Soberania digital é soberania nacional

O Brasil vive um paradoxo que sintetiza o dilema global. É um dos maiores produtores de dados do planeta, mas não é soberano sobre eles. É uma das sociedades mais conectadas do mundo, mas depende de infraestrutura estrangeira

Orlando Silva*

Vivemos a mais radical redistribuição de poder desde a Revolução Industrial. Mas, diferentemente do século XIX, não são os Estados nacionais que concentram forças. Hoje, conglomerados privados, as chamadas Big Techs, controlam infraestrutura, dados e até os mecanismos que moldam a consciência coletiva. Esse deslocamento de poder não é detalhe técnico: é questão de soberania e de sobrevivência democrática.

A soberania digital não se limita a regular plataformas ou punir excessos online. Trata-se da capacidade de um país exercer jurisdição, garantir direitos fundamentais e assegurar o interesse público diante de arquiteturas tecnológicas que não reconhecem fronteiras. Se um Estado não dispõe de suas próprias infraestruturas digitais, se não consegue garantir acesso soberano aos dados de sua população e se não regula os filtros informacionais que estruturam o debate público, esse Estado é apenas formalmente soberano. Na prática, está subordinado a interesses alheios.

A vulnerabilidade da infraestrutura

A dependência estrutural é o primeiro nó a ser desatado. Nas economias centrais da OCDE, duas empresas (Amazon e Microsoft) concentram 80% da infraestrutura global de nuvem. Países como o Brasil, sem data centersnacionais ou chips de última geração, recorrem a essas corporações para quase tudo: de pesquisa científica a armazenamento de informações estratégicas de governo. Isso significa que até mesmo dados sensíveis do Estado brasileiro podem estar sob jurisdição norte-americana.

O risco é concreto. Basta lembrar que o governo Donald Trump utilizou a Microsoft para bloquear a conta de e-mail do procurador do Tribunal Penal Internacional. Ou que a plataforma X (antigo Twitter) desafiou abertamente decisões do Supremo Tribunal Federal brasileiro, recusando-se a cumprir determinações judiciais. Em ambos os casos, vimos como empresas privadas operam como instrumentos de pressão política e extensão de poder estatal estrangeiro.

Se os fluxos de dados e a infraestrutura crítica de um país podem ser controlados a partir de fora, não há como falar em soberania real. O Brasil ensaia uma resposta com o Plano Brasileiro de Inteligência Artificial, que prevê a criação de supercomputadores nacionais e de centros de processamento próprios. Mas não basta um esforço isolado. É preciso pensar em termos de integração regional, formando consórcios latino-americanos para dividir custos, compartilhar infraestrutura e criar uma arquitetura tecnológica soberana. A União Europeia mostra que blocos podem impor normas e resistir a oligopólios digitais. A América Latina precisa aprender essa lição.

A assimetria dos dados

Se infraestrutura é poder material, dados são poder simbólico. São o novo petróleo, mas, como tantas vezes na história latino-americana, estamos reduzidos à condição de fornecedores brutos. A economia mundial movimenta trilhões de dólares por ano a partir da coleta e do processamento de dados. No entanto, seguimos exportando nossas informações e importando sistemas opacos, sem transparência ou instrumentos de auditoria pública.

O Data Gravity Index estima que, nos próximos anos, 93% dos dados corporativos serão criados fora de nuvens públicas, em ambientes proprietários controlados por poucas empresas privadas. Isso significa que um punhado de corporações passará a operar como paraestados digitais, com regulação própria, jurisdição de conveniência e capacidade de ditar normas acima das legislações nacionais.

Para países como o Brasil, a assimetria é evidente. Produzimos dados em escala massiva, que alimentam modelos de inteligência artificial no Norte Global. Mas não temos acesso aos algoritmos, não sabemos os critérios que regem decisões automatizadas e não possuímos mecanismos de fiscalização efetiva. Em outras palavras, somos produtores de insumo bruto, enquanto o valor agregado, econômico, político e tecnológico, é capturado fora.

Romper essa lógica exige afirmar que dados coletados em território nacional devem permanecer sob jurisdição local, ainda que processados no exterior. Europa e China já caminham nessa direção. O Brasil, se quiser ter voz autônoma no século XXI, precisa adotar posição firme. Não se trata de isolacionismo, mas de uma defesa elementar de autonomia frente a um sistema global profundamente desigual.

O dilema global

O Brasil não está sozinho nesse impasse. Da Índia à África do Sul, da França à Argentina, a questão da soberania digital se tornou tema central da política contemporânea. A União Europeia impôs regras duras com o GDPR e o Digital Services Act, mostrando que é possível enfrentar gigantes corporativos quando se atua coletivamente. A América Latina, por sua vez, ainda patina entre dependência tecnológica e esforços gradativos de regulação.

O que está em jogo não é apenas eficiência econômica, mas a própria capacidade de sociedades definirem seus rumos sem serem reféns de plataformas globais. Em última instância, trata-se de escolher se aceitaremos viver em democracias frágeis, tuteladas por interesses privados estrangeiros, ou se construiremos mecanismos que devolvam às populações e aos Estados nacionais o controle sobre seu destino digital.

O Brasil vive um paradoxo que sintetiza o dilema global. É um dos maiores produtores de dados do planeta, mas não é soberano sobre eles. É uma das sociedades mais conectadas do mundo, mas depende de infraestrutura estrangeira. É uma democracia vibrante, mas cuja esfera pública se desenrola em plataformas privadas regidas por lógicas comerciais externas.

Soberania digital significa romper esse ciclo. Significa estruturar data centers regionais, impor jurisdição nacional sobre dados, exigir transparência algorítmica e, acima de tudo, entender que a disputa tecnológica é disputa de poder político. Significa promover bens públicos e valorizar softwares não apenas livres, mas de interesse público. Pois não há democracia que resista quando infraestrutura, dados e mentes estão sob domínio externo.

Ou o Brasil e a América Latina avançam para construir autonomia coletiva nesse campo, ou permanecerão como colônias digitais de novos impérios privados. E essa é uma escolha que não pode mais ser adiada.

Orlando Silva é Deputado Federal por São Paulo pelo terceiro mandato. Foi Ministro de Estado nos governos Lula e Dilma. Na Câmara dos Deputados, já presidiu a Comissão de Direitos Humanos e foi relator da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e da Lei de enfrentamento às Fake News.

Fonte
Diplomatique

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