mesmo antecipação de sentenças.

“Se o juiz é mesmo juiz que preside o julgamento, então, seria errado…e seria problemático que eles estivessem discutindo estratégias, abertamente ou não”, avalia Jonathan Rogers, professor e vice-diretor do Centro de Justiça Criminal da Universidade de Cambridge.

As mensagens indicam que Moro teria sugerido ao Ministério Público Federal trocar a ordem de fases da operação, indicado uma testemunha, antecipando ao menos uma decisão judicial e aconselhado o promotor sobre o escopo da acusação.

Em troca de mensagens em 15 dezembro de 2016, por exemplo, o assunto eram as delações da Odebrecht.

Dallagnol: “Caro, favor não passar pra frente: (favor manter aqui): 9 presidentes (1 em exercício), 29 ministros (8 em exercício), 3 secretários federais, 34 senadores (21 em exercício), 82 deputados (41 em exercício), 63 governadores (11 em exercício), 17 deputados estaduais, 88 prefeitos e 15 vereadores […].

Cerca de duas horas depois, Moro responde: “Opinião: melhor ficar com os 30 por cento iniciais. Muitos inimigos e que transcendem a capacidade institucional do mp e judiciário.”

Para Rogers, mesmo se o juiz fosse responsável por supervisionar a investigação, sem participar do julgamento, como acontece nos sistemas judiciários da França e da Argentina, por exemplo, “seria necessário haver uma boa razão para (juiz e promotor) estarem discutindo estratégias secretamente, para que não possam ser facilmente questionadas no julgamento”. Em ambos os países, no entanto, o juiz que julgará o caso não é o mesmo que participou da investigação.

O advogado criminalista britânico Simon McKay é ainda mais crítico. “Se o sistema pretende operar com independência judicial, então, claramente, conversas privadas entre promotores e juízes tenderiam a minar essa independência”, afirma McKay. “Se os sistemas brasileiros pretendem ser independentes, tal contato compromete a independência ou a percepção de independência, colocando em risco a justiça”, completa o advogado.

Tanto Moro quanto Dellagnol negam qualquer irregularidade. Moro disse não haver “orientação nenhuma” ou “qualquer anormalidade ou direcionamento” da atuação dele como juiz. Dallagnol defendeu a imparcialidade da Lava Jato e disse ser natural a comunicação entre juízes e procuradores sem a presença da outra parte.

‘Conluio’

O professor no Centro para Estudos Globais da Universidade de Nova York (NYU) Patrício Navia afirma que, mesmo que o sistema jurídico brasileiro tenha características diferentes das de muitos países da Europa e mesmo dos EUA, a necessidade de se ter um juiz independente é um fator comum em todos eles.

“Independentemente do sistema legal, há uma condição que deve ser cumprida. Essa condição é que há um tomador de decisão independente e justo que decidirá se um réu é inocente ou culpado”, observa Navia.

Para o professor, o teor das conversas sugere que os investigadores agiram em conluio com os juízes para provar a culpa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, acusado de ter recebido propina de uma empreiteira na forma de um apartamento tríplex. “Não é papel do juiz no sistema brasileiro provar que alguém é culpado”, assinala o professor.

O britânico Conor Foley, professor de direito e relações internacionais da PUC Rio, diz ter ficado “chocado” com o teor das conversas entre Moro e Dellagnol, e entre os procuradores.

“Juiz não pode intervir nem dar conselho para promotor, juiz não pode traçar estratégia (com defesa ou acusação)”, diz o professor.

Foley diz que “torcia” pela Lava Jato, que via como o começo de uma fase promissora no combate à corrupção no Brasil, mas que a operação “cada dia tem mais e mais problemas.”

Para o professor, as conversas indicam falta de transparência e neutralidade do juiz e levantam questionamentos sobre a força das provas usadas na condenação de Lula.

As conversas vazadas sugerem que o ex-juiz teria recomendado ao procurador, em dezembro de 2015, uma possível testemunha a ser ouvida em processo contra o ex-presidente.

O petista foi posteriormente condenado por Moro no caso do tríplex do Guarujá, decisão que foi confirmada pelo Tribunal Regional Federal da 4ª região e pelo Superior Tribunal de Justiça. Lula foi impedido de disputar a eleição e está há pouco mais de um ano cumprindo pena por corrupção passiva e lavagem de dinheiro.

“Se acontece na Inglaterra, o ministro renuncia”, diz Foley.

A relação entre investigadores e juízes em outros países

Jonathan Rogers, do Centro de Justiça Criminal da Universidade de Cambridge, diz que a relação entre acusadores e juízes varia de país para país. Para ele, não há uma relação de maior ou menor proximidade “ideal”.

“Em alguns países europeus, um tipo especial de juiz supervisiona a investigação policial, fala pessoalmente com as principais testemunhas e produz um dossiê para análise pelo tribunal criminal, composto por juízes de julgamento”, explica Rogers.

Esse é o caso da França, onde há o chamado juiz de instrução, que acompanha a investigação, inclusive decidindo sobre prisões preventivas e quebras de sigilo, mas não tem poderes para condenar ou absolver um réu.

Na Argentina, explica o professor de Oxford, Ezequiel Ocantos, o papel dos juízes de investigação e dos promotores muitas vezes se sobrepõe – eventualmente unem forças ou competem na busca por provas. Mas o julgamento é conduzido por outro magistrado.

Já na Inglaterra, explica Jonathan Rogers, a polícia tem autonomia para iniciar e conduzir investigações, sem a necessidade de pedir autorização da Justiça – como é o caso no Brasil, onde mandados judiciais são fundamentais para esse trabalho inicial. “Os policiais têm amplos poderes de prisão e busca que não requerem autorização judicial, e isso inclui operações com policiais à paisana. Juízes e investigadores ficam muito separados”, disse.

Nos Estados Unidos, por sua vez, há uma proximidade maior entre juízes e procuradores, diz a professora de direito da Universidade Católica de Pernambuco, Adriana Rocha.

Para ela, contudo, o importante é o chamado princípio de paridade de armas, no qual acusação e defesa têm os mesmos direitos perante o juiz.

Rocha diz ver um problema na escolha do Telegram – aplicativo que promete segurança e privacidade – para juízes e promotores ou procuradores conversarem. “Transparência é fundamental e tudo tem que estar nos autos”, diz a professora.

“Juízes podem conversar com acusação e defesa, mas não podem combinar nem traçar estratégia com nenhum dos lados. Isso, claramente, fere a ética”, afirma Rocha.

“Imagine se Moro tivesse dito a um advogado para apresentar determinada petição ou antecipasse um pedido do Ministério Público para um advogado de defesa? O mesmo vale para a acusação”, avalia. “Se não, há imparcialidade, não há construção de justiça.”

Na avaliação de Ana Janaina Nelson, especialista em Relações Internacionais que trabalhou no governo de Barack Obama como oficial de Relações Exteriores no Departamento de Estado dos Estados Unidos, entre 2010 e 2015, “a coordenação entre o juiz e uma das partes” é o elemento mais “preocupante” das conversas até agora divulgadas.

Mas ela não acredita que as primeiras revelações afetem “drasticamente a imagem do Brasil no exterior”. “Pode ser que amanhã haja coisas mais bombásticas”, acrescenta.

“Com o que vimos até agora, Moro se queima. A reputação de Moro é afetada seriamente, assim como a do procurador Dallagnol”, disse Nelson, que atua como pesquisadora do Woodrow Wilson International Center for Scholars, um think tank na capital americana.

Para a pesquisadora, outro elemento que chamou a atenção foi a “retórica politizada por parte de procuradores”.

“É algo desafortunado e mostra o viés político de alguns dos membros da equipe da Lava Jato”, disse.

Segundo uma das reportagens do Intercept, conversas atribuídas a procuradores sinalizam preocupação eleitoral com a possibilidade de Lula conceder uma entrevista à jornalista Mônica Bergamo, da Folha de S. Paulo, perto da eleição presidencial de 2018. “Uma coletiva antes do segundo turno pode eleger o (Fernando) Haddad”, diz uma mensagem atribuída à procuradora Laura Tessler.

“É uma lição para futuros procuradores”, continua. “Se quiserem fazer bem seu trabalho, terão de deixar suas opiniões políticas pessoais em casa.”

BBC

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