“Toffoli imagina amaciar a extrema direita com acenos conciliadores”, diz historiador citado por ministro
Durante discurso, presidente do STF diz que prefere falar em “movimento de 64” ao invés de “golpe”. Daniel Aarão Reis, a quem o ministro se referiu, explica ao EL PAÍS o que está por trás de fala
“Hoje, não me refiro nem mais a golpe nem a revolução. Me refiro a movimento de 1964”. A fala é do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli, durante uma palestra na Faculdade de Direito da USP em homenagem aos 30 anos da Constituição Federal. Citando textos do historiador Daniel Aarão Reis, o ministro disse ainda que tanto a direita conservadora como a esquerda cometeram erros antes do golpe, mas preferiram não assumi-los, jogando a culpa nos militares. Em entrevista ao EL PAÍS por e-mail, Aarão Reis rebate: “A interpretação é vesgamente enviesada, procura um ponto de equilíbrio que não existe em história e tem como resultado a absolvição histórica do golpe e dos golpistas. No limite, e este limite foi agora ultrapassado pelo Toffoli, preconizam deixar de se falar em ditadura”, explica.
Professor de História Contemporânea da Universidade Federal Fluminense (UFF) e autor de livros como Luís Carlos Prestes – Um revolucionário entre dois mundos(Companhia das Letras, vencedor do prêmio Jabuti em 2015), A Revolução que Mudou o Mundo (Cia das Letras, 2017) ou Ditadura e Democracia no Brasil (Zahar), Aarão Reis não acredita que as falas do ministro foram um acaso: “Toffoli, como muito outros, imagina “amaciar” a extrema direita com acenos conciliadores”, opina. E acrescenta: “Trata-se de um engano. A extrema direita, historicamente, avança sobre concessões inconsistentes e se fortalece com isto”.
Pergunta. O que de fato o senhor vem dizendo, supostamente levando o ministro a mudar sua interpretação sobre o regime militar?
Resposta. O que tenho sustentado, em livros e artigos, desde o começo deste século, é que houve grande participação civil no golpe de 1964 e na construção da ditadura então instaurada. Inúmeros trabalhos, desde então, têm comprovado estas evidências.
P. De onde vem a interpretação de que tanto a direita conservadora quanto a esquerda não assumiram os erros que antecederam 64, passando a culpar militares?
R. A interpretação está ligada à chamada “teoria dos dois demônios”. Elaborada na Argentina, atribuiu a erros de direita e de esquerda a instauração da nefasta ditadura naquele país. Em larga medida, tal teoria já foi superada entre nuestros hermanos, mas ela acabou sendo importada para o Brasil pela [cientista política] Argelina Figueiredo, que, de fato, sustenta, com outros, que o golpe de 1964 foi suscitado pelos radicalismos de direita e de esquerda. Assim, os perpetradores do golpe são como que “absolvidos”, atribuindo-se o golpe a intransigências e a radicalismos de esquerda e de direita.
A referência à conjuntura radical do pré-1964 é uma evidência incontornável. Mas é de uma vesguice sem tamanho igualar os que lutavam por reforma agrária (os camponeses) e os que a recusavam (os latifundiários). Os que desejavam democratização e justiça social (estudantes, operários, camponeses, graduados das forças armadas, etc.), de um lado; e os oligarcas que recusavam estes valores.
P. É correta ou coerente esta interpretação?
R. A interpretação dos “dois demônios” é vesgamente enviesada, procura um ponto de equilíbrio que não existe em história e tem como resultado a absolvição histórica do golpe e dos golpistas. No limite, e este limite foi agora ultrapassado pelo Toffoli, preconizam deixar de se falar em ditadura.
P. Chamar o golpe de “movimento de 64” é possível? O que significa?
R. Claro que houve um movimento, articulando setores diversos da sociedade, empresários, lideranças religiosas, políticas e militares, incluindo-se aí segmentos populares significativos. Mas isto não significa que este movimento não tenha protagonizado um golpe de estado, rasgando a Constituição e depondo um presidente legitimamente eleito. Nem que este golpe de estado não tenha se desdobrado numa ditadura aberta. Que um soi-disant [pretenso] jurista não veja isto é uma aberração sem tamanho.
P. Quais são as intenções de o ministro do Supremo ao adotar essa percepção? O que significa e quais são suas implicações?
R. Toffoli, como muito outros, imagina “amaciar” a extrema direita com acenos conciliadores. Segundo consta, nomeou inclusive como assessor pessoal um general [Fernando Azevedo e Silva] que participou do círculo que elaborou propostas para o Bolsonaro. Desde que entrou no STF, ele se aproximou muito e tem feito tabelinha com o Gilmar Mendes, que dispensa comentários. O que importa ressaltar, no entanto, é esta posição política geral, que não é só dele, Toffoli, a de amaciar a extrema direita com concessões cada vez mais importantes. Trata-se de um engano. A extrema direita, historicamente, avança sobre concessões inconsistentes e se fortalece com isto.
P. O que a história nos ensina sobre a postura do STF diante dos militares em 64?
R. Tristes histórias. O presidente do STF de então, Ribeiro da Costa, coonestou o golpe, sem sequer consultar seus colegas que também se calaram, imaginando escapar da tormenta. Mais tarde, o próprio Ribeiro da Costa entrou em repetidos conflitos com a ditadura, mas já era tarde. Quanto aos que se calaram, foram cassados ou obrigados a se aposentar.
P. Assim sendo, o fato de Toffoli ter indicado o general bolsonarista Fernando Azevedo e Silva como seu assessor e, agora, estar falando “movimento de 64” indica alguma coisa? Acredita que o Supremo está se blindando de uma eventual intervenção militar?
R. Já parcialmente respondida a pergunta, caberia aduzir que se houve ali desejo de blindar o STF, trata-se de uma ilusão pueril.
P. Além do Toffoli, Fux censurou o EL PAÍS e a Folha ao proibir entrevista com Lula, Moro liberou a delação do Palocci, um juiz tentou atrapalhar a votação de domingo ordenando o recolhimento das urnas… Como avalia o comportamento recente dos atores do nosso Judiciário?
R. O Judiciário é uma instituição complexa, eivada de contradições. Não compartilho teorias conspiratórias que avaliam o Judiciário como uma máquina monolítica a favor destas ou daquelas tendências. Mas é fato que alguns juízes, como o Moro, entre outros, têm evidenciado viés político em suas atitudes o que faz duvidar de seu senso de Justiça.
P. No que se assemelha e no que se diferencia o contexto atual ao de 64?
R. Há profundas diferenças entre as duas conjunturas, embora muita gente esteja formulando aproximações, quando não, identidades entre estas temporalidades. As duas conjunturas distinguem-se pelo contexto internacional (Guerra Fria, radicalizada com a emergência da revolução cubana X Mundo multipolar atual); pelas disputas sociais (grandes movimentos sociais nos anos 1960, antes do golpe, com propósitos reformistas, hoje inexistentes); pela força do anticomunismo (embora importante, secundária hoje em dia). O que tem suscitado aproximações entre as duas conjunturas é a força emergente da extrema direita, com explicitação de nostalgias de um Governo forte, e mesmo ditatorial, como propõem alguns. Por outro lado, é notável como democratas de direita e liberais conservadores têm tratado com grande indulgência o fenômeno Bolsonaro, que é extremamente perigoso para a preservação da democracia. Às vésperas de 1964, muitos liberais imaginaram usar ou se servir dos militares para alcançar suas finalidades, afastando líderes populares que os assustavam. Os resultados foram desastrosos para esta gente —todos foram eliminados pelos militares ou tiveram que se conformar com posições secundárias de poder. Para todos estes, talvez valesse a pena visitar o passado para refletir melhor a respeito da maneira indulgente ou condescendente com que estão se comportando com propósitos ou lideranças de extrema direita.
P. Caso Bolsonaro vença as eleições, de quem terá sido a responsabilidade? Do PT, do PSDB, do sistema político como um todo, de parte da elite, chamada de “fascista” por Haddad? Poderemos, afinal, atribuir a culpa a algum ator específico ou aplicar, neste caso, a “teoria dos dois demônios”?
R. São muitos os condicionantes que explicam a força de Bolsonaro (não quero ainda acreditar que ele possa vencer as eleições). Ele extrai força da desmoralização do sistema político e da crise econômica. Também da desorganização dos movimentos populares brasileiros, sempre muito dependentes do Estado, o que se aprofundou nos governos petistas. Finalmente, caberia mencionar o autoritarismo visceral de nossas elites, de importantes segmentos das classes médias e, finalmente, mas não menos importante, das tradições autoritárias que vicejam também nas classes populares. Evidentemente, por isto tudo têm grande responsabilidade tucanos e petistas, afinal, eles governaram o país nos últimos 20 anos e polarizaram quase sempre as eleições. Mas o buraco é mais embaixo ainda —diz respeito a opções que a sociedade vem tomando nestas últimas décadas, opções que trataram com grande conciliação as desigualdades sociais e as tradições autoritárias, sempre muito pouco discutidas. É neste caldeirão, complexo, que medrou o Bolsonarismo. É preciso, primeiro, compreendê-lo. Depois, combatê-lo. Grande parte de seus adeptos poderão ser ganhos pela persuasão no contexto do jogo democrático. A ver se teremos tempo para isto.