Seis respostas sobre como combater o Escola Sem Partido
Em janeiro de 2017, o prefeito de Ariquemes, em Rondônia, anunciou que suprimiria páginas de livros didáticos enviados pelo Ministério da Educação às escolas públicas do município. O motivo: ele e sete vereadores da cidade consideravam que o material apresentava conteúdo sobre “ideologia de gênero” e incitava a sexualidade precoce, além de fazer apologia à homoafetividade. Na verdade, as cartilhas mostravam famílias constituídas de diversas maneiras, incluindo por pais do mesmo gênero.
Esse é um dos onze “casos-modelo” citados pelo Manual de Defesa Contra a Censura nas Escolas. Lançado no último dia 27, ele traz histórias em que houve tentativa de controle da atividade educacional em escolas pelo Brasil. Para cada caso, são listadas estratégias jurídicas e político-pedagógicas a serem adotadas por educadores ou gestores que foram alvo de episódios de constrangimento ou perseguição.
O documento foi elaborado coletivamente por cerca de 60 organizações em “resposta às agressões dirigidas a professoras e professores e a escolas como estratégias de ataque de movimentos reacionários à liberdade de ensino e ao pluralismo de concepções pedagógicas”.
Um desses movimentos, o Escola Sem Partido, avança no Congresso Nacional: o Projeto de Lei 7180/2014, – conhecido pelo mesmo nome – que quer acabar com a “prática de doutrinação política e ideológica” pelos professores, tramita em comissão especial na Câmara dos Deputados. Na terça-feira (4), os parlamentares da comissão se reuniram para votar o parecer do relator Flavinho (PSC-SP), mas requerimento apresentado por parlamentares da oposição causou discussões e a sessão foi suspensa – a votação deve ficar para quinta ou sexta-feira.
A Pública entrevistou Denise Carreira, da coordenação da ONG Ação Educativa, uma das que capitaneou a produção do Manual. De acordo com ela, a cartilha teve pelo menos 60 mil downloads em 10 dias – isso apesar do site ter sofrido ataques e tentativas de derrubada.
Carreira explica que o guia “está conectado a uma estratégia maior não só de enfrentamento do ultraconservadorismo mas também de proposição, de anúncio de possibilidades que permitam reforçar a importância do debate sobre qualidade educacional e da garantia do direito à educação do país”, aponta. Nesta entrevista, ela explica alguns passos que podem – e devem – ser adotados pela sociedade civil, professores, pais de alunos e quem mais estiver interessado em defender a educação de qualidade e sem censura.
Como a atuação de grupos defensores do Escola Sem Partido tem afetado professores dentro das salas de aula?
Do ponto de vista qualitativo, esse movimento todo impacta a qualidade dos ambientes escolares. Há um crescente processo de autocensura entre os professores, já que ficam receosos de abordar certos conteúdos, com medo de uma retaliação.
As ameaças e perseguições também criam uma desconfiança muito grande nos ambientes escolares – quem é quem, quem pode denunciar, será que posso ser foco de uma denúncia? – já que ela gera um processo de desqualificação pública. Há grupos que estão tentando coagir diretores e secretários de Educação, fazendo ameaças. É um jogo perverso. Todo esse clima compromete, muitas vezes, a saúde mental e física de professores, gestores, estudantes e famílias, e possibilita o crescimento da intolerância, inclusive religiosa.
Mas existe uma subnotificação desses casos por conta do medo.
De que maneira o Escola Sem Partido e esses grupos atentam contra as leis?
A Constituição, a Lei de Diretrizes e Bases [LDB] e o Plano Nacional de Educação estabelecem como desafio maior da educação o compromisso com o enfrentamento das desigualdades, a valorização da diversidade e a superação das discriminações. Esses são princípios constitucionais previstos no artigo 3º, e que tomamos como base para todos os outros.
O Escola Sem Partido e os demais grupos ferem esses princípios e outros, como o da liberdade de cátedra e expressão e o da pluralidade pedagógica, pois defendem que a escola só pode abordar conteúdos que tenham a máxima concordância das famílias.
O problema é que estamos assistindo a um movimento de crescimento do ultraconservadorismo e de determinadas denominações religiosas fundamentalistas entre as famílias. Nós destacamos em vários momentos do Manual que ser religioso não significa ser fundamentalista religioso. Há muitas organizações religiosas contrárias aos grupos fundamentalistas que veem sua doutrina como a única verdade. A escola – a pública, em especial – tem de ser o espaço onde as crianças, adolescentes, jovens e adultos acessam outras perspectivas para além das perspectivas da família. Tem que ser o lugar da dúvida, da pesquisa, do debate, justamente para que se possa construir uma formação crítica e criativa. Esses grupos querem cercear a escola, querem que ela seja apenas um desdobramento de certas lógicas familiares. Uma parte desses grupos defende, por exemplo, que a escola só pode abordar o criacionismo. É algo extremamente assustador.
Falando especificamente sobre a agenda de gênero, temos no Brasil algo muito importante, que é o artigo 8º a Lei Maria da Penha. Ele estabelece que, para enfrentarmos a violência contra meninas e mulheres, é fundamental o investimento na abordagem de gênero e raça na educação. Há ainda as liminares dos ministros do STF Luís Roberto Barroso e Dias Toffoli que reforçam a abordagem de gênero nas escolas. Do ponto de vista legal, temos uma base consistente para continuar fazendo o trabalho.
O desafio do Manual e de outras estratégias que pretendemos trabalhar é que as professoras e professores, e também os diretores conheçam essa base legal. E que saibam que os 181 projetos de lei sobre o Escola Sem Partido são inconstitucionais.
O problema é que esses grupos do Escola Sem Partido, para além da disputa institucional e legal, estão travando uma disputa cultural. Por isso prevemos também o lançamento de materiais para as famílias, já que, no mundo das escolas, existem as turmas a favor e contra esses grupos, mas também uma grande parcela que está no meio das duas, confusa sobre o que está em jogo.
Como você avalia a atuação do Poder Legislativo – a nível federal, estadual e municipal – em apoio ao Escola Sem Partido?
Acho que há uma combinação de oportunismo, já que foi criada toda uma onda de pânico moral. Uma boa parte desses parlamentares, inclusive por interesses eleitorais, vem manipulando esta agenda no sentido de vincular essa onda de pânico moral que também esconde os interesses de determinados grupos fundamentalistas religiosos.
Existe uma parcela da sociedade que é contrária a tudo isso e existe uma boa parcela que está ainda confusa sobre o que está em jogo. Está omissa em relação ao que vem acontecendo.
Eu acho que um dos nossos desafios é poder justamente dialogar com esses setores. É mostrar principalmente que o que está sendo proposto fere a garantia dos direitos da educação de qualidade.
Parlamentares e especialistas ligados à educação consideram projeto “estratégico” para governo, que teria como meta impor versão dos militares sobre golpe de 1964 e regime militar
Existe “ideologia de gênero”?
Em entrevista à Pública, a doutora em Educação Jimena Furlani, que desenvolveu extensa pesquisa sobre o assunto, explica os equívocos do conceito
Não há como ter qualidade de educação com grupos que promovem o silenciamento, a censura, perseguição e ameaça. Isso tudo vai contra a uma qualidade de educação porque qualidade de educação significa ter uma educação crítica, ser ativo a plural. Essas coisas que eles promovem não tem nada a ver com isso.
Na sua opinião, qual deve ser a estratégia de combate institucional ao Escola sem Partido?
Nós temos muitas expectativas que o STF possa exercer esse papel fundamental que dá limites a essas perseguições, a essas ameaças, a essa censura que cresce no ambiente escolar e que fere princípios constitucionais. Lembrando que o STF em muitos momentos, mais recentemente em na DPF 548. que tratou sobre as ocupações policiais nas universidades e foi muito firme defendendo a pluralidade do ensino, defendendo a liberdade de expressão, a liberdade de cátedra. Tem muita argumentação jurídica consistente para que o STF possa dar esse limite.
O segundo é fazer o acompanhamento no Congresso Nacional, na Câmara dos Deputados, pelos vários grupos que estão acompanhando e atuando com relação à tramitação do PL. Temos um grupo de parlamentares comprometidos com a educação de qualidade. Estamos falando de parlamentares de vários partidos. Nós sabemos que o Plano Nacional de Educação foi uma conquista suprapartidária de vários partidos que somaram força. Em nome dessa conquista, que é uma conquista da sociedade brasileira. Não é de um grupo político.
E como combater isso no cotidiano dos professores dentro das escolas?
É muito importante o professor e a escola em si – não só o professor isoladamente, mas a escola também – desenvolver uma relação com as famílias, a relação com o território, promovendo a gestão democrática comprometida com o direito de educação.
Muitos desses grupos têm ocupado conselhos escolares, conselhos tutelares, pra defender retrocessos. Só que uma coisa que a gente deixa nítida no Guia é que a gestão democrática está a serviço da legislação, e não é pra cortar direitos da legislação, entendeu?
Há estratégias jurídicas em casos de ameaças – e aí destacamos a importância de que as educadoras e educadores não fiquem sozinhos, que possam identificar os aliados existentes na própria escola e na comunidade escolar, buscar os sindicatos e outras organizações comprometidas com o direito à educação. Para uma professora que vai trabalhar determinadas agendas, é importante que ela identifique quem são os aliados na escola, quem são as professoras e professores comprometidos com a agenda dos direitos e que podem construir um trabalho mais articulado. Se acontecer alguns tipos de ameaça deve-se ativar esse grupo, ativar também famílias que são aliadas. Há muitas famílias que são aliadas e que podem ser, também, convocadas a se posicionar.
Então, a nossa estratégia é: ter informação de qualidade pra mostrar, investir no trabalho de pesquisa, investir nos estudantes, em metodologias que também estimulem os estudantes a pesquisar, porque esses grupos não querem que ninguém pesquise nada. Eles querem interditar inclusive o trabalho de pesquisa em várias escolas.
O manual cita que as medidas de repressão aos professores costumam não prosperar juridicamente, e que depois se observa nas escolas um fortalecimento do debate.
A gente sabe que tem direções de escola que são favoráveis e outras não. Esse arco de alianças tem que também criar uma proteção e estimular o debate de forma qualificada.
Quando a gente está falando, por exemplo, por que é importante abordar gênero na escola. Podemos começar falando do fenômeno, por exemplo, da violência contra meninas e mulheres no país. A gente sabe que as famílias brasileiras não querem que isso seja uma realidade no Brasil. Inclusive os grupos religiosos estão comprometidos com o enfrentamento da violência contra a mulher. A gente só vai poder educar meninos e meninas para superar o fenômeno da violência contra meninas e mulheres se a gente abordar isso na escola.
Se a gente construir uma educação que enfrente o machismo, o racismo, a LGBTfobia. Nós somos o campeão mundial de assassinatos de travestis e transgêneros. Quando você mostra que tem pessoas morrendo, pessoas que estão sendo destruídas, você abre uma possibilidade de debate com muitos setores da sociedade.