Sob ameaça de cortes no governo Bolsonaro, cursos de ciências sociais e humanas concentram diversidade racial

Alvo de ameaças de cortes orçamentários, cursos de ciências sociais e humanas são os que mais concentram diversidade racial tanto em universidades públicas quanto privadas, segundo dados do Censo Nacional do Ensino Superior de 2017, obtidos pela BBC News Brasil junto ao Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais (Inep).

Citados especificamente pelo presidente Jair Bolsonaro como áreas que devem perder investimentos, os cursos de sociologia e filosofia têm 1 negro para cada 3 e 4 brancos respectivamente.

Já cursos de medicina e veterinária, mencionados pelo presidente como áreas que devem receber recursos por trazerem “retornos imediatos à sociedade”, têm uma proporção de um negro para cada 16 brancos.

Essa diferença é quatro vezes maior do que nos cursos de história e de letras, que têm um aluno negro para cada quatro brancos.

Cursos de engenharia – consideradas todas as modalidades- possuem, em média, um aluno negro para cada nove brancos. Em arquitetura e urbanismo e em odontologia, a proporção é de 1 para 12.

Os dados pintam uma diferença gritante entre os quadros de diversidade racial de cursos de humanas e de cursos de ciências biológicas e exatas.

Para a diretora do Programa de Estudos Brasileiros da Universidade de Oxford, Andreza de Souza Santos, o eventual corte de investimentos em cursos de ciências sociais e humanas traria como efeito de curto prazo um “embranquecimento” das universidades federais.

“O acesso que as pessoas têm hoje a cursos como física, engenharia e medicina não é democrático e universal, porque são cursos com nota de corte alta e alto custo de manutenção durante o processo de formação. Muitos negros estudaram em escolas públicas de baixa qualidade e sem professores especializados em áreas de exatas e biológicas”, disse à BBC News Brasil.

“Uma redução de recursos na área de humanas, sem levar em conta o processo educativo desde a base, nas escolas públicas, terá como efeito elitizar o conhecimento a curto prazo, reduzindo negros e pobres nas universidades”, avalia a professora, que dá aulas de política na Universidade de Oxford e tem doutorado em antropologia social.

No dia 26 de abril, Jair Bolsonaro anunciou, pelo Twitter, que o novo ministro da Educação, Abraham Weintraub, “estuda descentralizar investimentos em faculdades de filosofia e sociologia (humanas)”, com o objetivo de “focar em áreas que gerem retorno imediato ao contribuinte, como veterinária, engenharia e medicina”.

Pouco depois, o Ministério da Educação (MEC) anunciou um contingenciamento geral de 30% nos orçamentos de todas as universidades federais. Não está claro, porém, como seria feito o corte específico nas áreas de humanidades e ciências sociais, já que a Constituição Federal garante autonomia às universidades para gerenciar os recursos repassados pelo governo federal e distribuí-los aos respectivos departamentos.

Segundo o professor Paulo Calmon, diretor do Departamento de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB), os repasses do governo federal para cada universidade, atualmente, seguem critérios objetivos que levam em conta, por exemplo, a relação professor/aluno, o tamanho do campus, número de cursos oferecidos, custo de vida do local e o oferecimento ou não de mestrados e doutorados.

Há ainda recursos orçamentários extras para projetos específicos das universidades que possam ser vinculados a determinadas políticas públicas.

“Por exemplo, uma universidade pode estar desenvolvendo um programa de pesquisa relacionada a dengue e Zika, que leve à construção de um novo laboratório e que receba recursos extras por complementar uma política pública do governo de combate a epidemias. Ou um programa do governo na área de agricultura pode justificar repasses em pesquisas nessa área”, exemplifica.

É possível, diz o professor, que esses recursos extras acabem sendo direcionados, no governo Bolsonaro, para projetos de departamentos de medicina e exatas.

Outra possibilidade seria reduzir bolsas de institutos ligados ao governo federal (CAPES e CNPQ) para pesquisas de ciências sociais e humanas, direcionando esses recursos para áreas biológicas e de exatas.

Há ainda o temor de que as negociações entre reitores e o Ministério da Educação por liberação de verbas contingenciadas acabem envolvendo compromissos informais quanto a repasses maiores para um setor ou outro.

“Ainda não tivemos informação sobre como serão os cortes. Não sei se haverá influência nos editais de pesquisa ou programas de expansão, para priorizar áreas de ciências duras ou se, na gestão dos próximos concursos para professor, os indicadores para a contratação pendam para uma área do conhecimento em detrimento de outra”, especula Calmon.

Procurado pela BBC News Brasil, o MEC se limitou a dizer que “os recursos destinados a quaisquer áreas do conhecimento serão estudados de forma a priorizar aquelas que, no momento, melhor atendem às demandas da população”.

“Nesse sentido, não há que se falar em perdas ou ganhos, trata-se, apenas, de readequação à realidade do país”, afirmou o ministério.

Por que há mais negros nas ciências sociais e humanas?

Mas, para a diretora do Programa de Estudos Brasileiros da Universidade de Oxford, se essa “priorização” envolver cortes de recursos nas áreas de ciências sociais e humanas e redução no número de vagas ofertadas, haverá perdas, sim – e para os negros.

A explicação para a concentração de diversidade racial na área de humanas passa por diferentes fatores, diz Andreza Santos. Ela destaca que grande parte dos estudantes de baixa renda é negra, e estuda em escolas públicas – algumas de baixa qualidade e com carência de professores especializados nas áreas de ciências biológicas e da natureza, como física, química e biologia.

“Os cursos menos concorridos, com nota de corte mais baixa no Sisu, acabam sendo a porta de entrada para estudantes mais pobres e – como a pobreza tem um aspecto racial – negros”, afirma a professora.

Ela explica que, quando são analisados os números de matrículas por raça, há uma correlação entre o percentual de negros e a nota de corte média dos cursos no Sistema de Seleção Unificada (SISU) do Ministério da Educação. Quanto maior a nota de corte, menor a proporção de negros.

“Há alguns cursos que não estão na área de exatas, mas que também possuem nota de corte alta por serem tradicionais e elitizados, como Relações Internacionais e Direito. Nesses cursos, também há proporção menor de negros”, afirma.

Segundo os dados do Censo Nacional de Ensino Superior 2017, para cada negro no curso de Direito há sete brancos. No de Relações Internacionais, a proporção é de 1 para 9, equivalente ao de engenharia.

Mas alguns cursos de exatas e ciências da saúde trazem uma dificuldade adicional para alunos de baixa renda. Segundo a professora da Universidade de Oxford, são faculdades que exigem custos mais altos para que o aluno se mantenha ou que demandam muitos anos de estudo antes do exercício da profissão, como medicina.

“Um aluno que faz arquitetura e urbanismo ou engenharia precisa comprar materiais que, às vezes, são caros. Professores emprestam, mas, para muitas disciplinas, é preciso criar um portfolio e a qualidade do material tem influência”, explica.

“O mesmo ocorre com cursos como medicina, que demandam livros caríssimos e anos de especialização. Portanto, não é só a questão de acesso. Tem também a discussão de como vai ser manutenção da pessoa naquele curso.”

Por fim, Andreza Santos diz que é possível que alunos de baixa renda também não optem por cursos de exatas e biológicas por falta de exposição a essas áreas do conhecimento nas escolas públicas.

“Há um deficit de professores especializados de matemática, química, física e biologia nas escolas públicas. Então, o aluno acaba ficando menos exposto a conhecer essas áreas e a selecioná-las no vestibular”, diz.

Para a professora, se o governo quer ter mais formandos em exatas e medicina sem excluir a população negra e pobre das universidades, é preciso que a mudança comece no ensino médio, para despertar o interesse dos alunos e prepará-los para que consigam acompanhar o ritmo do aprendizado nessas áreas, nas universidades.

“Não dá para fazer essa mudança só direcionando recursos nas universidades. Se é para estimular essas áreas sem excluir negros e pobres, a mudança precisa ocorrer lá atrás, com mais investimento em matemática e em ciências da natureza nas escolas públicas, para que as pessoas consigam acompanhar esses cursos e ter esses cursos no radar delas.”

A professa ressalta que, no governo Dilma Rousseff, a política de direcionar bolsas do Ciência sem Fronteiras para pesquisas nas áreas de ciências da natureza e biológicas também resultou na exclusão de negros e estudantes de baixa renda em geral, que se concentram, predominantemente, em áreas de humanas e ciências sociais.

O Censo da Educação Superior de 2014, feito quando o programa estava no auge, mostra que 70% dos beneficiados com bolsas para estudar fora do país eram brancos.

“Essa ideia de focar a política em disciplinas específicas já começou na gestão passada com o Ciência sem Fronteiras. Os negros também foram menos favorecidos”, diz Andreza Santos.

Mas… mais recursos para exatas e medicina não significaria mais vagas?

À primeira vista é possível pensar que a realocação de recursos de humanidades para áreas como medicina, matemática, física e engenharia poderia resultar num aumento de vagas nesses cursos, equivalente aos possíveis cortes de vagas nas faculdades de humanas.

E, com mais vagas, a concorrência para cursos de ciências biológicas e da natureza seria menor, o que poderia ensejar um acesso maior de estudantes de baixa renda e negros a esses cursos.

Mas a diretora do Programa de Estudos Brasileiros de Oxford explica que essas áreas do conhecimento exigem custo elevado por vaga, já que são necessários equipamentos, infraestrutura de pesquisa, material e tecnologia.

Um exemplo: só o laboratório de Física Experimental inaugurado neste ano na Universidade Federal da Amazônia custou R$ 2 milhões. Por isso, dificilmente a realocação de recursos significaria equivalência no número de vagas e redução das notas de corte.

“O gasto nas áreas de humanas já é muito mais baixo que os gastos nas ciências puras, que são áreas mais caras. Cortar dessas faculdades e realocar não teria impacto algum em desenvolver as áreas de ciências duras, só significaria um desmonte das ciências sociais e humanas”, acrescenta o professor Francisco Ortega, do departamento de Saúde Social, da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Retorno dos cursos à sociedade

Ortega, que tem pesquisas voltadas a políticas públicas na área da saúde, também argumenta que a tendência mundial hoje é o estímulo à interdisciplinaridade, ou seja, investir em estudos que combinem tanto conhecimentos de humanidades quanto de ciências exatas e biológicas.

“É jogar dinheiro fora ter políticas de saúde, de nutrição, de combate a epidemias que tratem todas as populações como idênticas. Diferenças culturais e de hábito das classes alta, baixa, média, muçulmana, católica, evangélica têm impacto e, para encontrar soluções, é fundamental a parceria com profissionais da filosofia, sociologia e antropologia.”

Andreza Santos também questiona o critério adotado pelo governo para classificar cursos que “trazem retorno imediato à sociedade”. Segundo ela, alunos de periferia que cursam humanas e ciências sociais muitas vezes aplicam, depois, o conhecimento que adquiriram para desenvolver as próprias comunidades, produzindo retornos econômicos.

“É comum estudantes de serviço social e antropologia fazerem pesquisa sobre a própria favela, bairro ou cidade. Fazem censos da quantidade de moradores, do perfil deles, analisam os benefícios e problemas de morar ali”, diz.

“Com esses dados, organizam prioridades para acesso a serviços públicos. Por exemplo, nem toda área pobre tem muito crime. Portanto, às vezes não é policiamento que se precisa, a prioridade pode ser asfalto ou saneamento. Esses cursos de ciências sociais e humanas têm um impacto positivo na sociedade que muitas vezes não é quantificado em salários”, conclui.

BBC

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