Secretaria derruba censura e mantém livro premiado nas escolas do Rio Grande do Sul
Em nome dos “bons costumes”, diretora de uma escola em Santa Cruz do Sul pediu a retirada de “O Avesso da Pele”, de Jeferson Tenório, mas esqueceu de dizer que escolha dos livros do PNLD é de atribuição das próprias unidades de ensino
São Paulo – A Secretaria de Educação do Rio Grande do Sul derrubou a tentativa de censura ao livro O Avesso da Pele, do autor Jeferson Tenório, e determinou que as escolas de Santa Cruz do Sul, cidade a 153 quilômetros de Porto Alegre, mantenha e utilize os exemplares. A obra, vencedora do prêmio Jabuti de melhor romance em 2021, denuncia o racismo estrutural no Brasil. E faz parte do acervo do Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNDL) do Ministério da Educação (MEC).
No entanto, na última sexta-feira (1º), Janaina Venzon, diretora da Escola Estadual de Ensino Médio Ernesto Alves de Oliveira, localizada no interior gaúcho, usou as redes sociais para atacar o livro. Em vídeo, ela classificou como “lamentável” o MEC adquirir e enviar o romance para as escolas.
Isso porque, segundo ela, utilizaria vocabulário de “baixo nível”, inadequado para estudantes do ensino médio. “Governo federal, por favor, deixe as escolas cuidar dos seus estudantes, onde os valores, o respeito, a conduta, os bons costumes e a ética prevaleça. E vindo ainda de um governo federal, é muito nojento. Que país é esse?”, questionou. Como resultado, a 6ª Coordenadoria Regional de Educação (CRE), ligada à Seduc, chegou a orientar a retirada dos exemplares da biblioteca da escola até que o MEC se manifestasse.
“O uso de qualquer livro do PNLD deve ocorrer dentro de um contexto pedagógico, sob orientação e supervisão da equipe pedagógica e dos professores. A 6ª Coordenadoria Regional de Educação vai seguir a orientação da secretaria e providenciar que as escolas da região usem adequadamente os livros literários”, rebateu a secretaria.
Reação
Ao mesmo tempo, o MEC destacou que a permanência das escolas no PNLD é voluntária. E que as unidades de ensino “podem escolher de forma democrática” os materiais que mais se adequam à sua realidade pedagógica. E destacou que o PNLD tem como diretriz “o respeito ao pluralismo de concepções pedagógicas”. Não se trata, portanto, de uma imposição do governo federal. Ou seja, foi a própria escola que requisitou a obra, que depois pretendeu censurar.
Em entrevista à GloboNews nessa segunda-feira (4), o autor do livro lamentou o protesto da diretora. “Me causa sempre espanto, porque já temos tão poucos leitores no Brasil e deveríamos estar preocupados em formar leitores, e não censurar livros”, afirmou Tenório.
Em seu perfil no Instagram, ele afirmou que “as distorções e fake news são estratégias de uma extrema direita que promove a desinformação”. O escritor ainda chamou a atenção para as palavras de “baixo calão” e os atos sexuais do livro causarem mais incômodo do que o racismo, a violência policial e a morte de pessoas negras, tema central da premiada obra. “Não vamos aceitar qualquer tipo de censura ou movimentos autoritários que prejudiquem estudantes de ler e refletir sobre a sociedade em que vivemos.”
Após a repercussão do caso, cerca de 250 artistas e intelectuais assinaram uma petição on-line em apoio ao escritor. Nomes como Ailton Krenak, Antônio Fagundes, Drauzio Varela, Djamila Ribeiro, Mia Couto e Ziraldo subscrevem o texto intitulado Contra a Censura à Literatura de Jeferson Tenório.
“Ferem de morte a democracia, o direito de um autor se expressar, tiram a oportunidade de alunos entrarem em contato com textos escritos que foram observados e selecionados por comissões especializadas e preparadas para levar qualidade ao ensino”, diz o texto.
Educadores repudiam tentativa de censura
Do mesmo modo, a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) também repudiou a tentativa de censura. Assim, em nota, os educadores afirmam que “a obra literária e sua apropriação pelo processo pedagógico nunca foi a preocupação da referida gestora escolar”.
“Se o fosse, ela não teria usado as suas redes sociais, em um modus operandi bem conhecido pelo país nos últimos anos, para fazer o que chamou de “denúncia”. Além do mais, a diretora não usaria as palavras que usou, atacando o autor da obra, doutor em Teoria Literária, e tampouco o MEC e o Governo Federal em nome dos ‘valores e dos bons costumes‘ que uma escola deve ter”, afirmou a CNTE.
O objetivo da diretora, conforme os educadores, foi produzir uma “celeuma” infundada. Eles destacam que a obra passou pelo crivo de uma comissão formada por educadores. E que a inclusão do livro no PNLD se deu ainda durante o governo Bolsonaro. Além disso, ressaltou que foi a própria escola que requisitou os exemplares.
“A sua polêmica tinha por objetivo impor uma censura aos/às próprios/as estudantes da cidade de Santa Cruz do Sul que, se tivesse obtido êxito, os/as impediriam de ter acesso à obra e à crítica ao problema nacional e secular tão importante como é o racismo estrutural no Brasil. Trata-se de uma disputa na arena dos valores que pressupúnhamos ter sido superada nas últimas eleições gerais do país, mas que, infelizmente, ainda pautam o debate público.”