“Toma um fósforo. Acende teu cigarro! O beijo, amigo, é a véspera do escarro, A mão que afaga é a mesma que apedreja”
“Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja”.
Os céticos e metafóricos versos da epígrafe são do poema de Augusto dos Anjos, Versos Íntimos, e podem, perfeitamente, ser utilizados para explicar o que representam, para os trabalhadores que votaram pela reeleição da Presidente Dilma, em 2014, as recentes medidas provisórias (MPs) Ns. 664 e 665, de 31 de dezembro próximo passado, por meio das quais se mutilaram o seguro desemprego, a pensão por morte, o auxílio-doença e o abono salarial.
Todos se lembram das reiteradas promessas da Presidente, àquela oportunidade candidata à reeleição, de preservação intacta dos direitos sociais já conquistados e que, efetivamente, achavam-se seriamente ameaçados caso o candidato Aécio Neves fosse vitorioso.
Para afagar os trabalhadores, a Presidente chegou a afirmar e a repetir que em tais direitos não tocaria, nem que a vaca tossisse.
Pois bem. Antes mesmo de começar o novo mandato, e sem que a vaca tossisse, a Presidente transformou os afagos da campanha em apedrejamento, parafraseando o citado poeta; fazendo-o em nome do monstro, pomposamente, chamado de equilíbrio fiscal- que se assemelha ao lendário Gigante Adamastor, que, dizia a crença corrente, aterrorizava os navegadores do Atlântico, que trafegavam pelo Cabo das Tormentas. O monstro do equilíbrio fiscal não aterroriza marinheiros, mas, sim, os direitos fundamentais sociais, duramente conquistados, por várias décadas de lutas sem tréguas, dos quais se alimenta, vorazmente.
As esfarrapadas explicações dadas pelo governo, para justificar os drásticos cortes sociais promovidos pelas mencionadas medidas provisórias, seriam cômicos, se não fossem trágicos. Segundo tais ‘explicações’ haveria abusos e, até fraudes, na utilização de todos eles, notadamente do seguro desemprego e da pensão por morte, que teriam se transformado em modo de vida, para alguns.
Esse descarado mote traz à lembrança um irônico comentário do falecido Jornalista Econômico Joelmir Beting, feito há anos, para criticar medidas deste jaez; segundo o qual, para curar a dor de dente, o governo decidira cortar a cabeça do paciente.
Soa estranho, para dizer falso, que o governo invista, de maneira frontal, sem discussão e sem contraposição, sobre direitos sociais, mas, emudeça-se completamente sobre os juros da divida pública, que sangram a nação em 5,6% do Produto Interno Bruto (PIB), percentual superior ao da educação e ao da saúde; a renúncia fiscal, que representa o saque anual de mais de setenta bilhões de dólares, o que equivale a quatro vezes o que se espera economizar com o sangramento estabelecido pelas realçadas medidas provisórias. Isto não pode ser tomado como mero acaso. Lamentavelmente, sinaliza opção; o que, nas palavras do Poeta Augusto dos Anjos, seria o escarro, sucedendo o beijo da campanha eleitoral.
Por que o governo não se serve de sua autoridade para regulamentar o inciso I, do Art. 7º, da Constituição Federal, que proíbe a dispensa arbitrária ou sem justa causa, que a aguarda há mais de vinte e seis anos?
A regulamentação deste preceito constitucional, de forma decente- não como fora a do aviso proporcional, pela apressada Lei N. 12.506/2011-, não só daria a segurança mínima, que os trabalhadores não têm, bem como seria decisiva para diminuir a escandalosa rotatividade da mão de obra, superior a sessenta por cento, antes de se completar o primeiro ano de trabalho, segundo autorizados dados do Dieese; esta, sim, a grande responsável pela crescente busca pelo seguro desemprego.
Elevar de seis para dezoito meses o tempo de trabalho mínimo, para se fazer jus ao seguro desemprego, nas condições do Brasil- único País do mundo em que não há regras proibitivas de denúncia vazia de contrato de trabalho- caracteriza-se como colossal retrocesso social, em rota de colisão com o Preâmbulo e com todos os fundamentos, princípios e garantias da CR; o que o transforma em inconstitucional.
Caso o Congresso Nacional faça coro com este retrocesso, milhões de trabalhadores ficarão à mercê da própria sorte, pois que estarão impedidos de fazer uso de seu principal instrumento de proteção contra o desemprego, que é direito fundamental social, garantido pelo Art. 7º, inciso II, da CR, insuscetível de redução e/ou supressão. Portanto, os nove bilhões anuais, que o governo espera economizar com esta medida, serão tintos de sangue- parafraseando a música Cálice, de Chico Buarque, que foi um magistral e providencial brado contra o regime militar, de triste memória.
A situação destes trabalhadores, que se somam aos milhões, assemelhar-se-á à dos pobres do deserto do Saara, na primeira metade do século XX, narrada pelo escritor francês Antoine Saint-Exupéry- autor de o mundialmente conhecido O Pequeno Príncipe-, Terra dos Homens. Tais pobres, depois de servirem de graça, na casa de algum senhor, por décadas a fio, ao perderem as forças para continuar a fazê-lo, eram despachados, sem nada, ou seja, postos ao léu, sem eira nem beira.
Ao serem despedidos, durante três dias, ofereciam os seus serviços a dezenas de casas; como não encontravam nenhum abrigo, após este calvário, deitavam-se na areia, à espera da morte, e nela agonizavam até que este ‘refrigério’ chegasse. Será que é isto o que se reserva aos trabalhadores desempregados, que não preencherem as novas exigências para obter o seguro desemprego?
Muitas outras inconstitucionalidades diretas e reflexas são facilmente detectadas nas contestadas medidas provisórias, alcançando todas as modificações nelas contidas.
No tocante à pensão por morte, direito constitucional assegurado, sem restrição, pelo Art. 201, inciso V, da CR, a Medida Provisória, além de exigir-lhe carência mínima de dois anos, com o acréscimo do inciso IV, ao Art. 25, da Lei N. 8213/91, o que contraria frontalmente o disposto no caput, deste Art., que a inclui entre os benefícios que independem de período de carência contributiva; reduz o seu valor a 50%, do salário de benefício (SB), mais 10%, por dependente, até perfazer o montante de 100%; exclui de seu total o percentual de cada dependente que atinge a maioridade, o que não acontecia, até então, de modo que, ficando só o cônjuge ou companheiro, o seu montante será de 60%, do SB; limita-a, de acordo com a idade, conforme tabela acrescida ao Art. 77, da Lei N. 8213/91, nos seguintes termos:
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Expectativa de sobrevida à idade x do cônjuge, companheiro ou companheira, em anos (E(x)) |
Duração do benefício de pensão por morte (em anos) |
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55 < E(x) |
3 |
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50 < E(x) ≤ 55 |
6 |
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45 < E(x) ≤ 50 |
9 |
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40 < E(x) ≤ 45 |
12 |
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35 < E(x) ≤ 40 |
15 |
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E(x) ≤ 35 |
Vitalícia |
Apesar de não o dizer e de não ser esta a intenção da MP N. 664, em nenhuma hipótese, a pensão por morte poderá ser inferior ao salário mínimo, pois que isto violaria o Art. 201, § 3º, da CR, que estabelece este como patamar mínimo para qualquer benefício previdenciário.
O auxílio-doença que, antes, por força do que dispunha o Art. 61, da Lei N. 8213/91, correspondia a 91%, do SB, calculado com base em 80% de todos os salários de contribuição, devidamente atualizadas, foi reduzido à média aritmética simples das doze últimas contribuições,o que, a toda evidência implicará considerável redução em seu valor, pois que não haverá atualização da base de cálculo, nem serão considerados os maiores salários de contribuição.
Até mesmo a única alteração que, aparentemente, não traz prejuízo aos segurados, que é a elevação de 15 para 30 dias, o período de licença médica custeado pela empresa, poderá acarretar prejuízos aos que sofrerem acidente de trabalho e não chegarem a entrar em gozo de auxílio doença. Isto, porque, de acordo com a Súmula N. 378, inciso II, do Tribunal Superior do Trabalho (TST), a estabilidade de que trata o Art. 118, da Lei N. 8213/91, condiciona-se ao gozo deste benefício. Assim, com base na nova regra, se o segurado, mesmo acidentado, não entrar em gozo de auxílio doença, com base na comentada Súmula, não fará jus à destacada e relevante estabilidade provisória.
No tocante ao abono salarial, que, também, é direito fundamental social, assegurado pelo Art. 239, § 3º, da CR, no valor de um salário mínimo anual, para quem tem remuneração média mensal dois salários mínimos, a sua proporcionalidade, estabelecida pela MP N. 665, é, sem dúvida alguma, igualmente, inconstitucional.
Em síntese, para a construção da cidadania, que depende, de maneira direta e total, da plena eficácia dos direitos fundamentais sociais, insculpidos na CR, nada se aproveita das famigeradas MPs. Já no que tange à saciedade do monstro equilíbrio fiscal, tem-se um prato cheio, à custa, é claro, de sangue, suor e lágrimas dos trabalhadores.
Senhora Presidente, não foi para isto que o Brasil a elegeu.
José Geraldo de Santana Oliveira
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