Sem risco à ordem pública, preventiva de Crivella preocupa especialistas
A decisão de prender preventivamente o prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella (Republicanos), sem aparente risco à ordem pública e a poucos dias do fim do seu mandato, despertou preocupação na comunidade jurídica sobre abusos cometidos por magistrados.
Crivella foi preso nesta terça-feira (22/12) em investigações da Polícia Civil e do Ministério Público estadual sobre um esquema conhecido como “QG da propina”, com corrupção dentro da prefeitura. Os advogados do prefeito já impetraram Habeas Corpus no Superior Tribunal de Justiça pedindo para a corte revogar a prisão. Eles alegam que a prisão foi decretada com base em presunções genéricas e abstratas.
Na decisão, a desembargadora Rosa Helena Penna Macedo Guita, do Tribunal de Justiça fluminense, diz haver um “voraz apetite pelo dinheiro público” que não se limitou à atual gestão de Crivella como prefeito. Recuperando a declaração de um delator, que afirmou ter pago propina a ele nos anos de 2010 e 2012, a julgadora conclui que “há muito o atual Prefeito recebe propinas”. “É possível afirmar, portanto, diante do seu propósito de permanecer na vida pública, que tal prática perdurará”, diz.
Pedro Estevam Serrano, professor de Direito Constitucional da PUC-SP, afirma que a decisão foi abusiva e entende que não era o caso de decretar a prisão preventiva do prefeito. “Os argumentos dados não são suficientes para justificar a prisão preventiva ou qualquer forma de prisão cautelar. Essas prisões devem ser decretadas em situações extremas, mas no Brasil o instituto foi banalizado”, diz.
De acordo com o professor de Processo Penal da USP Gustavo Badaró, dos fundamentos apontados na decisão, não parece haver risco da prática de novos crimes cuja única forma de impedir o cometimento seria com prisão. “A alegação de que, depois das buscas, terceiras pessoas integrantes do esquema teriam procurado [Crivella] solicitando a continuidade do esquema não se justifica, ainda mais porque o mandato dele está para se acabar em breve”, avalia.
Como lembrou o criminalista Celso Vilardi em entrevista à CNN, a prisão preventiva deve ser decretada em determinadas situações: “Quando há risco de fuga, que não é o caso; quando há risco de algum tipo de destruição de prova; o que a decisão não traz nenhuma questão relacionada ao prefeito, ou para proteção da ordem pública”, explicou. Para ele, “para fins de decretação da prisão preventiva, a decisão realmente não parece perfeita”.
Já sobre o fato de o mandato de Crivella estar perto do fim, o advogado Salo de Carvalho, professor de Direito Penal da UFRJ, diz que, embora chame a atenção da opinião pública, não é um elemento jurídico a ser considerado, sob pena de politização das decisões judiciais. A validade da decretação da prisão, disse, “deverá ser analisada conforme a adequação das circunstâncias aos requisitos cautelares, expostos de forma suficiente e convincente na fundamentação judicial”.
O constitucionalista Lenio Streck lança uma série de questionamentos sobre o tema: “Prefeito em fim de mandato. A desembargadora diz que ele perderá o foro em poucos dia. OK. Mas, indaga-se: ele deve ser preso por que há requisitos concretos de prisão ou por que ele não terá mais foro? E continuamos com um problema que tem de ser enfrentado: quando há foro especial, pode haver decretação de prisão por decisão monocrática? E os fatos são de agora? Se tudo começou em 2016, por que às vésperas de Natal? Se são anteriores ao próprio pleito de 2020, qual a razão da prisão, que é exceção, agora? O Prefeito vai fugir? Vai destruir provas? Ele é perigoso? A ordem pública está em perigo? Qual é, de fato, a necessidade da prisão? Há décadas Gui Debourd escreveu sobre a sociedade do espetáculo. Mas ele não pensou no Brasil”.
José Roberto Batochio, criminalista e ex-presidente do Conselho Federal da OAB, também questiona a “volúpia em prender antes de julgar”. “Sem conhecer, em minúcias, as circunstâncias e falando apenas em tese, é certo que transpira incontida a desnecessidade da medida extrema da prisão processual contra políticos”, diz.
A acusação, segundo ele, “não refere à violência e não se vislumbra utilidade social na aplicação dessa medida odiosa (porque encarcera antes de julgar e condenar), essa irreparabile rovina, como dizem os doutrinadores italianos”. “Não bastaria a aplicação de medida alternativa assecuratória de natureza não corporal?”, questiona.
Além disso, o criminalista lamenta que “a liberdade humana tornou-se o bem mais barato do patrimônio imaterial dos cidadãos… prende-se por qualquer coisa. A desnecessidade parece manifesta, vênias concedidas”.
Fernanda Valente é correspondente da revista Consultor Jurídico em Brasília.
Sérgio Rodas é correspondente da revista Consultor Jurídico no Rio de Janeiro.