Taxar fortunas e tributação justa são caminhos para resolver crise e desigualdade
Debate promovido pela CUT trouxe especialistas para falar sobre taxação de grandes fortunas e reforma tributária. Propostas devem partir da conscientização da sociedade sobre o papel do Estado para irem adiante
Se é fato que a pandemia do novo coronavírus trouxe a consciência de que o Estado é fundamental para manter o bem-estar social, fato também é a urgência de uma reformulação no sistema tributário brasileiro para que a carga de impostos deixe de ser um peso maior sobre os mais pobres, como é hoje no país.
Isso acontece porque no Brasil os tributos são concentrados nos impostos indiretos. São taxas sobre o consumo inseridas nos preços das mercadorias. Segundo dados levantados pela Associação Nacional de Auditores Fiscais da Receita Federal (Anfip) e pela Federação Nacional do Fisco Estadual e Distrital (Fenafisco), 49,7% dos impostos do país são recolhidos desta forma.
O tema dos impostos sobre grandes fortunas, que está na Constituição de 1988, nunca foi levado adiante e buscar os recursos necessários para manter a sobrevivência de milhões de brasileiros e brasileiras, fazendo milionários contribuírem nessa fatia é um caminho justo, segundo especialistas.
O assunto foi tema do debate “A Taxação de Grandes Fortunas e a Reforma Tributária”, promovido pela CUT na manhã desta terça-feira (9), durante a reunião virtual da Direção Executiva da Central.
“Esse tema nunca foi levado adiante, desde 1988, por causa da pressão de empresários e banqueiros sobre o Congresso. Eles são os detentores de grandes fortunas e não querem pagar impostos”, afirmou o presidente da CUT, Sérgio Nobre.
O dirigente reforçou a importância da discussão do tema neste momento em que o Estado é fundamental para garantir a vida dos mais pobres. “Fica claro que a renda básica universal deve ser política permanente, assim como o fortalecimento dos serviços públicos”, disse.
Isso significa que uma revisão no modelo de arrecadação é necessária. O resultado ideal, de acordo com os especialistas que participaram do debate é “quem tem mais paga mais, quem tem menos, paga menos”.
O deputado Federal Henrique Fontana (PT-RS), membro da frente dos deputados de oposição pela reforma tributária, elaborou uma proposta de reforma tributária que será consolidada e apresentada no Congresso Nacional, que pretende arrecadar R$ 150 bilhões nos próximos cinco anos, para que os recursos sejam utilizados com foco no enfrentamento à pandemia.
Inserem-se nesse contexto as questões de investimento em saúde e na economia com foco em manter a renda de trabalhadores e auxiliar pequenas e médias empresas.
O deputado listou seis alterações tributárias que constam em sua proposta. A primeira delas é taxar as grandes fortunas, a partir de R$ 15 milhões de reais, com alíquotas progressivas de valores, começando em meio por cento e chegando a 3% para quem tem mais de cem milhões de reais “guardados”.
Henrique Fontana dá o exemplo de Luciano Hang. “O empresário líder do fascismo no Brasil, tem uma fortuna, conforme mostrou a reportagem da Folha de SP, de mais de R$ 8 bilhões de reais. Ele pagaria R$ 544 milhões por ano e isso garantiria a renda mínima para 77 mil famílias brasileiras”.
A proposta também passa por tributar grandes rendas e altos salários, aumento das alíquotas sobre grandes heranças, aumento da tributação sobre bancos e financeiras, IPVA para veículos de luxo como jatinhos, iates e helicópteros e uma alteração, em certo ponto polêmica, mas de acordo com o deputado, necessária, o aumento do Imposto de Renda para pessoas físicas.
Segundo o parlamentar, a proposta, que ainda não está ‘fechada’ pela oposição é de uma alíquota progressiva para todos que tenham salários acima de R$ 15 mil reais. A alíquota começaria em 30% para a faixa salarial até R$ 20 mil e chegaria a 40% para quem tem salários maiores de R$ 50 mil.
Por que as alterações?
Fontana justificou caso a caso.
Taxar lucros e dividendos: para quem tem grandes rendas, como investimentos em bolsa de valores, por exemplo, o ‘ganho é expressivo e o imposto é zero’. Pelas contas levantadas pelo parlamentar, a arrecadação com esse tipo de tributação seria de cerca de R$ 71 bilhões ao ano.
O imposto sobre grandes heranças teria uma alíquota de 20%, “como em países civilizados”, segundo o deputado. A faixa para tributação começaria em “heranças de cinco ou dez milhões de reais”, ele diz.
O aumento de tributação sobre o sistema financeiro, de acordo com a proposta, é elevar de 20% para 30% o valor da contribuição social cobrada sobre o lucro líquido dos bancos e de 15% para 25%, a alíquota para outras empresas financeiras.
Um tributo que geraria arrecadação baixa mas que, segundo Henrique Fontana, tem um peso simbólico forte é o Imposto sobre a propriedade de veículos automotores (IPVA) cobrado de iates, por exemplo.
“O motorista do Uber paga IPVA para ganhar a vida e quem tem iate, não paga. É zero de imposto”, ele critica.
Centro de discussão
A Secretária-Geral da CUT, Carmen Foro, afirmou que o fator mais relevante para que se faça uma reforma tributária no Brasil é a desigualdade social. “É o centro do debate por que a desigualdade é gigante entre quem tem muito e quem não tem nada”.
A dimensão desse abismo social e econômico pode ser exemplificada pela concentração de riquezas. Cerca de 1% da população do planeta detém mais que o dobro da riqueza dos 99% restantes. No Brasil, a concentração não é muito diferente. Aqui, 206 bilionários possuem juntos mais de R$ 1,2 trilhão.
Dão Real, diretor de Relações Institucionais do Instituto Justiça Fiscal e membro do coletivo Auditores Fiscais pela Democracia, defende que haja um resgate do protagonismo da sociedade, em especial a maioria mais pobre, sobre o modelo do Estado.
Ele explica que a Constituição de 1988 trouxe a tentativa de instituir o Estado de bem-estar social, mas ao longo dos anos, o que se viu foi o contrário disso, em particular, na cobrança de impostos.
“Parte da tentativa foi minada ao longo dos anos, em especial, o tema do financiamento de políticas públicas. O Imposto de Renda foi reduzido para 25%, tínhamos sete alíquotas progressivas, ficamos com apenas duas e isso esvaziou o imposto de renda. Por isso os mais pobres pagam mais”, ele diz.
Ele também reforçou que há dificuldade em fazer avançar pautas progressistas no Congresso e isso faz parte de um a ação orquestrada pelos setores que se beneficiam da política tributária como é hoje. “Eles se beneficiam também porque a sociedade não debate o tema”, ele completa.
Direito à vida
Dão Real observa que uma questão ética tomou conta da sociedade brasileira em tempos de pandemia – o confronto entre o direito à vida e o direito à propriedade, além da defesa dos lucros.
O diretor do ITJ afirma que, além de o Estado garantir renda para quem está em casa e ajudar pequenas e médias empresas para que tenham fôlego econômico no pós-pandemia, é preciso desonerar quem tem baixa renda. Uma de suas propostas é tributar com Imposto de Renda apenas quem ganha mais de três salários mínimos. A contrapartida para essa desoneração é a tributação sobre “quem tem muito”.
Por isso, ele diz, a questão da tributação e do papel do Estado, sobre o que ele gasta e o que tem que gastar para enfrentar momentos de crise como atual é político e não técnico.
Nesse sentindo, a mobilização da sociedade, a conscientização da classe trabalhadora sobre seus direitos e sobre justiça social é um debate mais que oportuno nesse momento.
Tributação mais justa: ‘dá pra passar’?
Carmen Foro lembra que o Congresso tem muitos milionários e por isso, nunca votou a favor de taxar as próprias riquezas. Por outro lado, a sociedade sempre teve dificuldade de compreender as tributações.
Dão Real afirma que as propostas não são tão simples e tão diretas de implementar, mas o principal elemento que define o sucesso é o engajamento popular.
Ele diz que, até hoje, várias propostas foram encaminhadas e houve reformas silenciosas, que foram tornando o sistema regressivo, que desonerou o capital, porque o setor interessado estava mobilizado para isso.
“O que falta é o outro lado fazer a pressão para se tributar altas rendas. Sem Estado não há saída e a visão ultraneoliberal não morreu. “O movimento pelo Estado mínimo continua e vai depender do nível de consciência popular de que é preciso garantir Estado, renda, saúde pública, educação e previdência para todos”, conclui Dão Real.
Experiência internacional
O debate promovido pela CUT trouxe, de forma virtual, uma experiência internacional. Os vizinhos argentinos, segundo Hugo Yasky, Secretário-Geral da Central de Trabalhadores Argentinos (CTA), como no Brasil, ‘compram a ideia’ disseminada pelos grandes veículos de comunicação de que os impostos são injustos para todos.
“Os donos de fortunas, que são donos dos meios de comunicação, constroem a ideia de que pagamos muitos impostos. E constroem a ilusão de que eles também pagam muito e assim, não podemos abrir empresas e gerar empregos, que não podemos evoluir”, diz o sindicalista argentino.
Ele conta também que o enfrentamento à pandemia na Argentina tem sido feito com medidas de proteção social, como garantir renda básica às famílias mais pobres e trabalhadores informais que perderam suas rendas.