Sinpro/RS: A hierarquia moral das desigualdades

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No seu novo livro, Esfarrapados – Como o elitismo histórico-cultural moldou as desigualdades sociais no Brasil (Civilização Brasileira, 2023, 308 p.), o jornalista Cesar Calejon se propõe a destrinchar os mecanismos culturais e históricos que explicam como se formaram as elites no Brasil, como elas atuam para dominar a sociedade e como conseguem manter sua posição de comando e ampliar seus ganhos econômicos exponencialmente. Graduado em Comunicação Social pela Universidade São Marcos (Unimarco), com especialização em Relações Internacionais pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e mestre em Mudança Social e Participação Política pela Escola de Artes, Ciências e Humanidades (Each) da Universidade de São Paulo (USP), Calejon é autor dos livros A Ascensão do Bolsonarismo no Brasil do século XXI (Kotter) e Tempestade Perfeita: o bolsonarismo e a sindemia covid-19 no Brasil (Contracorrente); e Sobre perdas e danos: negacionismo, lawfare e neofascismo no Brasil (Kotter). Desta vez, ele mergulha no conceito da força social que cria uma “gramática da desigualdade” e, em última instância, uma hierarquia moral que rege o funcionamento sociopolítico e socioeconômico do país. “O elitismo histórico-cultural foi alavancado pela invasão europeia que subjugou as comunidades ameríndias e pela Revolução Industrial que criou uma riqueza mercadológica sem precedentes”, afirma nesta entrevista.

“O elitismo histórico-cultural é uma força social que organiza os arranjos da sociedade com bases em categorias de distinção, de forma a criar uma gramática da desigualdade e uma hierarquia moral que rege os funcionamentos social, político e econômico da nação”

Extra Classe – Por queEsfarrapados?
Cesar Calejon – Esfarrapados vem de Paulo Freire, influência da minha mãe que é uma educadora freiriana, a principal pessoa que me estimulou a ler e a escrever ao longo da vida. O livro tem uma dedicatória ‘para os esfarrapados do mundo’ e para aqueles que, com os esfarrapados, se identificam, sofrem, mas, sobretudo, lutam. O título Esfarrapados vem dessa dimensão da produção freiriana que tem como característica fundamental produzir uma educação capaz de promover emancipação popular. Quando Paulo Freire utiliza o termo esfarrapados, fala de uma massa proletária que é desprovida de instrumentos para o seu próprio desenvolvimento e que fica à mercê do que, a meu ver, o elitismo histórico-cultural produz.

EC – Por que bolsonaristas e olavistas colaram o termo “narrativas de esquerda” para barrar pautas de costumes e avanços identitários?
Calejon – Esse é um exemplo ideal, considerando aquilo que eu chamo de narrativa e é por isso que essas duas coisas, ideologia e narrativa, podem se confundir. De muitas maneiras, a ideologia a qual eu me refiro vem sendo utilizada há séculos. Vou dar um exemplo muito claro. Há uma ideologia do capitalismo anglo-saxão que tenta te dizer que, primeiro, os nativos do Norte e, depois, todos os povos do Hemisfério Sul eram inferiores e, para o bem do seu próprio desenvolvimento, deveriam ser colonizados pelos europeus. Isso acontece até hoje! É uma ideologia generalizada que resulta em inúmeras narrativas. A partir deste ponto, surgem estas que o bolsonarismo utiliza com muita ênfase, porque percebe que, na nossa formação histórica e cultural, este tipo de coisa traz muita aderência.

EC – Por quê?
Calejon – Quando eles utilizam este tipo de narrativa que tem como matriz inicial essa ideologia mais ampla a que me refiro, sabem que é muito mais fácil, por exemplo, imputar a pecha de “ladrão” a Lula do que a Bolsonaro, a despeito de todas as provas que estão surgindo. Sabem que é muito mais fácil imputar a pecha de “ditador” a Maduro do que ao Donald Trump, a despeito deste ter dito abertamente que queria invadir a Venezuela para saquear o petróleo de lá. Então, essas narrativas são utilizadas com muita ênfase pela extrema direita neofascista nacional, porque a nossa organização histórica e cultural oferece o ensejo ideal para que assim seja feito.

EC – Como você conceitualiza elitismo histórico-cultural?
Calejon – A meu ver, o elitismo histórico-cultural é uma força social que organiza os arranjos da sociedade com bases em categorias de distinção, de forma a criar uma gramática da desigualdade e, em última instância, uma hierarquia moral que rege os funcionamentos social, político e econômico da nação. Algumas coisas aí são importantes, tanto no âmbito individual, ontogenético, vamos colocar assim, do indivíduo, quanto no nível coletivo. O desenvolvimento humano é histórico e cultural. Ele não é geneticamente, biologicamente determinado. Isso pode parecer óbvio, mas todo o substrato que anima a extrema direita não só no Brasil, mas no mundo, parte da premissa de que existem sujeitos mais fortes e mais fracos por natureza e que os fortes devem comandar o desenvolvimento da sociedade e os fracos devem se submeter a esse comando.

EC – Como se dá a expressão disso?
Calejon – A direita contemporânea não expressa isso de uma forma tão clara, mas essa premissa elementar está subentendida em toda a filosofia que organiza, por exemplo, o perenialismo, as ideias do Olavo de Carvalho, as ideias que permeiam a ascensão do bolsonarismo, os republicanos do Trump nos Estados Unidos, o Orbán, na Hungria, o (Andrzej) Duda, na Polônia, e assim por diante. Quando a gente parte dessa premissa elementar de que o desenvolvimento humano, tanto no nível individual quanto no nível coletivo, é histórico-cultural, ganha um elemento para entender que a República Federativa do Brasil como está constituída hoje traz os legados históricos e culturais do que foram Brasil Colônia e Império. E, na medida em que se entende isso, passa-se a olhar para a nossa composição societária como algo inevitável, por exemplo: ‘Ah, o capitalismo é a única forma de organização societária possível’.

“Entre as estratégias para superar o elitismo histórico-cultural, a principal é uma educação libertadora, capaz de contemplar a subjetividade das pessoas para transcender o que o Freire chamou de uma educação tecnicista”

EC – O que não é verdade.
Calejon – Isso só não é verdade, como o que a gente tem hoje em termos de organização societária é fruto de uma sociedade escravocrata, de um modelo escravista. É fruto do advento do capital enquanto processo, a expropriação da classe trabalhadora, a formação de um proletariado que tem como única forma de subsistência a venda da sua força de trabalho para fazer a manutenção dessa própria força, no sentido de vendê-la no dia seguinte. Tem como base a invasão dos europeus nas Américas a partir do fim do século 15, quando a gente tem esse modelo sendo implementado pela primeira vez em escala transatlântica e global em alguma medida, se formos avaliar mais profundamente. É disso que eu falo nesse contexto de elitismo histórico-cultural, mas tem outras coisas que eu poderia salientar.

EC – Por exemplo?
Calejon – Se você conversar com um antropólogo tradicionalista, ele tende a dividir a evolução humana entre antes e depois da revolução neolítica, porque ele entende que, a partir da revolução agrícola, os seres humanos começam a estabelecer as primeiras comunidades de formas mais fixas. Isso, por exemplo, é compreendido dessa maneira porque a forma que a gente entende a nossa vida foi determinada a partir do fim do século 15, quando, considerando os ímpetos coloniais europeus, se pegar o segundo tratado sobre o governo de John Locke, as comunidades indígenas ameríndias não tinham o direito à posse da terra porque não praticavam a agricultura de forma extensiva como os europeus. Isso foi utilizado pelas monarquias europeias como um ponto fundamental para convencer os iluministas que discutiam se era possível ou não invadir, usurpar e pilhar as comunidades ameríndias. Afinal, tratava-se de selvagens, bárbaros, que não tinham domínio sobre as próprias terras.

EC – Como essa dimensão elitista foi assimilada?
Calejon – A partir desse ponto, a gente começa a olhar para toda composição do desenvolvimento humano sob a ótica europeia, que diz que existia um ponto de inflexão como a agricultura. Isso se aplica para, fundamentalmente, um mundo como a gente conhece inteiro, para todas as dimensões que a gente considera como democracia, a barbárie versus civilização. O que é ou o que não é razoável se traduz para essa dimensão da invasão europeia nas Américas. É o exemplo do Maduro e do Trump que citei antes. Um é visto como ditador e o outro não, porque, precisamente, existe essa dimensão elitista a partir de um prisma eurocentrista, sob o qual as nossas bases epistemológicas, inclusive, vêm sendo construídas e consolidadas.

EC – Além de Locke, Thomas Hobbes também ajuda a consolidar esse prisma eurocentrista…
Calejon – Sim! A partir desse ponto, se pegarmos Thomas Hobbes, ele diz que, antes da colonização europeia, as comunidades ameríndias viviam em um estado de guerra de todos contra todos, no que ele chama de Estado da Natureza. Mas tem outra coisa interessante no livro. Pegando, por exemplo, o Manifesto Comunista, Engels e Marx diziam que a época em que eles estudavam era muito mais homogênea porque a ascensão da burguesia com a Revolução Francesa organizara uma espécie de luta de classes, que é a burguesia contra o proletariado. Só que o que eles não viveram, não chegaram a presenciar, foi o superdesenvolvimento das forças produtivas, que cria uma riqueza mercadológica sem precedentes.

EC – Por falar em todos contra todos, como se dá a luta de classes na atualidade?
Calejon – Hoje, não tem mais simplesmente burguesia versus proletariado. Se tem o próprio proletariado brigando entre si. Um motoboy tem um tênis Nike e o outro quer ter um tênis Nike porque, com base no tênis que ele tem, é capaz ou não de paquerar uma pessoa da própria comunidade. Considerando que as relações sociais se organizam com base naquilo que é necessário para a produção da vida material, isso faz, em última análise, agudizar o elitismo histórico-cultural europeu que surge há 500 anos e que tem como premissa elementar fazer a manutenção dessa hegemonia do capitalismo anglo-saxão no mundo. E, ao longo do século 20, conforme essa dimensão mercadológica se agudiza, as relações sociais também se agudizam através desse elitismo histórico-cultural. Curiosamente, agora se tem uma guerra de todos contra todos que é muito mais parecida com a que Thomas Hobbes chamava de Estado da Natureza e que dizia: “A civilização europeia seria capaz de superar por meio da invasão das Américas”.

EC – Uma falácia, não?
Calejon – Basicamente, toda essa questão do iluminismo do século 18, o século das luzes, o ponto onde os seres humanos utilizam a arte da razão para organizar a sociedade, isso tudo é mais uma meia-verdade. Existe uma certa razão, mas é uma razão elitista que organiza os arranjos sociais com base em parâmetros de distinção. Mas, agora, não tem só a raça como parâmetro. Há questões socioeconômicas, questões fenotípicas, tem gordofobia, aparofobia, misoginia, machismo, etc e tal. Isso, em última análise, é o que o conceito de elitismo histórico-cultural sintetiza.

EC – A extrema direita inventou o “marxismo cultural” para atacar as pautas da esquerda e que poderia contaminar o debate sobre elitismo histórico-cultural. Isso te preocupa?
Calejon – Não, porque o marxismo cultural é uma narrativa que não tem lastro histórico nem material. Se perguntar, por exemplo, para alguém de extrema direita quais dados empíricos e materiais tem para consubstanciar a tese dele, ele vai apresentar coisas absurdamente estapafúrdias. Como a história do aquecimento global. Ele vai incorrer com falácias que dizem que, enfim, seriam capazes de sustentar a tese que ele está propondo porque assim o quer. O modelo escravista sobre o qual eu me apoio não é uma invenção da extrema esquerda nacional. Todos os achados arqueológicos que exploro no Esfarrapados não são invenções. O fato de que existia alguém que se chamava ‘marcador de negros’, responsável por marcar a ferro quente um escravo que chegava, não é uma invenção minha. O fato de que os europeus – com base no que John Locke escreveu – usurparam as comunidades ameríndias porque elas não praticavam a agricultura extensiva, não foi eu quem inventou. Então, existem dados materiais históricos e empíricos que dão legitimidade na defesa daquilo que estou propondo. Mas a provocação é muito boa porque se esse não fosse o caso, se o meu conceito não passasse pelo escrutínio de dados empíricos de como o Brasil se organizou histórica e culturalmente, de fato, eu não teria nada nas mãos. Teria mais uma narrativa vazia que não serve para nada, além de cooptar mentes incautas e que são intelectualmente frágeis.

EC – Quais são as analogias possíveis entre bolsonarismo e o fascismo que irrompeu na Itália de Mussolini?
Calejon – A principal diferença que eu vejo entre Mussolini e Bolsonaro é o dogma religioso. Mussolini não era afeito à questão religiosa, e Bolsonaro é uma figura que, a despeito de não ser uma pessoa religiosa, também se vendeu como ‘um líder messiânico, ungido por Deus para combater a esquerda demoníaca e a corrupção dos políticos malvados’. Todo o restante, claro, colocando em perspectiva as devidas peculiaridades da Itália do começo de 1930 e do Brasil de 2018, é absurdamente análogo. A questão de fuzilar os opositores, Bolsonaro disse “vamos fuzilar a petralhada”; a intolerância com a diversidade, a violência, a agressão, tudo, tudo absurdamente análogo ao que fez não só Mussolini, mas o nazifascismo na Alemanha, Franco, na Espanha, enfim, todos esses regimes autoritários, cada um com suas próprias características, mas com um caráter absurdamente violento e intolerante no cerne das suas próprias filosofias. Eu diria que o fascismo de Mussolini e o neofascismo de Bolsonaro são irmãos gêmeos.

EC – Qual é o papel da educação na superação desse elitismo histórico-cultural?
Calejon – Neste trabalho, eu faço algumas inferências diretas naquilo que eu acho pertinente no sentido de pensar estratégias objetivas que sejam capazes de superar o elitismo histórico-cultural, que é uma questão a perder de vista. Entre essas, penso que a principal é uma educação libertadora, uma educação antirracista, uma educação que seja capaz de compreender o mundo no qual os alunos estão inseridos. Uma educação que é capaz de contemplar a subjetividade das pessoas para transcender o que o Freire chamou de uma educação tecnicista, bancária, que enxerga o aluno como um mero repositório de conteúdo e que, de muitas maneiras, é aplicada até hoje. Com base nesse tipo de educação libertadora, que é o cerne de tudo o que a gente discutiu aqui, eu proponho outras coisas objetivas para o ensino médio, como, por exemplo, economia política, o entendimento mínimo de dinâmicas constitucionais e, por fim, geopolítica global.

Do jornal Extra Classe, do Sinpro/RS

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