Tem Poeta na Contee:
conheça a história e os versos de Cláudia Martins

Reprodução

Para coroar o Mês da Consciência Negra, a Contee celebra o pertencimento e a voz que pulsa dentro de sua própria casa: a poesia de Cláudia Martins Vieira, mulher negra, periférica, funcionária da entidade e artista da palavra.

Afinal, nem só de burocracia vive uma mulher que resiste ao apagamento e reivindica direitos historicamente negados. Após o expediente na Contee, Cláudia se expande nas fronteiras da arte. É estudante de Letras, atriz, poeta e contadora de histórias, multiplicando encantamentos pelos quatro cantos de Brasília.

A poesia é seu lugar de fala e de liberdade, onde ternura e crítica social se encontram. Seus versos delicados flutuam até o coração de quem escuta, tocando a alma com beleza, empatia e consciência política.

Cláudia costuma dizer: “A gente não pode falar de arte, falar de poesia, sem falar da realidade. Porque, para além de fruição e criatividade, poesia também é contestação, também é denúncia.”

É assim que ela se coloca no mundo, fazendo do ofício poético uma forma de revolução, escancarando injustiças e lutando por igualdade.

Nascida e criada no Setor Sul do Gama, filha caçula de 12 irmãos e mãe de Lua e Tico, Cláudia desenvolveu desde cedo um olhar sensível tanto para denunciar as mazelas que atravessam as periferias quanto para enaltecer as riquezas culturais que florescem nesses territórios. A paixão pela palavra brotou ainda na infância, nos livros que sua mãe, Dona Izolina, empregada doméstica, trazia das casas onde trabalhava.

Na adolescência, mergulhou no teatro, no desenho e na escrita até encontrar na declamação um território de voz potente que faz germinar sua essência e seu propósito de vida. Hoje, sua poesia exala nas praças, nos teatros, nas esquinas, nas ruas, nos bares, por toda parte.

Chamamento: poesia como alerta, fôlego e bravura

No Sarau do Cebolão de outubro, realizado no Setor Bancário Sul, onde está localizada a sede da Contee, Cláudia recitou seu poema Chamamento, convocando artistas, trabalhadores e sonhadores a resistirem aos tempos de intolerância.

A performance, vibrante e necessária, reafirma que a arte é trincheira, alimento e palco de humanidade.

Veja o vídeo e, a seguir, o poema na íntegra:

 

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Chamamento

Cláudia Martins

Atenção poetas, há tensão!
O tempo da intolerância chegou
A ignorância doutrinou milhões,

e o discurso de ódio e violência tomou pra si muitos.

Atenção poetas, palhaços, artistas: há tensão!
Tempos difíceis hão de nos perseguir.
A arte será dizimada, e não mais nos quererão entre eles (Aliás, nunca quiseram)

Atenção poetas: há tensão!
Ditadores, torturadores e inquisidores nunca tiveram tão próximo a nós.
Talvez até aqui eles possam nos ouvir.

Atenção, há tensão!
Cada uma luta com as armas que tem!
Mas eis que vós, herois marginais,
Com o gosto barato do vinho ainda na boca,
Deem de comer aos que têm fome, fome grande de poesia!

Peguem os poemas, os teus poemas,
E jogue-os fora, na rua:

estampem as praças, as pistas, os postes
Pois é lá, na rua que eles querem ficar, lutar…

Lembre-se: cada uma luta com as armas que tem.
Seja a poesia a nossa luta amada…
Seja a música a nossa luta amada…
Seja a ARTE a nossa luta amada!

Mulheres-Baobás: poesia ancestral publicada na coletânea A quebrada que lê também escreve

O poema a seguir integra a obra Do Rascunho à Obra A quebrada que lê também escreve, projeto coordenado pelo Núcleo de Estudos, organização e difusão do conhecimento sobre Literatura Marginal – Neolim, pelo Coletivo Nas Quebradas e pelo Instituto Periferia Livre.

Mulheres-Baobás

Cláudia Martins Vieira

Benditas todas nós, que descobrimos a força que emanamos.
Somos mulheres-baobás: do nosso umbigo, tudo flui!
Mesmo quando ainda não nascidas,

o poder nos acompanha a longos passos.
Mesmo quando ainda não geradas,

um cordão umbilical feito de contas

já nutria todas nós.
Mulheres-Baobás:
fecundas, portamos a fartura e a cura!
E quando distantes,

perdidas na teia do conhecer-se,
forças, ideias e distrações,
tentaram nos podar,
mas nossas raízes são profundas
nelas, damos as mãos às nossas ancestrais…

e firmamos o passo para seguir.
Mulheres-baobás
perpassamos os tempos,
imponentes, de longe vê-se nossa força.
Florescemos no coletivo,
Aquilombadas,

Mulheres-Baobás:
eu sou porque nós somos!

Blog Sou Feita de Palavras: lugar de escrevivências

Para conhecer mais da escrita de Cláudia, acesse seu blog Sou Feita de Palavras.

https://soufeitadepalavras-claudinha.blogspot.com/2022/02/condao.html

A seguir, um dos poemas disponíveis no espaço, em que a escritora expressa sua identidade literária, emocional e política:

Condão

Cláudia Martins

Quando escrevo, não imponho limites:
Me derramo, me desvelo,
A poesia então num ato de cerzir
Emenda minha existência com a dela.
Siamesas, gêmeas,
Filhas da mesma cepa,
de tantos pais e mães.

Quando escrevo, não me envergonho:
Das minhas vulnerabilidades
A poesia pulsa, lateja,
E como sangria corrente
Devasta-me do cerne à cerviz.
Recomposta das feridas, cicatrizadas
Sou matéria, obra-prima, raiz.

Indecisa,
Não sei ao certo se crio ou sou mera cria dela.
Caminhante erma, de estradas e cirros,
Faço da poesia o meu condão:
É aqui que me dispo,
Sendo o que sou
Me revelo,
Me faço verso e revolução.

A poesia como missão

A caminhada de Cláudia Martins é marcada por coragem, sensibilidade e resistência. Entre jornadas de trabalho, estudos, maternidade e a vida periférica que insiste em impor barreiras, ela segue escrevendo, declamando, ocupando espaços e reafirmando sua existência pela palavra.

A poesia de Cláudia não ecoa sozinha. É parte de uma constelação de vozes que, nas periferias do país, escrevem para resistir e transformar. A literatura marginal, negra, periférica e feminina é uma das maiores forças criativas do Brasil, embora permaneça invisibilizada pelos grandes centros de poder cultural.

No anonimato, muitos talentos seguem produzindo sem o reconhecimento que merecem. Artistas periféricos não se calam. Escrevem, criam e reinventam o mundo a partir das margens. Cláudia Martins é uma dessas vozes retumbantes que já brilham antes mesmo de serem plenamente vistas e que precisam de oportunidades reais para mostrar a grandeza de sua criação. A poeta carrega na gaveta, nos cadernos, no bloco do celular e no peito inúmeros escritos inéditos, poemas, reflexões e narrativas que revelam sua efervescência e veia literária.

Inspirada por Conceição Evaristo, Cláudia faz da escrita uma escrevivência. Narra o mundo pelo viés de quem o vive na pele, na memória e no corpo, honrando a ancestralidade. Enfrenta intempéries todos os dias, mas não abandona seu sonho nem sua missão. A poesia é seu sangue, seu vinho, seu passado, seu presente, seu futuro e seu canto de liberdade.

Por Romênia Mariani

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