Sinpro/RS: Privatização da CEEE — o barato que custa caro ao RS e aos consumidores
A venda da CEEE para a Equatorial, trunfo político de Eduardo Leite, gerou problemas e coloca em xeque o modelo privatista da gestão tucana
Por Flávio Ilha
A privatização da CEEE, o grande trunfo político de Eduardo Leite como governador e candidato a candidato à presidência da República, gerou uma enxurrada de problemas aos consumidores logo depois de uma simples tempestade de verão. Falta de pessoal, falha de planejamento e envio de equipamentos para a matriz da Equatorial – grupo privado que adquiriu a estatal gaúcha –, em Minas Gerais, teriam sido algumas das causas. Porém, o que ficou em xeque foi o modelo privatista da gestão tucana, marcada pela ausência de debate com a comunidade e pelo despreparo da empresa compradora, que adquiriu um patrimônio estratégico dos gaúchos pelo preço de um automóvel médio. No dia 7 de abril, a CEEE Equatorial foi multada em R$ 3,452 milhões pela Agência Estadual de Regulação dos Serviços Públicos Delegados do Rio Grande do Sul (Agergs). O motivo é o atraso na entrega das informações solicitadas por consumidores que ficaram sem luz por até 10 dias depois do temporal.
No dia 4 de agosto de 2021, o Grupo Equatorial publicou a primeira postagem em suas redes sociais dirigida aos consumidores do Rio Grande do Sul. Em tom grandiloquente, seguido de uma imagem do Centro de Porto Alegre brilhando como nunca, a empresa que comprou a CEEE-Distribuidora por R$ 100 mil, menos que um automóvel médio, prometia fazer parte da história do Estado. De fato, passou a fazer: oito meses depois, no dia 6 de março, um temporal corriqueiro de verão deixou 190 mil clientes (ou 12% dos clientes da empresa) sem luz. Dez dias depois, por incrível que pareça, mais de 20 mil consumidores continuavam sem energia em várias cidades da Região Metropolitana.
A privatização da CEEE, que enfrentou uma longa disputa judicial e política, passou a ser a menina dos olhos do governador Eduardo Leite (PSDB) na sua cruzada para ser presidenciável ainda em 2022. A venda foi realizada em um “leilão” na Bolsa de Valores de São Paulo no dia 31 de março de 2021, onde havia apenas uma oferta – a operação comandada pessoalmente por Leite durou menos de 10 minutos. Mas não foi um fracasso, como se pode deduzir. Além de se livrar de um mico contábil de R$ 4,4 bilhões em ICMS dentro do próprio governo, Leite também cortou os investimentos que teria de fazer para reequipar a empresa – sucateada ao longo de sucessivos governos.
Azar dos consumidores, que não têm a opção de trocar de fornecedor. A modelagem da venda da CEEE, planejada pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), tem tudo para ser considerada um negócio entre amigos: cerca de R$ 2,8 bilhões daquela dívida de ICMS foram transferidos do caixa estadual para a CEEE-Par, holding cujo maior acionista é o próprio governo do Estado. Um movimento meramente contábil. O passivo, com isso, foi reduzido a R$ 1,7 bilhão, previsto para ser quitado pela Equatorial em 15 anos.
Os piores serviços do país, segundo o ranking da Aneel
A demora em resolver problemas pontuais de abastecimento, portanto, não surpreendeu. Além de garantir a venda por meio de uma manobra contábil, e também de driblar a exigência constitucional de plebiscito (derrubada pela Assembleia Legislativa), a privatização a toque de caixa transferiu a energia de um terço da população gaúcha a um grupo campeão em reclamações e cujas empresas estão sempre nas últimas posições no ranking de eficiência da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel).
A CEEE Equatorial, no levantamento publicado em 15 de março, continuou na 29ª posição entre 29 concessionárias – posição que a CEEE-D ocupava, coincidentemente, desde 2019. A Equatorial Maranhão, do mesmo grupo, ficou em penúltimo lugar no levantamento de 2021.
O Grupo Equatorial é uma holding criada em 1999 para usufruir os negócios proporcionados pelo Plano Nacional de Desestatização do governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Tem, entre seus acionistas, a Squadra Investimentos (investigada pela Comissão de Valores Mobiliários em operações de compra e venda de empresas), o banco Opportunity (fundado por Daniel Dantas), o fundo de pensão canadense CPPIB e o empresário Jorge Paulo Lemann, dono da Ambev. O lucro da companhia chegou a R$ 3,6 bilhões em 2021, com avanço de 24,2%, em comparação com o exercício de 2020.
Mesmo assim, milhares de gaúchos, que não entendem de balanços contábeis ou sequer sabem da privatização, amargaram muitas horas sem luz devido à inoperância da empresa. Sem luz e sem previsão de restabelecimento da energia. Inconformados, foram às ruas. Quatro dias depois do temporal, 10 mil consumidores ainda estavam sem energia. Em Gravataí, moradores do bairro Morungava fecharam ruas no dia 10 de março em protesto contra o descaso da Equatorial. Em Viamão, colocaram fogo em pneus para bloquear a avenida Paraguassu, no bairro Jari. A cena se repetiu em Alvorada.
Em Porto Alegre, moradores também realizaram manifestações na Vila Vargas, no Morro da Cruz e no bairro São José, zona leste da cidade. Equipes da CEEE Equatorial tiveram de ser escoltadas pela Brigada Militar. Também houve queima de galhos, lixo, colchões e pneus em localidades do extremo sul da capital, como no Beco do Adelar e na estrada João de Oliveira Remião.
O Sindicato dos Eletricitários do Rio Grande do Sul (Senergisul) acusou a Equatorial de promover um plano de demissão voluntária, que resultou no desligamento de 998 funcionários da empresa, o que representa quase 50% do efetivo. “Entre eles, servidores de carreira com décadas de experiência em manutenção de redes e de subestações. Um profissional com essa capacitação não se forma da noite para o dia, são necessários pelo menos cinco anos para uma atuação segura e eficiente”, completou o presidente do Sindicato, Darlan da Silva Oliveira. Ainda assim, a empresa continuou demitindo trabalhadores depois de vencido o prazo de seis meses de estabilidade determinado pelo contrato de venda. Em muitas cidades do interior, segundo Oliveira, o atendimento de ocorrências já está totalmente terceirizado.
Oposição irá insistir em CPI para investigar a privatização
A demora em atender ao apelo dos consumidores também chamou atenção do Ministério Público do Estado, que abriu investigação junto à Promotoria do Consumidor para apurar as causas do apagão e cobrar a aplicação das medidas propostas pela concessionária. Entre elas, investimentos de R$ 432 milhões em projetos de novas subestações, expansão e melhoria de rede, além de manutenção e combate às perdas de energia. A maioria das ações apresentadas tem previsão de ser concluída no decorrer de 2022.
Ao Ministério Público (MPE), a Equatorial alegou que foi surpreendida “pela gravidade dos cinco eventos climáticos na sua área de atuação” e culpou a estrutura precária, comprada na privatização, pela falta de luz nas residências gaúchas. Além disso, justificou que os custos operacionais e o passivo da empresa, negociados no acordo que garantiu a operação à Equatorial, dificultaram uma solução.
“Temos de fazer investimentos vultuosos para trocar cerca de 600 mil postes de madeira por similares em concreto, para dar robustez ao sistema”, disse o superintendente da empresa, Julio Hofer. Ele assegurou que fará um levantamento completo da cobertura vegetal na região metropolitana de Porto Alegre para identificar possíveis pontos de atrito que possam provocar novos cortes, em caso de eventos climáticos inesperados. Hofer se recusou a falar sobre as demissões e, também, sobre a demora em atender aos chamados dos consumidores.
O presidente da CEEE Equatorial, Maurício Velloso, disse que a companhia tem responsabilidade pela prestação do fornecimento de energia e sabe que, no momento, o serviço não é adequado. O executivo garantiu que o compromisso assumido pela empresa irá se realizar. Entre esses compromissos, estava um mirabolante “plano de 100 dias” em que a Equatorial se comprometia, entre outras coisas, a construir 208 quilômetros de linhas de distribuição e implantação de duas novas subestações, as quais custariam R$ 27 milhões. O plano todo previa 2.400 ações.
O promotor Rossano Biazus, que investiga o caso, disse que o número de reclamações por parte de clientes cresceu entre 30% e 40% no início de março, logo após o temporal que atingiu a Região Metropolitana. Segundo ele, as reclamações se referiam ao tempo excessivo sem fornecimento e, principalmente, à falta de informações sobre a recuperação do sistema. “Oficiamos a empresa para que tome medidas urgentes”, informou Biazus.
Além do inquérito, o MPE, conforme o promotor, irá propor um acordo de conciliação com a empresa no sentido de evitar uma ação judicial, que poderia levar vários anos para ser resolvida. O plano envolve medidas urgentes de melhoria na prestação dos serviços. Porém, o promotor não descartou a possibilidade de uma Ação Civil Pública Coletiva contra a CEEE Equatorial se as deficiências continuarem sendo registradas.
A Agência Estadual de Regulação dos Serviços Públicos Delegados do Estado (Agergs) também cobrou explicações, embora nunca tenha se oposto formalmente à privatização da CEEE-D. O presidente da Agência, Luiz Afonso Senna, abriu uma fiscalização nos procedimentos da Equatorial e deu prazo de 15 dias para que a empresa explique as falhas no fornecimento de energia, que vence no início de abril. E não descartou, também, a possibilidade de multar a companhia.
“Do ponto de vista técnico, é inadmissível que a cada temporal o fornecimento de energia seja interrompido e demore tanto assim para voltar. Por mais que seja uma empresa privada, ela oferece um serviço público que deve satisfazer as necessidades da população”, alertou.
Na Assembleia Legislativa, deputados de oposição já se mobilizam para obter as assinaturas necessárias à instalação de uma CPI para investigar a privatização da CEEE. O deputado Jéferson Fernandes (PT) disse que o corte no fornecimento de energia para consumidores urbanos por mais de dez dias seguidos nunca havia sido registrado no Rio Grande do Sul. “O fornecimento nas áreas atendidas pela CEEE Equatorial está em colapso, não há outra expressão para definir a situação”, afirmou.
Entre outras questões, a CPI teria por objetivo obter documentos sobre a privatização – segundo Fernandes, o negócio está cercado de sigilo absoluto. O pedido de CPI enumera seis fatos que embasam a necessidade de investigações, entre eles o aumento no número de reclamações dos consumidores e a falta de respostas da Equatorial, cujo callcenter “colapsou”, de acordo com o deputado.
Outro motivo, apontado pela deputada Luciana Genro (PSOL), é a demissão de funcionários especializados e a substituição por terceirizados sem formação adequada. “Técnicos experientes foram substituídos por trabalhadores terceirizados, com salários mais baixos e que recebem um treinamento de dez dias”, informou. Conforme ela, as normas técnicas do setor estabelecem uma formação de pelo menos seis meses para os profissionais da área.