Sinpro/RS: Educação na pandemia — o que avaliar e por quê?
“É hora de organizar as escolas, formar professores
e ativar uma rede de proteção social com o objetivo
de garantir o direito à educação de todas as nossas
crianças e jovens” (Alexandre Schneider)
Avaliar em educação só tem sentido sério se tiver um objeto e uma finalidade definida, como: avaliar uma política pública de educação implementada na pandemia, um programa de apoio às escolas, política de formação de professores para uso de tecnologias, políticas de apoio à conectividade dos estudantes ou uma rede de proteção social às crianças e jovens impactados pela covid-19 e pela desigualdade social e tecnológica.
Então, qual a finalidade de avaliar a aprendizagem dos estudantes em um ano no qual o ensino remoto foi uma improvisação, uma desorganização geral e inviabilizou o acesso à aprendizagem escolar? Disponibilizar aulas em vídeo ou em aplicativos de celular, em plataformas empresariais ou simplesmente enviar materiais impressos às casas dos estudantes e pensar que eles iriam aprender autônoma e individualmente?
Estudos do IBGE revelam que 4,3 milhões de estudantes entraram na pandemia sem acesso à internet. Segundo a Unicef, em 2019, havia quase 1,1 milhão crianças e adolescentes em idade escolar obrigatória fora da escola no Brasil. A maioria delas, crianças de 4 e 5 anos e adolescentes de 15 a 17 anos. Em novembro de 2020, mais de 5 milhões de meninas e meninos de 6 a 17 anos não tinham acesso à educação no Brasil. Desses, mais de 40% eram crianças de 6 a 10 anos, faixa etária em que a educação estava praticamente universalizada antes da pandemia.
Um levantamento realizado com dados do censo 2020 em 27 mil escolas públicas apontou que apenas 5.425 têm velocidade adequada para ensino híbrido ou capacidade para uma videochamada para aulas síncronas. As disparidades e desigualdades regionais tecnológicas contribuem para que os estudantes do campo, indígenas, quilombolas e pobres da periferia não tenha acesso à internet e nem ao ensino, portanto, aprendizagens comprometidas.
Uma avaliação aplicada pelo Centro de Políticas Públicas e Avaliação da Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora (CAEd-UFJF) no estado de São Paulo revelou queda significativa aprendizagem, especialmente no ensino fundamental, justamente pela ausência da relação presencial do professor com o estudante.
Embora as perdas na aprendizagem sejam semelhantes às dos países desenvolvidos, precisamos considerar as desigualdades brasileiras que são maiores e as condições de trabalho docente entre as piores do mundo conforme relatórios da OCDE. Grupos de estudantes mais vulneráveis, portanto, devem ter resultados ainda piores devido às suas condições socioeconômicas. Nenhuma novidade. Já existem estudos disponíveis há décadas.
Para Alexandre Schneider, pesquisador da Universidade Columbia em Nova York e da FGV em São Paulo, passamos muito tempo discutindo quando abrir ou não abrir escolas e dedicamos poucos esforços a medir os impactos das políticas educacionais implementadas no último ano ou a ausência delas. Talvez aqui resida uma questão para escutar a comunidade escolar: que políticas públicas e programas faltaram, na pandemia, de apoio à aprendizagem?
E é preciso entender que não vamos voltar às aulas presenciais no modelo anterior à pandemia até o fim desse ano de 2021, a julgar pelo ritmo de vacinação. Nem 2022 será normal. Logo, transformar “a educação serviço essencial”, sem prover as escolas e os professores de condições, principalmente, através de políticas e redes de proteção social aos estudantes vulneráveis, é falácia e se constitui mera retórica ideológica, pautada pela lógica da avaliação de desempenho escolar descontextualizada.
Não podemos permitir nem admitir que o ensino de 2021 seja tão prejudicado como em 2020, como tudo indica. A prioridade dos gestores públicos não deve ser a realização de avaliações de desempenho, como é o caso do Avaliar é Tri RS. A emergência são investimentos novos diretos nas escolas, tanto em conectividade como em condições de estudo e, “ativar uma rede de proteção social nos territórios em que estão as escolas é o maior escudo contra o aumento da evasão escolar”, recomenda Alexandre Schneider.
A avaliação da aprendizagem praticada no Brasil, que mede apenas os conteúdos aprendidos, não é suficiente para avaliar a formação da criança e do jovem. É necessário superar o que o senso comum entende por avaliação. É preciso abandonar a ideia que associa avaliação a uma tomada pontual de conhecimentos e aprendizagens a partir de um único instrumento, como as provas aplicadas no Brasil.
Manifesto de dezenas de diretoras e diretoras de escolas estaduais aponta que essa avaliação no momento do retorno da presencialidade atravessa o planejamento das escolas, fere sua autonomia pedagógica, coincide com as avaliações e o encerramento do primeiro trimestre e vai gerar uma relação injusta e dados infiéis de quem realizar a prova on-line, inclusive, porque os estudantes podem pesquisar as respostas na rede virtual ou física.
O que se espera do estudante
A avaliação justa, além da função diagnóstica, tem também função processual (somativa) e formativa da totalidade do sistema de ensino, da escola e dos processos de ensino-aprendizagem.
É urgente que se reflita o que se espera do estudante ao final da educação básica. As provas baseadas na língua portuguesa e matemática não dão conta dessa totalidade escolar muito menos da educação enquanto processo social, mais ainda em tempos de pandemia onde a vida está ameaçada e as incertezas pairam nas mentes dos estudantes.
Portanto, conforme já destacado por especialistas na Carta de Campinas sobre Avaliação (2012), a avaliação tal como praticada nos sistemas de ensino toma medidas pontuais de domínio de determinados conhecimentos e habilidades nele desenvolvidas. Não ajuda a estabelecer e efetivar qualquer benefício para o processo educacional em seus diferentes níveis.
Nesses 15 meses de pandemia, as aprendizagens sobre cuidados com a vida, sobre saúde física e mental, virologia, infectologia, genética, biologia, química, filosofia, sociologia política, vivência e convivência com a diferença e necessidade de empatia foram, sem dúvida, bem superiores às aprendizagens língua portuguesa e matemática. Outras aprendizagens foram demandadas, se manifestaram e se efetivaram fora da escola. Aprendizagens que marcaram essas gerações, mas que essas avaliações ignoram e não captam.
Para José Pacheco, fundador da Escola da Ponte, o problema é que todo mundo que escreve e formula sobre ciências da educação está a leste de tudo que seja ciência da educação. É preciso saber filosofia da educação, história da educação, sociologia da educação, as várias psicologias da educação, antropologia da educação.
Os gestores de políticas educacionais, na sua maioria, não são especialistas em educação. Desconhecem as ciências da educação, aliam-se a fundações e institutos empresariais e reproduzem na educação as lógicas de mercado e da economia que são radicalmente distintas ou mesmo antagonistas. Economia é resultado e quantidades. Educação é processo e aprendizagem ao longo da vida.
A finalidade da educação básica – e de seus processos avaliativos – deve ser a formação da autonomia intelectual do estudante, a promoção de nova ética do estudo, da dignidade do trabalho, das experiências, das vivências, do sucesso, do fracasso, da natureza humana e da vida em sociedades justas. Encontrar um caminho para além da política polarizada do nosso tempo, diz Michael Sandel, exige levar em consideração o mérito. Entretanto, a meritocracia de hoje endureceu, tornando-se uma aristocracia hereditária.
Na próxima coluna abordaremos a falácia da meritocracia na educação.
*Gabriel Grabowski é professor e pesquisador. Escreve mensalmente para o jornal Extra Classe.