Sinpro Minas: BNCC do ensino médio é uma ameaça aos professores, diz César Callegari
O Conselho Nacional de Edução (CNE) anunciou, no dia 4 de dezembro, a aprovação da nova Base Nacional Curricular Comum (BNCC) do ensino médio. Pelo documento, que servirá de orientação para os currículos das escolas públicas e particulares do país, apenas português e matemática terão carga horária obrigatória em todos os três anos dessa etapa final do ensino básico.
A proposta, de acordo com o professor e sociólogo César Callegari, representa um risco para os docentes e para o futuro do país. “Qual é o lugar numa estrutura dessa, como foi aprovada, de um professor de Geografia, de Sociologia, ou de um professor de Química ou de Biologia? São muitos os problemas que estão contidos nessa base, mas o principal deles é que ela representa uma redução de direitos educacionais da juventude. Eu acho que isso compromete até o futuro do Brasil, qualquer tipo de projeto de soberania, democracia e desenvolvimento com justiça social”, disse o professor, em entrevista ao Sinpro Minas.
Até junho deste ano, Callegari esteve à frente das discussões sobre a BNCC, como presidente da comissão encarregada de debater o tema no CNE. Deixou o cargo após discordar de propostas apresentadas pelo Ministério da Educação. “Quando percebi que havia de fato um movimento de desrespeito à sociedade brasileira e que a proposta do MEC trazia em si um atentado contra os interesses educacionais no Brasil, eu renunciei à presidência”, afirmou Callegari.
Para que passe a vigorar, a Base precisa ser homologada pelo ministro da Educação.
Confira abaixo a entrevista concedida ao Sinpro Minas.
Sinpro Minas: O que a nova Base Nacional Comum Curricular do ensino médio representa para a educação brasileira?
César Callegari: Bom, sinteticamente, eu vejo com muita preocupação a aprovação dessa base, pois ela traz problemas muito sérios. O primeiro deles é que ela promove uma redução dos direitos de aprendizagem dos jovens brasileiros, e isso pode aprofundar ainda mais as grandes desigualdades educacionais que o Brasil tem hoje. A Base, conforme foi aprovada, estabelece que os direitos de aprendizagem dos jovens são aqueles que podem ficar contidos em apenas 1800 horas, o que corresponde a cerca de 60% da jornada escolar do ensino médio. Com isso, muita coisa fica de fora, muitos conhecimentos e habilidades relacionadas a várias disciplinas e matérias acabam ficando de fora. Os que podem, sobretudo aqueles que estão nas escolas particulares, vão fazer tudo que é necessário, porque têm estrutura pra isso, e a grande maioria dos jovens, que depende de escola pública no país, que são precárias, faltam alunos, internet e professores, sobram alunos por sala de aula, essas escolas vão fazer apenas o que dá e não o que é necessário para que haja desenvolvimento completo desse jovem brasileiro. São muitos os problemas que estão contidos nessa base, mas o principal deles é que ela representa uma redução de direitos educacionais da juventude. Eu acho que isso compromete até o futuro do Brasil, qualquer tipo de projeto de soberania, democracia e desenvolvimento com justiça social.
SM: De modo geral, quais são os pontos estruturais propostos por essa nova base do ensino médio?
CC: O problema maior é que tanto a lei [reforma do ensino médio] quanto o que foi aprovado sobre essa BNCC reduz os direitos de aprendizagem. E essa redução é muito complicada, porque, concretamente, ela apresenta uma forte ênfase no ensino de disciplinas meramente instrumentais. É o caso de Português e Matemática, que são muito importantes, mas se não forem acompanhadas de um processo que permita uma visão crítica, articulada, interdisciplinar e sobretudo criativa por parte dos jovens, essas áreas de conhecimento viram apenas disciplinas instrumentais. Isso não permite que essa juventude possa alcançar os desafios que são dados na contemporaneidade, que é ter uma visão crítica, pensar em profundidade, ter capacidade de aprender a aprender sempre.
Isso só se faz se tivermos um processo articulado entre Química, Física, Biologia, História, Geografia, Filosofia, Sociologia, Artes, Educação Física, Espanhol, esse conjunto de componentes curriculares, que está praticamente abandonado, nem citado mais ele está na BNCC. Isso traz uma possível precarização nas escolas públicas, principalmente do ensino do conjunto dessas disciplinas que não Português e Matemática. Isso fica ainda mais sério, porque hoje, na estrutura das escolas brasileiras, os professores são professores de disciplinas. E não há indicação nenhuma na BNCC de como os fundamentos conceituais que são próprios de cada uma das disciplinas podem e devem ser tratados com os estudantes. Se a gente não tiver base conceitual, nenhum de nós é capaz de pensar, de refletir, de ter visão articulada sobre as coisas. Então, tudo isso leva a uma precarização muito grande, uma ameaça aos professores, que hoje militam nas escolas públicas e privadas no Brasil, e sobretudo uma ameaça à própria formação desse estudante.
Outro problema sério, relacionado à Base, é que tudo aquilo que a lei 13.415 [reforma do ensino médio] estabelece como o que deveria ser apresentado como opções, os chamados itinerários formativos, a BNCC recentemente aprovada silencia sobre isso. Ela não apresenta absolutamente nada a respeito desses itinerários formativos. No meu modo de entender, mesmo nos itinerários formativos, devem ser estabelecidos quais são os direitos de aprendizagem dos estudantes. O que deve ser trabalhado deveria ser um objeto da Base. À medida em que ela nada diz sobre isso, e portanto estabelece uma espécie de terreno vazio, essa formulação acaba desobrigando as escolas de oferecerem na parte dos itinerários a educação de qualidade que os jovens têm direito. O que eu quero dizer é que nas boas escolas, sejam públicas ou privadas, que em geral atendem aos filhos das elites e parte da classe média, onde há condições, tudo que for necessário será feito. Já nas escolas públicas, que são muito precárias, onde faltam professor, laboratório, funcionários, sobram alunos por sala de aula, sobra violência, nesses casos, o que será feito é o possível e não o necessário, mais uma vez aprofundando as desigualdades educacionais no Brasil. Ou seja, a Base agora indica uma educação pobre para os pobres. E isso nós não podemos aceitar.
SM: Em relação à BNCC ser uma ameaça aos professores, o que você quis dizer com isso, professor?
CC: Qual é o lugar numa estrutura dessa, como foi aprovada, de um professor de Geografia, de Sociologia, ou de um professor de Química ou de Biologia? Dizer que todas essas disciplinas agora serão trabalhadas na forma de áreas de conhecimento, sem que se assegure o direito à aprendizagem dos fundamentos conceituais próprios de cada disciplina, é muito possível, em praticamente todo Brasil, que tudo isso venha a significar uma isenção da responsabilidade das escolas e do Estado de proverem os professores de cada uma dessas disciplinas. Ou seja, vão trabalhar com o que têm e não com o quadro que é necessário pra garantir a educação de qualidade. Tudo isso ainda fica muito impulsionado pelo fato de que a lei da reforma do ensino médio abre a possibilidade que ele seja oferecido à distância. E, portanto, substituindo claramente professores, laboratórios, substituindo gradativamente a própria escola como local de aprendizagens múltiplas.
Nós sabemos perfeitamente que na escola se aprende não apenas as coisas que são próprias do currículo, mas muitos dos valores fundamentais para o exercício da cidadania, que são desenvolvidos no contato, na interação própria dos estudantes consigo mesmos e com seus professores. Então, valores fundamentais de uma sociedade democrática, justa, como por exemplo o respeito à diversidade, o diálogo, a visão crítica, a solidariedade, o saber trabalhar de forma colaborativa, esses valores só podem ser desenvolvidos presencialmente, e não isolando os alunos atrás de uma tela de computador. Isso é uma atitude antieducacional e eu não conheço lugar nenhum do mundo onde a escola e seus professores são substituídos por sistemas de ensino à distância e a educação vai bem. As novas tecnologias estão aí, fazem parte da nossa vida e do nosso mundo, mas elas devem ser colocadas a favor da escola, jamais como substituição da escola. Esse é outro aspecto que está relacionado tanto à lei quanto à Base aprovada, que representa não apenas uma ameaça aos professores mas, sobretudo, uma ameaça aos direitos educacionais da juventude brasileira.
SM: Que visão podemos depreender dessas mudanças todas que vêm ocorrendo no campo da educação?
CC: Essas medidas atendem ao interesse de privatização do setor da educação pública brasileira. Há interesses econômicos graúdos que estão por trás desse movimento e, por outro lado, também uma ideia de submissão definitiva do Brasil à condição de um país dependente, subdesenvolvido e que na divisão internacional do trabalho vai ficando com as ocupações e a renda mais desqualificadas. Quando você desqualifica um povo, a partir da precarização do seu sistema educacional, você desqualifica a soberania nacional. Compromete a própria soberania do Brasil.
Lamentavelmente, setores hoje da sociedade brasileira vão exatamente nessa trilha. O novo ministro da Educação que virá aí, anunciado pelo presidente eleito, tem uma visão muito nessa direção. Nenhuma das suas declarações, até agora, falou a respeito de melhorar as condições de trabalho do professor, melhorar os salários do magistério, qualificar a escola, diminuir o número de alunos por sala de aula, investir em laboratórios. Pelo contrário, se fala e se dá ênfase, por exemplo, a essa chamada “Escola sem Partido”, que no fundo é uma verdadeira ameaça persecutória à liberdade de cátedra que os professores têm e que é tão fundamental para o exercício da sua atividade. Nós estamos vivendo um momento em que é muito importante que os professores se unam, deixem pra lá divergências menores. Estamos sendo chamados a um processo de união não apenas para a nossa própria defesa como profissionais da educação, mas, também, para a defesa da educação como um direito dos brasileiros e a defesa do Brasil como um país soberano, democrático e desenvolvido. É o momento de uma resistência ativa, que vai exigir de todos nós muito mais inteligência que as nossas atividades já vinham nos requerendo até agora.
Há uma questão específica, que publiquei no meu blog. Eu defendo que a sessão do Conselho Nacional de Educação que aprovou a BNCC seja anulada, pois, lamentavelmente, o CNE acabou aprovando essa Base em uma sessão que sequer foi anunciado que isso seria votado. Isso é uma obrigação. O CNE é um órgão público, tem a obrigação de dar transparência e publicização de todos os seus atos e processos decisórios. Nesse caso, contrariou tudo o que nós fazíamos – porque eu já não sou mais do Conselho. Enquanto eu estava lá, tomava as providências para garantir que tudo fosse feito com toda publicidade necessária. Isso é fundamental. É um órgão público.
Essa decisão foi tomada na calada da noite, sem que isso estivesse sequer na pauta da reunião do CNE da terça passada (4/12). Foi aprovado às pressas, de uma maneira semiclandestina, para que os movimentos da sociedade, os professores, os estudantes e especialistas não pudessem acompanhar as discussões, muito menos a votação. Considero isso não apenas uma ilegalidade, mas também uma imoralidade, e estou defendendo que o CNE anule essa sessão e que o assunto da BNCC seja retomado a partir do ano que vem, com o debate necessário. Inclusive com a participação dos novos atores, principalmente no âmbito dos estados, que virão a partir do processo eleitoral que se deu.
No meu entender, é uma temeridade aprovar uma BNCC sem que haja a participação, por exemplo, dos secretários estaduais de educação que tomarão posse dia 1º de janeiro. Eles e seus conselhos estaduais de educação têm responsabilidades operacionais grandes em relação a qualquer reforma no ensino médio. É muito importante que essas pessoas participem. Estou pedindo providências do CNE nesse sentido. Agora, se isso não for feito, o meu apelo é que as entidades representativas da educação, entre elas as instituições sindicais, acionem o sistema de Justiça com a finalidade de anular essa decisão do CNE.
SM: Professor, você esteve à frente dos debates da BNCC, não é isso?
CC: Até junho de 2018 sim. Mas quando eu percebi que havia de fato um movimento de desrespeito à sociedade brasileira e que a proposta do MEC trazia em si um atentado contra os interesses educacionais no Brasil, eu renunciei à presidência. E fiz essa renúncia a partir de uma carta, que eu encaminhei não apenas a todos os conselheiros como também para toda sociedade brasileira, onde especifico todas as questões e denuncio todos os problemas que essa proposta apresenta. No meu blog, você pode consultar, e na minha página do Facebook, essa carta está lá. Estão marcados trechos em amarelo. Muito do que nós falamos agora já estava contido nessa carta desde o momento em que a lancei. Lamentavelmente, tenho que confirmar o que está lá. Gostaria que as coisas tivessem mudado, mas o que foi aprovado agora representa, de fato, um atentado contra os interesses educacionais do povo brasileiro.
SM: Qual mensagem você deixaria para os professores diante da atual conjuntura?
CC: A mensagem é de resistência ativa. A melhor maneira de proteger a educação, no meu modo de entender, é trabalhar por uma melhor coesão da própria categoria do magistério e a necessária conexão com as comunidades de cada uma das escolas. Sobretudo com as famílias. Acho que cada professor, inclusive para que se defenda em relação à “lei da mordaça”, “Escola sem Partido” e tudo mais, deve estabelecer formas ativas de buscar conexão mais forte com as famílias das comunidades. É dessa conexão que terá origem a força que a educação brasileira precisará para enfrentar os ataques que estão por vir. Ninguém solta a mão de ninguém, mas tem que dar mão para a comunidade também, e não só para nós próprios. Isso é importante.