Sinpro/RS: Paulo Freire a mais de 100
O dia 19 de setembro de 2021 marca o centenário de nascimento de Paulo Freire e quanto mais ele é atacado nas redes sociais mais popular ele fica
Por Marcelo Menna Barreto
O próximo 19 de setembro marca o centenário de nascimento de Paulo Freire. Mesmo tendo dado seu último suspiro no dia 2 de maio de 1997, hoje ele está mais vivo do que nunca. Nem mesmo Jair Bolsonaro na presidência da República do Brasil, tendo apontado Freire como um dos principais inimigos da nação, conseguiu parar um verdadeiro tsunami de homenagens àquele que é reconhecido como um dos mais proeminentes educadores do mundo.
O número de palestras, homenagens, encontros, premiações e bate-papos que acontecem desde as mais modestas das cidades às grandes metrópoles internacionais é tanto que, como, de fato, um tsunami, se tornou impossível de controlar.
“Todos os dias eu recebo uma ligação para participar de uma live, para dar um testemunho. Há pouco, foi um pedido que veio da Finlândia”, registra Lilian Contreiras, última secretária de Paulo Freire. “Está difícil até conciliar a minha agenda com tantos convites que me aparecem”, completa ela, que lembra ter começado a trabalhar com Freire muito jovem, após sua graduação em Letras. “Aí eu comecei a me descobrir como gente. Ele valorizava o que as pessoas pensavam”, diz.
“Eu me sinto muito feliz, diria muito honrada. Paulo merece. Paulo foi um homem absolutamente extraordinário, que viveu a sua vida em função de humanizar as pessoas, lutando contra a miséria, lutando contra o analfabetismo, a favor dos vilipendiados pela elite brasileira.” A declaração de Nita Freire, viúva do educador, sai com emoção.
Apesar do centenário daquele que marcou a sua vida e ainda marca também a de gerações de educadores mundo afora ocorrer sem comemorações oficiais, como um lançamento de um selo postal pelos Correios do Brasil, devido à oposição do governo Bolsonaro às ideias freireanas, Nita registra um boom na venda de obras de Paulo Freire e sobre Paulo Freire. Fato confirmado pela Paz e Terra, editora que publica as obras do educador.
Realmente, Bolsonaro aguçou a curiosidade a respeito do ilustre pernambucano que se mostrou ao mundo na exitosa experiência de Angicos (RN), em 1963. Na ocasião, 380 trabalhadores foram alfabetizados em 40 horas através do método criado pelo educador.
“Está se vendendo muitos livros de Paulo. Os jovens estão curiosos para saber o que esse homem que é chamado de todos os nomes feios que vêm à cabeça de uns fez para ter tanto ódio contra”, fala Nita.
A procura, a discussão do trabalho de Freire por jovens é o que deixa Nita mais contente. “É uma coisa impressionante, uma coisa maravilhosa.”
Não adianta bater
Para a também educadora Nita, a “pancadaria” promovida pelo atual presidente do Brasil “para acabar com Paulo” só tem o efeito contrário. “Agora, ele (Bolsonaro) até parou um pouquinho. Se deu conta de que é impossível acabar com Paulo. Não adianta bater em Paulo, não adianta bater.”
O motivo: “Paulo tem um conjunto de ideias que, ao as ler, elas nos afagam. As ideias de Paulo são ideias que satisfazem aos que são verdadeiramente humanos, aos que sabem amar. Aqueles que não sabem amar são os que fazem propaganda contra Paulo”, declara Nita.
Para ela, quem ama “fica absolutamente encantado” ao ler um livro de Paulo Freire. Na obra, “se descobre coisas da filosofia, da explicação do mundo, que não eram ditas em lugar nenhum. Paulo explica o mundo em que nós vivemos, as contradições do mundo e isso é uma coisa fantástica”, registra.
Amor, então, é a síntese da professora Nita sobre o trabalho de Paulo Freire. Ela se casou com o educador em 1988, dois anos após a morte de Elza Maria Costa de Oliveira, professora primária, com quem Freire teve cinco filhos.
Lilian Contreiras acompanhou de perto o amor de Freire no seu fazer pedagógico e à Nita que, em 2013, lançou pela Paz e Terra o livro Nós dois. Dezesseis anos após sua morte, Paulo Freire figurava ao lado como autor. “É lindo. A Nita fez o livro com fac-símiles de bilhetes, de cartões que o professor enviava para ela. Eram apaixonados”, lembra a ex-secretária.
Cristão e exilado por ser “comunista”
O escritor Frei Betto era convidado frequentemente por Paulo Freire para partilhar de sua mesa. “Como era muito cristão, ele pedia em uma data, assim, de aniversário, celebração de anos de casamento, para ir lá filar a boia com ele, e, antes ou depois, fazer uma oração agradecendo a Deus pela efeméride. Esse era o Paulo.”
O frade dominicano, com 69 livros publicados no Brasil e no exterior, ainda registra sobre o amigo: “Era uma pessoa muito gentil, muito acolhedora. Um cristão convicto; se orgulhava disso”.
A declaração contrasta com um Paulo Freire que é demonizado por cristãos fundamentalistas, “que fazem pescaria de versículos”, explica Betto.
Sobre Paulo Freire e seu cristianismo, Lilian Contreiras lembra do que chama uma “tríade” que, volta e meia, o destino reunia: o bispo católico Dom Helder Câmara, o confrade de Betto, Frei Carlos Josaphat, e Paulo Freire.
“Todos se conheceram no Recife e, depois, se esbarravam pela vida”, lembra. Frei Josaphat, que dirigia o primeiro jornal fechado pelos militares em 1964, era capelão do Colégio Oswaldo Cruz, de propriedade dos pais de Nita, que chegou a conhecer o então futuro marido lá, como estudante.
Depois, Freire e Josaphat praticamente partilharam o exílio juntos na Suíça. Falecido no ano passado aos 99 anos de idade, o religioso “foi convidado” a sair do Brasil como falou em uma entrevista ao Extra Classe em 2017 e foi lecionar na conceituada Universidade de Friburgo. Dom Helder, em suas viagens ao exterior para denunciar as violações dos direitos humanos pela ditadura, volta e meia os encontrava.
Mais tarde, já no Brasil, Freire colaborou fortemente com Dom Paulo Evaristo Arns, estimulando a ação das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) em São Paulo, diz Claudius Ceccon, um dos fundadores do jornal O Pasquim.
Ceccon conheceu e tornou-se amigo de Freire quando, também exilado, trabalhava em Genebra. (Leia artigo nesta edição).
O educador, que fora expulso do Brasil por ser considerado um perigoso subversivo comunista, após passagem pelo Chile e pela Universidade de Harvard, como professor, integrou o Departamento de Educação do Conselho Mundial de Igrejas, sediado naquela cidade.
A Ceccon foi atribuído o acolhimento de Paulo Freire e família. Amigos diziam em carta que o educador poderia estranhar muito a Suíça e pediam uma atenção carinhosa. “Que missão fantástica me era confiada!”, exclama.
Mais do que um método
A obra de Paulo Freire, segundo frei Betto, teve influência da Ação Católica, movimento que incentivava o fortalecimento da fé religiosa com base na Doutrina Social da Igreja. Em especial, no método Ver, Julgar e Agir, originalmente usado na Juventude Operária Católica (JOC), criada pelo sacerdote belga Joseph Cardijn, tempos depois alçado ao título de Cardeal.
“A questão dele (Freire), de, antes da leitura da letra, ter que se ter a leitura do mundo, tem muito a ver com isso”, explica o frade.
O que mais toca Betto na história do amigo é que “se uma pessoa como o Lula, um operário, chegou à presidência do Brasil, foi graças a Paulo Freire”, declara.
Para o dominicano, foi Freire quem primeiro fez com que gente simples, do povo, assumisse um protagonismo político. “Até Paulo Freire, era nós, intelectuais pequeno-burgueses, que nos achávamos no direito de conduzir o proletariado, não é? De conduzir aqueles que são excluídos. Paulo Freire reverteu isso”, admite.
Não é à toa que menos de um mês após a experiência de Angicos, em maio de 1963, a cidade registrou a primeira greve em sua história. É de lá que vem o estigma que se busca grudar no educador. Na ocasião, os fazendeiros chamavam o trabalho de Freire de “praga comunista”.
Uma teoria da educação
A doutora em educação Liana Borges, criadora e Curadora Nacional da Rede Café com Paulo Freire, diz que é natural que Freire seja reconhecido como aquele que criou um método exitoso de alfabetização de jovens e adultos. “Mas isso, considerando o seu seu legado, criou um equívoco diante da importância do conjunto de sua obra”.”
Para ela, o educador popular, como Freire gostava de ser chamado, criou, de fato, uma teoria da educação. “A diferença de Paulo Freire e a importância dele para a educação e para saúde, para a assistência social, para a moradia, para o meio ambiente, para a terra, para tudo o que a gente quiser é exatamente isso. O que tem de diferencial é que, além de uma teoria, ele tem uma metodologia”, comenta.
Liana aponta três ideias de Freire que considera fundamentais: a educação não pode ser neutra, a educação é transformadora e a educação tem compromisso com a democracia.
Para Freire, nessa lógica, “qualquer ato educativo precisa responder àquelas perguntas: que mundo que eu quero, que pessoas eu quero para construir esse mundo que eu quero e qual é a educação necessária para formar essas pessoas que vão construir esse mundo”, registra Liana.
Reafirmando a ideia do mestre, “a educação nunca é neutra. Eu posso até não saber que mundo eu quero, mas, ainda assim, eu estou construindo esse mundo”. A educadora diz ser praticamente impossível resumir o pensamento de Freire em três tópicos.
Ressalta, no entanto, que não tem fatalismo para Paulo Freire: “É assim, então não adianta fazer nada, que é mais ou menos o que a gente ouve do senso comum”.
“Freire diz não ao conformismo”, afirma Liana. “Para ele, a educação tem uma capacidade de transformação, de reflexão que faz com que a gente se compreenda no mundo como quem está sendo no mundo. Ou seja, todo o dia eu tenho capacidade de me reinventar e de reinventar o mundo.” “Tudo isso tem a ver com a esperança”, conclui. Ela se prepara para lançar o livro Diálogos com Paulo Freire para mudar o mundo – 100 anos de um educador, em parceria com o jornalista Cristiano Goldschmidt.