Sinpro Minas: Teatro político como reflexo da nossa sociedade
As múltiplas construções da arte cênica e sua relação com a nossa vida são algumas das reflexões que nos trazem a atriz, professora e pesquisadora Soraya Martins (uma das curadoras do FIT 2018) e o dramaturgo, diretor e professor de teatro na Escola de Arte Dramática da USP, José Fernando Peixoto de Azevedo, na primeira edição do programa Extra-Classe especial sobre Teatro Político, exibido em novembro.
Para Soraya, o teatro é importante para estimular um lugar autônomo de pensamento crítico. “A gente pode aprender, expandir imaginários, refletir sobre demandas importantes, sobre feridas abertas da nossa cultura como a escravização dos africanos, o racismo estrutural brasileiro etc.” Para a pesquisadora, “assim como na literatura, o teatro é o lugar onde a gente pode reconfigurar nossas existências, recontar nossa história a partir de outras perspectivas, trazendo outros protagonistas para dentro da história. Ao lembrar o dramaturgo Augusto Boal, que defendia que todo artista tem que tomar posição, Soraya reforça que não se pode negar – “O fazer teatral é o nosso posicionamento, em nenhum momento a gente nega isso. O teatro é estético, é ético e político”.
O professor e ator Fernando Azevedo afirma que não é uma evidência que todo teatro é político. “Teatro político não é fazer política na cena, mas compreender em que medida ainda é possível se posicionar e elaborar experiência social nessa cena”, afirma. Ele faz também uma reflexão sobre a importância da relação com o público. “Há um debate sendo proposto pelo espetáculo. Uns aderem, outros recusam, outros aderem e criticam – essa conversa que se estabelece produz público, mas não é coisa homogênea, é um campo de discussão, de aliança, de divergência. Tudo móvel. Muda na medida em que a cidade muda, em que meu posicionamento na cidade muda, na medida em que eu circulo. O público não pode ser uma abstração – eu produzo e ele assiste. A arte só existe na medida em que alguém que fez e alguém que vê se encontram. Se isso não aconteceu ao mesmo tempo não tem teatro”, afirma ao destacar que o que faz do teatro algo potente é que este encontro é da ordem do convívio, presencial.
Também nesta edição, uma homenagem à memória e importante presença no mundo das artes do ator, diretor e dramaturgo João das Neves. Sua história de vida e da sua grande contribuição para o teatro no Brasil são compartilhados pela cantora Titane, companheira de vida de João. “Ele se definia como um homem do teatro. Acho que teatro era a vida dele, era a maneira dele de se colocar no mundo, de se comportar”, conta Titane ao reforçar que João era um homem livre e o jeito dele de viver essa liberdade, a sua individualidade era dentro do teatro. João das Neves, que faleceu em agosto de 2018, foi um dramaturgo, diretor, ator e escritor muito importante para o teatro brasileiro. Diretor dos Centros Populares de Cultura (CPC) da UNE no início da década de 1960 e um dos fundadores do Grupo Teatro Opinião, ao lado de Ferreira Gullar, Vianinha e outros nomes fundamentais do teatro brasileiro.
Com o Grupo Opinião, que estreou em 1964 o antológico Show Opinião, reunindo no palco, num protesto contra a ditadura, Nara Leão, Zé Keti e João do Vale, João das Neves trabalhou até o fim da ditadura em 1984, buscando novos modelos dramatúrgicos para flagrar a nova realidade instaurada pelo regime militar. Toda sua força, coragem, criatividade e resistência marcou a história do teatro no Brasil, em que até recentemente ele estava em cena como ator e diretor. Titane, ao contar uma de suas história na época da ditadura, lembra o caso da invasão, pelos militares, do teatro da UNE, no Rio de Janeiro, quando João ensaiava a peça que iria estrear no lançamento do teatro. O local foi invadido e incendiado e todos os artistas tiveram que fugir pelos fundos para não serem presos ou mortos.
Seus textos e montagens eram uma projeção de seu modo de viver, de pensar a vida e de se relacionar com as pessoas. Ele levou para o teatro muito da cultura brasileira e do homem brasileiro. “João tinha uma coragem muito grande, uma virilidade para lidar não só com as questões humanas, mas sociais. Nunca fugiu delas, nunca fugiu da briga”, afirma.
“Com dizia João, todo teatro é político. Toda arte, é política. A minha música é. Mesmo que ela não toque no assunto, pra mim isso já é uma atitude política. Não vou me envolver com as grandes demandas sociais do momento na minha discussão artística. Olha, isso pra mim é uma atitude política, uma escolha. A nossa atitude e acho que da grande parte dos artistas brasileiros é sim fazer com que sua obra reflita as suas grandes inquietações. As inquietações minhas até como indivíduo, como cidadã- essas são as grandes bandeiras que hoje são políticas”, destaca Titane.
Na segunda edição do programa ExtraClasse sobre Teatro Político, dramaturgos, atores, atrizes, diretores e pesquisadores falaram da relação dessa arte com a conjuntura atual do Brasil. O programa deu destaque para os coletivos que atuam na resistência, especialmente os que abordam a questão racial, na construção do Teatro Negro.
A atriz e pesquisadora Soraya Martins reforça a importância do teatro como construção de imaginários. “É poder reelaborar a gente nas nossas identidades, nas nossas memórias esquecidas, negligenciadas, falsificadas”, afirma. O teatro precisa refletir toda a sociedade. “É interessante a gente se ver ali, um corpo refletido, negro, trans, gordo etc., um corpo que fuja dos padrões com os quais eu não me reconheço. Eu quero me reconhecer”, diz.
A atriz e diretora Rainy Campos afirma que nossas escolhas falam sobre nosso pensamento e sobre como funciona a sociedade. Assim, todo teatro é político, mesmo que não seja engajado, pois todo sujeito é político, tem um olhar sobre determinado assunto. Ela destaca a importância do teatro negro que vem se desenvolvendo em Belo Horizonte nos últimos anos. “Hoje temos muitos artistas negros produzindo suas dramaturgias – escrevendo, atuando, dirigindo, fazendo preparação corporal e vocal de seus próprios espetáculos. Rainy destaca a Segunda Preta, movimento de destaque na cena artística da cidade, com trabalhos e pensamentos que têm provocado muita reflexão e transformado a cidade. “Teatros políticos, engajados, de forma bonita de ocupação de espaço, dialogando com outros coletivos, dialogando com a cidade”, avalia.
A criação do Núcleo de Teatro”do Espaço Comum Luiz Estrela também é fruto de um ato político. É o que conta a atriz e diretora Manu Pessoa ao afirmar que um grupo de artistas “usou o teatro como um arma para fazer uma mudança na realidade”. Eles ocuparam o espaço abandonado e o batizaram com o nome de um artista, morador de rua e usuário da saúde mental, morto em 2013. “O nome do espaço já traz várias bandeiras que são as trabalhadas em nossas peças”, afirma ao ressaltar que, por estarmos em um momento político difícil e com grandes retrocessos, fazer teatro é ainda mais importante e necessário.
Ainda nesta edição, o dramaturgo, ator, diretor e professor de teatro do T.U da UFMG, Fernando Limoeiro, fala sobre a importância do teatro na década de 70 que enfrentou todo o processo de censura do golpe de 64 e o professor da USP, José Fernando Azevedo, destaca a importância dos coletivos de teatro formados na década de 90 e que persistem até hoje, muitos com grande sucesso. “É a primeira vez na história do teatro brasileiro em que experiências de organização do trabalho teatral duram mais de 10 anos”. Para ele, neste momento a gente vive o risco de interrupção drástica dessa experiência. E isso tem dimensão política, incide sobre formas de financiamento, sobre possibilidade de continuidade de trabalho, sobre formas de produção. O risco que esta experiência corre hoje também é um depoimento sobre o que acontece no Brasil.
Confira na íntegra as duas edições do Programa:
O Programa Extra-Classe é uma produção do Sindicato dos Professores de Minas Gerais (Sinpro Minas), exibido na Rede Minas de Televisão. Sábados, às 09h, com reprise às terças-feiras, às 13h.
Foto: Priscila Musa | Assembleia Comum – Núcleo de Teatro Espaço Comum Luiz Estrela