Sinpro/RS: Fragmentação do ensino médio incentiva desigualdades
O Novo Ensino Médio preocupa pesquisadores, mobiliza entidades, e sua implantação, na rede pública estadual do RS, já é alvo de movimentações entre deputados para tentar alterar a legislação
Apresentado por diferentes governos como uma inovação para que a educação atenda às demandas dos jovens e da sociedade nos dias atuais, o Novo Ensino Médio preocupa pesquisadores, mobiliza entidades, e sua implantação, na rede pública estadual do RS, já é alvo de movimentações entre deputados para tentar alterar a legislação. O que inflama os debates são justamente os dois eixos centrais da reforma: as mudanças na carga horária e na organização curricular e os riscos de descontrole e fragmentação que embutem.
Os defensores da reforma admitem que as mudanças estão ancoradas em alterações significativas, mas defendem que ela possibilita a diversificação das experiências escolares e a viabilização de uma ‘formação integral, humanista e profissional’.
Em documentos, palestras e entrevistas, a reforma está sempre atrelada a expressões como dinamismo, transversalidade, aproximação com as demandas do mercado de trabalho e conexão das juventudes com o mundo contemporâneo.
No RS, os termos são uma constante tanto nas manifestações da Secretaria Estadual da Educação (Seduc) como no Referencial Curricular Gaúcho do Ensino Médio (RCGEM), o documento técnico-normativo que regra a implantação da reforma no Estado em conformidade com a lei federal, e que foi elaborado pela secretaria em colaboração com a União Nacional dos Dirigentes Municipais da Educação (Undime) e o Sindicato do Ensino Privado no RS (Sinepe).
Pesquisadores e observadores que se dedicam a estudar as características desta etapa da educação regular e as alterações em andamento asseguram, contudo, que, na prática, a reforma irá resultar em um aumento ainda maior da desigualdade entre a população. Isto porque ela rompe com a concepção de educação básica anteriormente prevista na Lei de Diretrizes e Bases da Educação, uma vez que a formação básica deixa de ser a mesma para todos os estudantes; testa limites da organização curricular, fornecendo autonomia às redes de ensino em relação aos itinerários formativos (os conjuntos de disciplinas e projetos flexíveis, por área do conhecimento, que não as tradicionais existentes até então), e abre a porta para a participação direta de empresas e organizações na instrução dos estudantes, levadas adiante por meio de parcerias com os governos.
“A organização ficou tão descentralizada que o ensino médio passa a ser extremamente fragmentado, o que, de modo geral, resulta em uma formação fragilizada na rede pública, principalmente em relação ao que as escolas particulares poderão oferecer, mas, também, em relação a escolas da mesma rede que tenham maior estrutura. Esta diferença, que já pode ser percebida, amplia a desigualdade na oferta, e, por consequência, entre os jovens, com todos os desdobramentos que essa condição implica”, explica a coordenadora do Grupo de Estudos de Políticas Públicas para o Ensino Médio (Geeppem) e pesquisadora do Núcleo de Estudos de Políticas e Gestão da Educação da Ufrgs, professora Patrícia Marchand.
Encolhimento da Educação Física
A pressão exercida por parte de entidades, pesquisadores e agentes políticos sobre representantes governamentais e o domínio sobre a complexidade da mudança, no entanto, até agora não alcançaram, de forma mais abrangente, estudantes, pais e responsáveis. No estado, o que ganhou maior visibilidade foi a redução drástica da carga horária da disciplina de Educação Física. Antes, ela tinha cinco períodos obrigatórios (dois por semana no 1º ano, dois no 2º e um no 3º). No Novo Ensino Médio, tem só um (no 1º ano). Nos outros dois anos, sua prática dependerá do itinerário formativo seguido pelo aluno.
Em fevereiro deste ano, 20 entidades divulgaram a “Carta Aberta em Defesa da Educação Física no RS: um alerta à sociedade gaúcha sobre a Portaria 350”. Além de expor a nova realidade do ensino médio, o documento aponta a portaria da Seduc, datada do ano passado, que reduz a carga horária da disciplina também no Ensino Fundamental. A mobilização foi parar no Legislativo estadual, que instalou uma Frente Parlamentar em Defesa da Educação Física Escolar, presidida pela deputada Juliana Brizola (PDT).
“Sabemos que uma Frente Parlamentar tem um papel muito simbólico, mas queremos, com a iniciativa, dar luz ao debate e abrir uma porta de diálogo com o governo. A grande pergunta é: qual estudo o governo fez, ou em quais estudos embasou esta redução?”, questiona a deputada. Conforme Juliana, nesta fase, a Frente está pesquisando qual a melhor forma de, juridicamente, garantir uma oferta adequada da disciplina. “Uma das possibilidades é a de uma emenda à Constituição, como já precisamos fazer no passado com a Língua Espanhola”, adianta.
O encolhimento da Educação Física no currículo é o que mais tem chamado atenção, mas o representante do Sinpro/RS no Conselho Estadual de Educação (CEEd/RS), Sani Cardon, lembra que a redução atinge praticamente todas as disciplinas do chamado currículo básico. “Os regramentos adotados pelo governo estadual estão de acordo com a legislação federal. O problema é que são danosos aos estudantes. É fato que o Conselho homologou o RCGEM, para não ferir a legislação. Mas também é fato que fez uma recomendação para que as disciplinas estivessem presentes nos três anos, e foi ignorado”, ressalta. (Leia as resoluções as Resoluções CEEd: 364/2021 ,365/2021 e 366
Artes, Filosofia, Sociologia também perderam espaço
Na rede estadual, além de Educação Física, as disciplinas de Artes, Filosofia, Sociologia e Língua Espanhola também terão um período apenas, em um dos três anos. Antes eram três. Estudantes ainda podem optar por, em vez de Língua Espanhola, cursar um período extra de Língua Inglesa. Literatura deixa de ter um período em cada um dos anos e passa para dois no 1º ano.
Biologia, Física e Química, que antes ocupavam dois períodos em cada um dos anos, deixam de ser ministradas no 3º ano. Inclusive Língua Portuguesa e Matemática, que permaneceram obrigatórias nos três anos, tiveram uma redução em relação ao formato anterior. “Levando-se em conta os três anos, serão 11 períodos de cada uma. Antes, eram 16 de Matemática e 15 de Língua Portuguesa”, contabiliza a professora Marchand. Além das duas disciplinas, somente Língua Inglesa consta no novo currículo nos três anos.
No máximo, um ou dois itinerários
Segundo Marchand, com a diminuição dos períodos das disciplinas tradicionais, a única forma de aprofundar os componentes da educação básica será em itinerários específicos. E, por isso, em uma comparação entre as redes estadual e privada, já foi possível identificar que parte das escolas particulares oferece pelo menos dois ou três itinerários que contemplam as áreas mais gerais, como Linguagens e Matemática.
No RS, em tese, na rede estadual, existe a perspectiva de implantação de 10 itinerários (Cidadania e Gênero, Educação Financeira, Empreendedorismo, Expressão Corporal, Expressão Cultural, Profissões, Relações Interpessoais, Saúde, Sustentabilidade e Tecnologia), e há orientação para que cada escola ofereça pelo menos dois deles.
“Só que, pela legislação vigente, as escolas precisam oferecer apenas um itinerário. Por isso consideramos uma falácia apresentar a reforma como algo que vai proporcionar um ensino mais flexível, onde o aluno pode escolher.
O fato é que em municípios que possuem apenas uma escola estadual, esta escola vai oferecer um itinerário e um segundo itinerário poderá ser ofertado em parceria com instituições privadas, o que também é complicado, porque essas instituições vão direcionar a formação para os seus interesses. Infelizmente, a maioria das escolas vai ter um, ou dois itinerários formativos, e os alunos vão precisar ficar restritos a essas possibilidades”, projeta a coordenadora.
Para entender melhor as mudanças
O Novo Ensino Médio começou a ser implementado nas escolas públicas e privadas de todo o país neste ano, de forma progressiva. Assim, passam, em 2022, a cumprir o novo currículo os estudantes dos 1º anos. Em 2023, os estudantes dos 1º e 2º anos. E, em 2024, os dos 1º, 2º e 3º, completando a implantação da mudança para todos. Alunos matriculados em 2022 nos 2º e 3º anos seguem o currículo antigo, o que também ocorrerá com os estudantes dos 3º anos em 2023.
O novo modelo foi estabelecido a partir da Medida Provisória (MP) 746, enviada ao Congresso Nacional pelo então presidente, Michel Temer (MDB), em setembro de 2016. Em cinco meses, a MP recebeu o aval do Legislativo e se converteu na Lei 13.415/2017, sancionada em fevereiro daquele ano, alterando a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). À época, a rapidez com a qual a reforma foi decidida e a falta de maiores debates, mesmo que ela promovesse uma complexa mudança, foram alvo de movimentos e protestos de estudantes e entidades. O hiato de cinco anos entre a aprovação e sua implementação, de fato, acabou, entretanto, por desidratar os debates e as mobilizações.
A reforma altera o que os pesquisadores chamam de espinha dorsal do ensino médio: a organização curricular e a carga horária, promovendo uma descentralização. A carga horária foi aumentada de 800 para 1.000 horas/ano, ou seja, passou de 2.400 horas para 3.000 horas no total dos três anos. O acréscimo, porém, veio combinado com uma mudança profunda no currículo, o qual começou a ser dividido entre os componentes curriculares da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que traz os conhecimentos essenciais, dentro de uma grade obrigatória comum, e os chamados itinerários formativos, cujo foco são áreas de conhecimento, e dos quais fazem parte agora a formação técnica e profissional direcionada ao mercado de trabalho. Conforme a legislação, os itinerários são compostos por conjuntos de disciplinas, projetos, oficinas e núcleos de estudo, entre outras situações de trabalho. A organização das áreas cabe a cada sistema de ensino. E pode haver integração de componentes curriculares da base comum com disciplinas das áreas de conhecimento.
A Formação Geral Básica ou currículo comum abrange, no estado, as disciplinas de Língua Portuguesa, Matemática, Física, Química, Biologia, História, Geografia, Literatura, Filosofia, Sociologia, Língua Inglesa, Língua Espanhola, Artes e Educação Física. No caso de escolas particulares confessionais, também Ensino Religioso. Os itinerários formativos, por sua vez, são assuntos específicos de cinco áreas do conhecimento, entre as quais, em tese, o aluno poderá escolher. São elas: Matemáticas e suas Tecnologias; Linguagens e suas Tecnologias; Ciências da Natureza e suas Tecnologias; e Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, além da chamada Formação Técnica e Profissional (FTP).
Na nova matriz, a Formação Geral Básica contempla 1.800 horas, e os itinerários formativos, 1.200 horas, totalizando 3.000 horas nos três anos (1.000 horas/ano). Antes da reforma, eram 800 horas por ano. Apesar do aumento de horas totais, a carga de disciplinas do currículo comum na soma dos três anos encolheu. No RS, apenas no 1º ano a Formação Geral Básica do Novo Ensino Médio ficou com carga horária de 800 horas, como no modelo antigo. Outras 200 são de itinerários formativos. No 2º ano, a Formação Geral Básica terá 600 horas. As outras 400 horas serão de itinerários formativos. E, no 3º ano, a carga da Formação Básica cai para 400 horas (a metade da anterior), ficando os itinerários com 600 horas.