Por Táscia Souza*
Na sala da minha casa, em Juiz de Fora, interior de Minas Gerais, numa parede pintada com uma cor laranja-queimado escolhida especialmente para ele, tem um quadro retratando a antiga fazenda do magistrado que deu esse estranho nome à cidade. É um desenho/pintura, concebido por um artista plástico local chamado Gerson Guedes, que mostra, quase no centro da imagem, o velho sobrado que servia de sede à propriedade, construído entre 1713 e 1719, às margens do Caminho Novo (aberto para encurtar a rota de escoamento do ouro entre Vila Rica e o Rio de Janeiro), e demolido em 1946.
Da direita para a esquerda, no sentido oposto ao que os olhos costumeiramente correm, é possível, para quem conhece o curso, imaginar, mesmo na paralisia da imagem, o serpentear marrom claro do Paraibuna, rio que corta Juiz de Fora correndo para desaguar nas águas do Paraíba do Sul. Ao fundo, vê-se o verde do então Morro da Liberdade, que mais tarde aprisionou-se no nome “Morro do Imperador”, mas que, com um Cristo a observar do topo da colina, segue sendo um dos pontos mais altos da cidade.
Há árvores no desenho/pintura. Há galinhas, cavalos, um bule, uma xícara, um ramo de café. E há homens sobre os cavalos. Homens de chapéus e rostos indistinguíveis pintados de tinta clara. Homens brancos.
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Na mesma parede de casa, separado do outro por uma porta e uma estante, fica o quadro de um Preto Velho. Pintura de artista desconhecido, embora a imagem, em si, não seja. Pelo contrário, deve haver um desses em muitas casas além da minha, herdados, provavelmente, de outras casas pertencentes a avôs e avós. Só no Google Imagens encontrei um sem-número de reproduções, assinadas pela igual quantidade de artistas diferentes.
É um Preto Velho Violeiro, de barba e cabelos brancos, bituca de cigarro de palha entre os lábios, que olha diretamente nos olhos de quem o olha também. Por trás de suas costas, entre a cabeça e o ombro esquerdo, distingue-se a mão de uma viola de dez cordas, enfeitada com fitas vermelha e amarela.
O Preto Velho Violeiro vive num quadro próprio, como que escapado daquele outro para um lugar só seu. Um quadro-quilombo. Um quadro-liberdade. Quantos outros pretos velhos, porém, morreram escravizados na Fazenda do Juiz de Fora? Quantas crianças pretas, a despeito da vista para o morro, nasceram privadas de liberdade lá? Quantos não estão no outro quadro? Quantos foram apagados da memória de uma cidade que se orgulha da colonização alemã e dos imigrantes que vieram trabalhar em suas fábricas, mas tenta esconder, à força, seu passado escravocrata e a mão de obra negra que a construiu? Quantos, em todo o País, são apagados da História?
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O Preto Velho do quadro poderia ter inspirado o Velho das Barbas, personagem criado pelo escritor Edimilson de Almeida Pereira no livro infantil “O menino de caracóis na cabeça”. Conheci o Edimilson por essa história, quando participei de uma adaptação dela para o teatro, anos antes de eu ter a sorte de ele ser meu professor. Na peça, o Velho das Barbas se tornou o Velho do Sorriso de Lua, que, depois de sonhar com árvores que mudavam de lugar, águas que corriam para trás e pessoas que diziam coisas belas, percorrera a vida procurando o fim do mundo.
Fiquei profundamente triste quando vi à venda uma edição do livro diferente da minha, em que os Velho das Barbas deixou de ser um Preto Velho do Sorriso de Lua e os caracóis deixaram de estar, por dentro e por fora, na cabeça de um menino preto.
Quantos pretos velhos e quantas crianças pretas são desbotados das ilustrações dos livros? Quantos, além de alijados da História, são apagados também das histórias?
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Dia desses, numa aula que fiz com a professora Izabel Accioli (do perfil @afroantropologa) sobre “Pactos narcísicos da branquitude e fragilidade branca”, apareceu essa pergunta, que eu mesma já havia me feito antes: “em que momento vocês, pessoas brancas aqui presentes, se perceberam brancas?” Não sei o momento exato em que constatei que sou branca, mas certamente levou bem mais tempo do que leva uma criança preta. Porque crianças com a pele da cor da minha estão sempre nos livros e nas histórias. Pessoas com a pele da cor da minha estão sempre protagonizando a História. O racismo foi inventado por nós, a escravidão foi um crime praticado pelas nossas mãos. É nossa responsabilidade e nossa obrigação enfrentá-los, todos os dias, por todos os dias.
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A Contee é uma entidade sindical. Uma entidade, portanto, que tem a luta de classes por princípio e a emancipação da classe trabalhadora por fim. No Brasil, porém, como nos ensina a filósofa Sueli Carneiro, diretora do Geledés — Instituto da Mulher Negra, raça funda classe. Pretos e pardos formam a maioria dos trabalhadores pobres deste País. Vítimas da escravidão lá e então, vítimas do sistema capitalista aqui e agora.
Ao longo dos últimos anos, a Contee, como entidade sindical que é, tem denunciado, sistematicamente, a crise do modelo capitalista, que levou, inclusive, ao crescimento do neofascismo no Brasil. Essa crise também tem cor. O capitalismo é branco. E deu errado. Já passou da hora de brancos como eu aprenderem novas formas de viver em comunidade, inspiradas em que tem a nos ensinar: os povos originários, os povos da florestas, os povos dos quilombos. É tempo de sermos aldeia. É tempo de aquilombar.
*Táscia Souza é doutora em Estudos Literários e jornalista da Contee