Sinpro/RS: “Temos um grileiro de terras na presidência da República”
O ambientalista Márcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima, traz novos e alarmantes dados sobre a destruição da Amazônia e critica as políticas “antiambientais” de Bolsonaro
Por Flávio Ilha
Desde março de 2020 ocupando o posto de secretário-executivo do Observatório do Clima, rede de entidades ambientais empenhada em formular diretrizes para as políticas ambientais no país, o ambientalista Márcio Astrini aprendeu a importância de radicalizar o discurso quando coordenou, por 13 anos, as campanhas de clima e de Amazônia no Greenpeace. Formado em Gestão Pública, o capixaba Astrini é um crítico contumaz do que chama de “agenda antiambiental” do governo e um desafeto do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, de quem costuma pedir a prisão. Um dos líderes do movimento dos caras-pintadas, que em 1992 fez campanha pelo impeachment de Fernando Collor, nesta entrevista Astrini comenta os índices alarmantes de desmatamento da Amazônia detectados em abril, compara grileiros a milicianos e denuncia que o crime está sendo oficializado na região. “Não resta dúvida que há uma clara simpatia do presidente por esse tipo de comportamento. Eles (os criminosos) estão extremamente confiantes. Estão mostrando quem é que manda agora na Amazônia”.
Extra Classe – Os dados de abril do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) acenderam um alerta para o aumento assombroso do desmatamento da região nos últimos meses. Qual é a perspectiva até o fechamento dos dados anualizados?
Márcio Astrini – O que podemos dizer desses dados do Imazon, que são muito confiáveis, embora não sejam oficiais, é que existe uma forte tendência de alta no desmatamento. Desde agosto de 2019 até agora (maio), o acumulado mostra um aumento de 90% na área devastada. No fechamento dos dados oficiais pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), em julho, teremos um índice muito superior em relação ao ano passado. Ainda não sabemos quanto. Agora, mais importante que saber quanto é esse muito, é saber que existe, de fato, uma tendência de alta fortíssima.
EC – Estamos falando de que área, exatamente?
Astrini – Neste momento estimamos uma alta no desmatamento da Amazônia, em relação a 2019, superior a 50%. A gente trabalha com a possibilidade de uma área destruída de aproximadamente 15 mil quilômetros quadrados contra os 10 mil quilômetros quadrados do ano passado. É uma área equivalente a dez cidades do tamanho de São Paulo. E os próximos meses são decisivos, pois o período de seca eleva ainda mais os índices de destruição. É possível que fique acima da nossa avaliação preliminar, infelizmente.
EC – Esses dados estão sendo confirmados nas operações em solo?
Astrini – Com certeza. O que se enxerga no campo é até pior do que mostram os satélites. No campo há uma situação inédita: o crime ambiental está tomando conta da região amazônica, está sendo oficializado como prática de exploração. O criminoso ambiental sempre existiu, mas agia à margem da lei, se escondendo das agências de fiscalização, da polícia. Neste momento, porém, existe um empoderamento do crime em que o criminoso passou a ter um comportamento de que ele está certo e que quem defende a lei, os agentes do Estado, estão errados. E não há outra explicação para isso a não ser o discurso sistemático do presidente da República contra a preservação ambiental.
EC – O presidente Bolsonaro, na sua opinião, é avalista desses crimes ambientais?
Astrini – Sim, é isso que estou afirmando. Costumo fazer o seguinte paralelo: o grileiro de terras, na Amazônia, é equivalente ao miliciano dos centros urbanos. E há, não resta dúvida, uma clara simpatia do presidente por esse tipo de comportamento criminoso, seja das milícias, seja dos grileiros. Eles (os criminosos) estão extremamente confiantes, a ponto de fazerem emboscadas para agentes do Ibama. Emboscadas. Eles estão mostrando quem é que manda agora na Amazônia. Se fizermos uma retrospectiva, tanto do presidente Bolsonaro quanto do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, veremos que os dois já criticaram as ONGs, criticaram os índios, os fundos internacionais, o presidente do Inpe, os agentes do Ibama, os agentes do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), a legislação ambiental e florestal, até os satélites.
EC – As críticas são sistemáticas.
Astrini – Mas nunca, veja bem, nunca fizeram críticas a um madeireiro ilegal. Muito pelo contrário. Na ação mais recente do Ibama, para desmantelar garimpo ilegal e um esquema de grilagem de terra indígena, os coordenadores da operação foram demitidos no dia seguinte. Outro dado: em abril de 2019, o presidente desautorizou uma ação do Ibama dentro da flona (floresta nacional) do Jamari(Rondônia), onde há uma concessão estatal para extração de madeira, que pretendia justamente proteger a empresa concessionária da ação de madeireiros ilegais. Para Bolsonaro, o madeireiro ilegal tem tanto direito de trabalhar quanto um sujeito que ganhou uma licitação. É uma visão de mundo de miliciano.
Não são pequenos agricultores, não são exploradores comunitários que devastam a Amazônia. São grandes empresários. O sujeito podia estar abrindo uma franquia da Copenhagen em um shopping, mas prefere gastar essas dezenas de milhões de reais para fazer garimpo na Amazônia porque confia no retorno. É um capital que tem uma ligação muito estreita com projetos que tramitam no Congresso
EC – Quem financia essas ações criminosas?
Astrini – Sabemos alguns nomes, pessoas que moram em bairros nobres de São Paulo, Brasília Rio. São verdadeiras máfias de grilagem de terras e de operações garimpeiras dentro de áreas protegidas. Máfias porque os investimentos são vultosos.
EC – É possível quantificar esses valores?
Astrini – Uma operação dessas pode custar de R$ 20 milhões a R$ 30 milhões só de maquinário. Fora toda a logística. Não são pequenos agricultores, não são exploradores comunitários que devastam a Amazônia. São grandes empresários. O sujeito podia estar abrindo uma franquia da Copenhagen em um shopping (alusão às denúncias de lavagem de dinheiro contra um dos filhos de Bolsonaro), mas prefere gastar essas dezenas de milhões de reais para fazer garimpo na Amazônia porque confia no retorno. É um capital que tem uma ligação muito estreita com projetos que tramitam no Congresso, como o PL da Grilagem. Tudo está interligado.
EC – De que forma?
Astrini – O grileiro de terras incorre em dois passivos quando age: primeiro o passivo jurídico, porque está cometendo um crime; segundo, o passivo financeiro, de ordem econômica, porque ele não sabe se vai ter retorno. Então, quando uma medida de abrandamento da legislação, como o projeto de lei que regulamenta a compra de terras públicas em tramitação no Congresso (o PL da Grilagem), é aprovado, você transforma esses dois passivos em ativos. Termina com a insegurança jurídica e, consequentemente, garante o retorno financeiro. É um prêmio ao crime.
EC – Além do PL da Grilagem, em fevereiro o presidente também encaminhou ao Congresso projeto que regulamenta o garimpo em terras indígenas. A situação tende a se agravar nesses locais?
Astrini – Já se agravou. O garimpo em terra indígena está crescendo porque os operadores receberam a mensagem explícita de que não terão mais a destruição de suas máquinas pelos agentes da lei. O garimpo é ainda mais grave que a grilagem porque não precisa de atos de legalização, do título da terra, para realizar lucro. Só precisa que o governo, que os órgãos ambientais, não destruam o maquinário. E é isso que está acontecendo: pode ter batida do Ibama, da PF, do Exército, o que quiser. Se tiver a garantia de que não vão destruir o maquinário, tudo bem. A operação, em algum momento, terá um custo-benefício positivo. A política do governo é muito clara: transformar o risco do crime em realização monetária e jurídica.
EC – É uma espécie de lavagem de dinheiro?
Astrini – Exatamente. Essas dinâmicas criminosas existem na Amazônia há muito tempo, já falamos disso. Mas você sempre tinha o crime atuando e a floresta sendo defendida. Agora o crime continua atuando, a floresta não está sendo defendida e o Estado brasileiro, ainda por cima, impulsiona os criminosos. É uma situação inédita, nunca vimos isso.
EC – O ministro Ricardo Salles, na reunião ministerial de 22 de abril, foi flagrado defendendo a pandemia de coronavírus como oportunidade para aprovar medidas contra a legislação ambiental. Qual a posição do Observatório do Clima?
Astrini – O que vimos na reunião foi um ministro de Estado conclamando o presidente e seus colegas a se aproveitar de um momento de pandemia, no qual milhares de pessoas estão morrendo, para destruir a legislação ambiental brasileira. É uma frase que precisa ser analisada pelo Congresso, pelo Supremo Tribunal Federal. O que a gente espera é que um sujeito desses tenha pelo menos seu afastamento do cargo pedido pelas autoridades que mencionei. Ou até preso.
EC – Qual a perspectiva diante desses dados preliminares do Imazon?
Astrini – É de uma explosão do desmatamento no curto prazo. De se perder o controle, exatamente como acontece nos territórios urbanos conquistados pelos milicianos: o Estado perde a capacidade de ação nessas regiões. Um desastre.
“Se continuarmos com essas políticas de incentivo a desmatamento, a garimpo, à grilagem, o que podemos ter no fim desse ciclo de governo Bolsonaro é o início do fim da Amazônia. A política do governo é claramente de desconstrução do que deu certo contra o desmatamento.”
EC – Há risco de dano econômico devido à piora nos índices de desmatamento?
Astrini – Já estamos vendo um movimento de boicote de alguns países da União Europeia, também ligado à tramitação do PL da Grilagem no Congresso. Quando há desmatamento, mas há também esforço do governo para controlar esse processo, resta algum nível de governança. Mas quando o desmatamento sobe e esse sistema de controle é colocado sob estresse, os agentes econômicos ficam mais atentos para evitar a contaminação de suas marcas. O que está acontecendo é que o Estado brasileiro saiu da equação do controle. Em alguns casos, está até atuando na promoção do desmatamento. Então, essas cadeias internacionais estão ficando sem nenhuma garantia em relação a produtos ambientalmente limpos. Essa relação entre desmatamento e atividade econômica, que era um pouco distante, foi ficando estreita ao longo dos anos e hoje é quase uma simbiose. Se o desmatamento bater em 15 mil quilômetros quadrados mesmo e continuar subindo, esse boicote vai se intensificar.
EC – Estamos caminhando para a irreversibilidade da floresta?
Astrini – Existem vários estudos sobre o que chamamos de keeping-point, ou ponto de não retorno, onde independentemente da ação humana a floresta vai perdendo suas características, até acabar. O estudo mais recente menciona uma taxa entre 20% e 25% de devastação como esse keeping-point, outros elevam para um intervalo entre 27% e 38%, então não há um consenso entre os cientistas. Se o estudo de 20% estiver correto, isso significa que estamos muito próximos de atingir esse ponto, pois cerca de 19% do território da Amazônia já foram destruídos. Estudos localizados, inclusive, apontam que em algumas regiões extremamente castigadas pelo desmatamento, e nas suas bordas, a floresta perdeu a capacidade de retenção de umidade e de temperatura.
EC – Onde isso ocorre?
Astrini – O Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) fez alguns estudos na bacia do rio Xingu, no Mato Grosso e no Pará. Nessas áreas de fronteira entre floresta e áreas agrícolas, que deveria ser uma espécie de amortecimento climático, a variação de temperatura já chega a ser de 8 graus. É um absurdo. Dá um panorama muito preciso de como será esse efeito quando houver o empobrecimento da floresta em larga escala.
EC – Quando houver ou se houver?
Astrini – Se continuarmos com essas políticas de incentivo a desmatamento, a garimpo, à grilagem, o que podemos ter no fim desse ciclo de governo Bolsonaro é o início do fim da Amazônia. Não tenho dúvida. Com essa política, caminhamos para isso: o início do fim de 30 anos de construção de política ambiental, não só em termos legislativos, mas também em termos de capacidade de operação do Ibama, do ICMBio, de gerar economia com a floresta em pé, que é o caso das concessões florestais e dos sistemas extrativistas e cooperativistas que existem. O fim dos órgãos de fiscalização e de controle, a ponto de não se conseguir mais reverter isso. A política do governo é claramente de desconstrução do que deu certo contra o desmatamento.
EC – Como foi possível reduzir tanto os índices nos últimos anos?
Astrini – Há três situações especiais que levaram à diminuição do desmatamento na Amazônia entre 2004 a 2014, uma redução que chegou a 78% mesmo com aumento da atividade agrícola no país e, inclusive, de pastagens na região: mais capacidade de punição legislativa, com a melhoria do nosso aparato legal; mais capacidade de intervenção do Estado e de aplicação dessas políticas, com a capacitação do Ibama, com a criação do ICMBio, com a inclusão do Incra; e a mensagem oficial, quando o Estado passa à sociedade, aos mercados, o recado de que o desmatamento não será tolerado. Do ponto de vista moral, legal, econômico. O governo está desfazendo todos esses três pilares de forma sistemática, principalmente o último. A mensagem que passa é de que há um grileiro na presidência da República.
EC – Além dos PLs da Grilagem e do Garimpo, que outros projetos ameaçam o aparato legal de preservação?
Astrini – Outras medidas que nos preocupam são a abertura da venda de terras para estrangeiros, a possibilidade do cultivo da cana na Amazônia, porque é uma devoradora de terras, embora o setor ainda não tenha se mostrado muito disposto a investir lá, e as alterações no Código Florestal. Tem ainda uma tentativa do governo de desfazer, ou pelo menos diminuir, as unidades de conservação federais, o ministro Ricardo Salles já fez esse anúncio, e uma guerra muito intensa contra direitos e territórios indígenas. Isso é declarado. O presidente tem os indígenas como alvo prioritário. A Instrução Normativa número 9, da Funai, permite que se tenha regularização fundiária em áreas indígenas que ainda não foram homologadas, mas que são reconhecidas como tal. E o avanço da mineração industrial: no começo de março, logo depois de Bolsonaro protocolar o projeto de abertura de terras indígenas ao garimpo, o Brasil participou de um congresso de empresas mineradoras no Canadá onde tinha um evento chamado Brazilian Day. A mensagem foi para que as empresas acreditassem no governo porque a mineração seria liberada em terras indígenas, ou seja, para já considerarem nos seus investimentos futuros. Esse setor é, provavelmente, o que mais faz pressão para a abertura.
EC – O Congresso tem como barrar esses projetos destrutivos?
Astrini – Só existe um caminho: não votar. A partir do momento que colocar em votação, dentro do plenário os interesses políticos e econômicos se aglutinam e dificilmente conseguiremos derrotá-los. Então, colocá-los em votação é um risco extremo. A melhor chance é mostrar os prejuízos para a economia brasileira, como está ocorrendo com a questão da regularização fundiária de terras públicas. O mercado europeu anunciou boicotes em caso de aprovação. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM/RJ), já disse que não vota na sua gestão, pelo menos no tocante ao garimpo em terras indígenas. Na questão da grilagem, estamos tentando convencê-lo de que é um risco para o país. Mas o mandato do Maia termina no início do ano que vem. Qual será a postura do novo presidente? Se perdermos o Congresso, perdemos qualquer possibilidade de frear a destruição.
EC – Em uma palavra, como o senhor se define neste momento em relação à Amazônia?
Astrini – Em pânico.