Sindicatos ressurgem nos EUA e revelam como empresas temem trabalhadores organizados
O CEO de uma grande corporação ganhava 23 vezes mais do que seus funcionários na década de 1970. Hoje essa proporção é de 351 para 1. O declínio dos sindicatos ao longo dos últimos cinquenta anos ajuda a explicar a impressionante escalada da concentração de renda na maior economia do planeta. Vitória sindical recente em armazém da Amazon com 8 mil funcionários é considerada a mais importante dos últimos 100 anos
A decisão de funcionários de um armazém da Amazon em Nova York de participar de um sindicato, anunciada no início do mês, foi recebida não apenas como uma vitória inédita para trabalhadores da empresa, mas também como um evento de significado histórico dentro do movimento trabalhista nos Estados Unidos.
A Amazon, fundada em 1994, é o segundo maior empregador privado do país e resiste à sindicalização de seus funcionários. No passado, mesmo grandes sindicatos com décadas de experiência e milhões de dólares à disposição haviam fracassado em campanhas do tipo em outras unidades da empresa.
Mas, em votação em 1º de abril, funcionários do JFK8, um enorme depósito da Amazon com mais de 8 mil empregados localizado em Staten Island, na cidade de Nova York, aprovaram a sindicalização. Na eleição, 2.654 votaram a favor de serem representados por um sindicato de trabalhadores, e outros 2.131 votaram contra.
Essa iniciativa vitoriosa foi diferente de outros esforços do tipo, que costumam empregar organizadores profissionais. A campanha em Nova York foi encabeçada pelos próprios funcionários do armazém, com recursos limitados, arrecadados por meio de um site de financiamento coletivo.
“É provavelmente a mais importante vitória sindical (no país) em quase cem anos“, diz à BBC o professor John Logan, diretor do departamento de estudos sobre Trabalho e Emprego da San Francisco State University, na Califórnia.
O resultado favorável na Amazon ocorre depois de uma série de vitórias semelhantes na rede de cafeterias Starbucks e em outras empresas menores nos Estados Unidos.
Na semana passada, funcionários em seis unidades da Starbucks no Estado de Nova York votaram pela sindicalização, elevando para 16 o número de lojas da rede no país onde iniciativas do tipo foram bem-sucedidas. Trabalhadores e organizadores em pelo menos outras 180 unidades da Starbucks em 29 Estados já entraram com petições com o objetivo de levar adiante a sindicalização.
Essas iniciativas, apesar de relevantes, representam uma ínfima parcela do total de trabalhadores no país. Somente a Starbucks tem mais de 9 mil lojas nos Estados Unidos. O depósito da Amazon em Nova York tem um número grande de empregados, mas ainda assim minúsculo diante da magnitude da empresa, que tem mais de 1,5 milhão de funcionários ao redor do mundo.
Mas, apesar do alcance limitado, muitos esperam que esses sucessos recentes, liderados por uma nova geração de trabalhadores jovens, possam ajudar a revitalizar o movimento trabalhista americano, que vem despertando interesse renovado depois de décadas de declínio.
De acordo com pesquisa Gallup de setembro passado, 68% dos americanos aprovam sindicatos trabalhistas, o maior percentual desde 1965. Entre os entrevistados que se identificam como democratas a aprovação é ainda maior, chegando a 90%.
“Certamente há um grau de otimismo, energia e entusiasmo em algumas partes do movimento trabalhista que não víamos há décadas“, salienta Logan, que é especialista na história dos movimentos trabalhistas dos Estados Unidos.
Mas o professor lembra que esse entusiasmo ainda não está refletido nos números. O percentual de trabalhadores representados por sindicatos vem caindo gradualmente no país desde a década de 1980, quando era em torno de 20%. Segundo o centro de pesquisas Pew Research Center, no ano passado somente 10,3% dos empregados no país pertenciam a um sindicato.
“Será preciso um esforço extraordinário para reverter esse declínio”, destaca Logan. “Se pensarmos em termos de números, (as vitórias recentes) são uma gota no oceano“.
Pandemia e mercado de trabalho apertado
Logan e outros especialistas observam que os resultados recentes foram possíveis graças a uma conjunção de fatores que tornam este um momento peculiar no mercado de trabalho dos Estados Unidos, com alta demanda por funcionários.
Após dois anos de pandemia, muitos trabalhadores estão cansados de receber salários que não acompanham a inflação enquanto grandes empresas registram lucros recordes.
“Dois anos atrás, uma vitória como essa (na Amazon) seria impensável. Mas estamos em um momento diferente, com um cenário trabalhista completamente modificado“, ressalta Logan.
“Depois de trabalhar por dois anos durante a pandemia e sentir que não foram recompensados adequadamente nem tratados com respeito, muitos trabalhadores estão receptivos à mensagem do sindicato, de uma maneira que, dois anos atrás, não se poderia imaginar ser bem-sucedida“.
As vitórias sindicais também ocorrem em um cenário político mais favorável do que o de poucos anos atrás. Joe Biden é considerado o presidente americano mais pró-sindicatos em décadas, e desde que tomou posse, em janeiro de 2021, reverteu leis aprovadas no governo anterior que, segundo críticos, enfraqueciam proteções trabalhistas.
No ano passado, Biden já havia manifestado apoio à tentativa de sindicalizar funcionários em outro depósito da Amazon, no Estado do Alabama, em um esforço que acabou fracassando. Na semana passada, em um evento com líderes trabalhistas em Washington, o presidente citou o resultado na unidade da empresa em Nova York.
“Os sindicatos representam, na minha opinião, dignidade e respeito pelas pessoas que trabalham duro“, afirmou Biden, ao promover uma força-tarefa criada por seu governo “para garantir que a decisão de se unir a um sindicato pertença somente aos trabalhadores“.
“E a propósito, Amazon, aqui vamos nós“, disse Biden, diante de aplausos.
Após as declarações, a porta-voz da Casa Branca, Jen Psaki, esclareceu que o presidente não estava enviando uma mensagem de que o governo iria se envolver formalmente nesses esforços, mas simplesmente expressando seu apoio “ao direito dos trabalhadores de se organizarem“.
Esforço partiu de funcionário demitido
Apesar de significativa, a vitória recente dos funcionários da Amazon é limitada e representa apenas o primeiro passo em um longo processo até que o novo sindicato consiga negociar um contrato com melhores salários e condições de trabalho. A empresa já apresentou formalmente objeções contra o resultado da votação.
“Estamos decepcionados com o resultado da eleição em Staten Island, porque acreditamos que ter uma relação direta com a empresa é melhor para nossos empregados“, disse a Amazon em comunicado.
Mas muitos esperam que a estratégia bem-sucedida possa servir de novo modelo e inspiração para outras campanhas ao redor do país.
Iniciativas do tipo costumam ser tradicionalmente lideradas por organizadores profissionais ligados a grandes sindicatos já consagrados, que oferecem apoio e recursos legais e financeiros.
Na Amazon em Nova York, porém, o esforço partiu de um funcionário do próprio armazém, Christian Smalls, que havia sido demitido após organizar um protesto contra as condições de segurança durante a pandemia, consideradas inadequadas pelos trabalhadores.
Smalls se uniu a um colega, Derrick Palmer, e outros funcionários e conseguiu arrecadar cerca de US$ 120 mil (cerca de R$ 563 mil) no site de financiamento coletivo GoFundMe. Como comparação, a imprensa americana calcula que a Amazon tenha gasto mais de US$ 4 milhões (cerca de R$ 18 milhões) em consultores anti-sindicato no ano passado.
Os recursos arrecadados por Smalls e Palmer foram investidos em uma campanha que incluiu vídeos no TikTok e churrascos em frente ao depósito, em contato direto com os funcionários da unidade em intervalos e após o expediente. Essa proximidade é um diferencial que organizadores profissionais nessas situações não têm.
“Eles não tinham organizadores ou advogados experientes. Receberam aconselhamento de fora, mas a campanha foi basicamente organizada por pessoas que trabalhavam no depósito“, ressalta Logan.
“Foram muito dedicados. São bem mais jovens (na faixa dos 30 anos) do que a idade média dos trabalhadores no depósito, mas são muito respeitados”, observa Logan. “E podiam dizer: ‘somos como vocês, sabemos o que é trabalhar neste depósito e ser tratado com falta de respeito’“.
Essa campanha independente acabou conseguindo um feito considerado impossível diante de um conglomerado como a Amazon. O Conselho Nacional de Relações Trabalhistas, agência independente do governo americano, disse no passado que a Amazon interferiu em diversos esforços de sindicalização, algo que a empresa nega.
“O que torna essa vitória realmente extraordinária é que a Amazon é provavelmente a mais rica, poderosa e sofisticada empresa com uma posição anti-sindicato do planeta”, salienta Logan. “É mais difícil vencer uma eleição pela sindicalização na Amazon do que em qualquer outra empresa“.
Impacto no movimento trabalhista
Segundo Smalls, o novo sindicato já foi procurado por funcionários de 50 outras unidades nos Estados Unidos, além de outros no exterior. No fim deste mês, empregados de um segundo armazém da Amazon em Staten Island também irão votar sobre uma proposta de sindicalização.
Observadores dizem que, mesmo sem assumir a liderança em iniciativas do tipo, grandes sindicatos tradicionais podem oferecer apoio logístico, legal e financeiro em diversas etapas do processo, em um tipo de modelo híbrido.
O esforço na Amazon recebeu ajuda de membros de sindicatos consagrados, apesar de ter sido liderado pelos trabalhadores. Na Starbucks, há apoio mais formal do Workers United, parte do Service Employees International Union, sindicato fundado há cem anos e que representa quase 2 milhões de trabalhadores nos Estados Unidos e no Canadá.
Em ambos os casos, no entanto, o trabalho de conquistar mais adeptos foi feito pelos próprios funcionários, muitos deles jovens, em interações diretas com os colegas e esforços via Zoom, email, redes sociais e mensagens de texto.
“O movimento trabalhista tradicional precisa encontrar uma maneira de encorajar e facilitar esse tipo de organização por conta própria que foi tão bem-sucedido na Amazon e na Starbucks“, afirma Logan.
Ainda é cedo para saber se o otimismo gerado pelas vitórias recentes terá um impacto maior no movimento trabalhista americano.
“Mas o importante é a energia, o entusiasmo e a capacidade dessas campanhas de capturar a imaginação pública“, acredita Logan.
“E é esse tipo de dinâmica que será necessário se quisermos ter uma chance de reconstruir o movimento sindical nos Estados Unidos de uma maneira significativa“.
Amazon e iFood mostram que empresas temem, sim, trabalhadores organizados
Importada do inglês, a palavra “truísmo” se refere àquelas crenças que, por serem tão óbvias, já se tornaram até banais – ou, em alguns casos, clichê.
Um dos maiores truísmos do nosso tempo é a ideia de que a evolução da tecnologia tornou desnecessárias representações coletivas de trabalhadores.
Por esse raciocínio supostamente irrefutável, a digitalização da economia implodiu sindicatos ao permitir que as pessoas trabalhem por conta própria, de forma flexível, e que se comuniquem de maneira mais ágil com os responsáveis pela sua contratação. Intermediários, portanto, seriam dispensáveis.
Só que dois episódios recentes e emblemáticos mostram que essas verdades não são tão verdadeiras assim. Estamos falando da criação do primeiro sindicato de trabalhadores da Amazon, nos Estados Unidos, e da denúncia de que o iFood teria atuado para sabotar a mobilização de entregadores brasileiros por melhores condições de trabalho.
Amazon e as ações antissindicais
No caso da gigante do e-commerce comandada por Jeff Bezos, essa não foi a primeira vez que a fundação de uma entidade representativa de funcionários capturou a atenção da opinião pública e entrou na mira da companhia.
Um ano atrás, o movimento dos trabalhadores da planta de Bessemer, no Alabama, já havia ganhado as manchetes de jornais e o apoio de diversas personalidades do país, incluindo o presidente Joe Biden.
Na ocasião, a big tech foi acusada de constranger os trabalhadores na votação que, no fim das contas, decidiu contra a formação do sindicato. Segunda maior empregadora dos Estados Unidos, atrás apenas do Walmart, a Amazon festejou.
Mas era apenas uma questão de tempo mesmo para que os trabalhadores voltassem à carga. No começo de abril, mesmo com a pressão da companhia, os empregados de um depósito de Nova York votaram a favor do sindicato. Segundo Christian Smalls, líder do movimento, já há pedidos de assessoria para criação de entidades similares em outras partes do país.
iFood e a desmobilização virtual
No Brasil, a plataforma líder do mercado de delivery de comida foi acusada de agir para esvaziar manifestações de entregadores.
Uma reportagem da Agência Pública trouxe à tona evidências de uma máquina virtual de desmobilização. Por meio de perfis e memes criados por agências de marketing contratadas, o Ifood teria atuado para distrair o foco das reivindicações.
Em vez de aumento na remuneração, os posts centravam fogo, por exemplo, na vacinação prioritária contra a covid para entregadores. Em outras palavras, o objetivo era transferir o alvo das queixas: em vez da empresa, o Estado. O iFood nega as acusações.
Sociedade de classe média
Os exemplos da Amazon e do iFood mostram que grandes empresas têm receio, sim, de trabalhadores organizados. Não à toa, agem deliberadamente para dificultar a vida de sindicatos e associações afins.
O truísmo quer fazer crer que criar representações coletivas é insistir na retórica ultrapassada da “luta de classes”. O futuro residiria nas negociações diretas entre empregados e empregadores, como chancelou a nossa reforma trabalhista de 2017.
Isso pode até parecer uma boa ideia para executivos selecionados a dedo por headhunters e que têm a oportunidade de negociar benefícios com os departamentos de RH – de bônus de boas-vindas a home office permanente.
Na vida real, os entregadores de aplicativo se relacionam no dia a dia com sistemas de inteligência artificial que mais parecem aqueles infernais atendimentos de telemarketing. Acreditar que existe alguma possibilidade de negociação direta entre as partes é, na melhor das hipóteses, cinismo.
Sim, é verdade que havia muitos sindicatos pelegos e picaretas – não só no Brasil, mas em diversas partes do mundo. Por aqui, muitos deles sumiram do mapa com o fim do imposto sindical obrigatório. No entanto, tirá-los de cena sumariamente não é garantia de que mais e melhores empregos vão ser gerados. Pelo contrário.
Como ensina em artigo recente o professor Paul Krugman, Nobel de Economia, os Estados Unidos dos anos 1970 eram uma sociedade de classe média. O CEO de uma grande corporação ganhava 23 vezes mais do que seus funcionários. Hoje essa proporção é de 351 para 1. O declínio dos sindicatos ao longo dos últimos cinquenta anos ajuda a explicar a impressionante escalada da concentração de renda na maior economia do planeta.
O mundo pode até ter mudado. Mas um fato se mantém: enquanto não houver organizações de trabalhadores massivas, capazes de bater de frente com companhias gigantescas que praticamente monopolizam seus segmentos de mercado, melhorias trabalhistas reais dificilmente serão conquistadas.
Os estoquistas norte-americanos da Amazon já aprenderam a lição. Os entregadores brasileiros estão no mesmo caminho.
De Alessandra Corrêa, BBC e Carlos Juliano Barros, no blog dele