Trabalho de base e educação popular: O lugar e o poder da militância das periferias
A esquerda e sua ideologia vêm perdendo espaço e presença onde são mais necessárias: nas periferias
Não é de hoje que percebemos o quanto a falta do trabalho de base é prejudicial à luta por transformações sociais. A esquerda e sua ideologia vêm perdendo espaço e presença onde são mais necessárias: nas periferias, no meio do povo, entre os trabalhadores e trabalhadoras. Enquanto a direita se esfacela e a extrema direita ganha terreno, assistimos gente humilde e trabalhadora defendendo sua própria destruição, o desmonte de direitos, o retrocesso democrático e civilizatório, sem se dar conta disso.
No campo do discurso, a militância progressista sabe bem o que falta, conhece os aportes teóricos do trabalho de base e compreende que, em algum momento do percurso, ganhamos o governo, ocupamos o poder e esquecemos que, para mantê-lo, guiá-lo e controlá-lo em favor do povo, a presença do povo deve ser muito mais do que uma alegoria discursiva ou representatividade pro forma. Precisamos do apoio popular e isso se conquista no trabalho cotidiano, diário, exaustivo e incansável, não nos ministérios, não nas estruturas de governo, mas no “chão da fábrica”.
Nada disso é novidade e muitas análises políticas apontam justamente para este propósito, bem como o atual governo federal se mostra preocupado com a questão, pontuando ações voltadas a isso, como o estabelecimento de agentes territoriais de áreas diversas, da saúde à cultura, e o retorno de programas pautados na educação popular. As discussões resgatam a imprescindibilidade da governabilidade popular, isto é, ação política com respaldo, apoio e compreensão do povo, sem o quê o mercado facilmente desvirtua a busca pelo bem comum, dominando, ou sequestrando, as estruturas do Estado em prol de interesses privatistas e particulares.
Contudo, é preciso perceber que vislumbrar um propósito em termos de convergência de pensamento ou convergência ideológica não é o mesmo que vislumbrar um caminho verdadeiramente efetivo. Entendemos e valorizamos as ações que o governo federal tem buscado, e sabemos que a militância que ainda resiste tem tentado traçar estratégias diversas para a execução de um trabalho de base. Porém, mais uma vez, sentimos as periferias sendo negligenciadas ou vistas mais como receptáculos do que como protagonistas.
Os extremistas e fundamentalistas perceberam bem que identificação, empatia e pertencimento não se constroem em relações desiguais. É entre pares que a base se fortalece e alinha pensamentos. As igrejas de bairro, as associações comunitárias, os projetos sociais de assistência não são tocados por militantes de esquerda (em geral), mas por ativistas do mercado e do conservadorismo, usando o fundamentalismo religioso e a moral para desviar o foco e a compreensão que deveriam mirar a estrutura capitalista e suas artimanhas para alçar o acúmulo desenfreado à revelia dos direitos mais básicos dos seres humanos.
Não à toa que adentraram todos os Conselhos Comunitários: o Tutelar, de Cultura, da Saúde, da Assistência, de Segurança, bem como as redes intersetoriais, sempre participando das ações locais e usando esses espaços para propaganda ideológica.
Militância da periferia
Cercados de todos os lados, precisamos incluir a nossa mensagem nos círculos populares. Ela tocará somente se estivermos junto das pessoas como iguais, construindo relações de confiança. Empatia no trabalho de base não é dizer “Eu compreendo você e sua dor”, mas sim “Eu sou igual a você e sua dor é a minha”. Por isso, as periferias e suas organizações populares são os atores do trabalho de base e não seu receptáculo.
O Coletivo Família Hip Hop, a exemplo de muitas outras organizações sociais no DF e Brasil afora, está inserido na comunidade, é parte e cria dela. Estabelece diálogos com seus pares da cidade, fala sua língua. É com essas instituições e a partir desses pontos de militância que, hoje, se encontram isolados, que a política e ação progressista devem fazer suas pontes para o trabalho de base com vistas à organização popular.
O Coletivo Família Hip Hop atua, neste sentido, há mais de 15 anos por meio da Escola de Formação. Este é um projeto de Educação Popular voltado à formação política, antes e primeiramente, da juventude do movimento Hip Hop. Hoje, atende jovens que cursam o ensino médio das escolas públicas da cidade.
Contudo, para além deste núcleo de educação, em que oficinas e encontros são construídos tendo a educação popular como referência para a discussão crítica da realidade, o Coletivo é um ponto permanente de educação continuada. Seus diversos projetos populares, como a Horta Comunitária, a distribuição de alimentos e os encontros de cultura, são sempre momentos de reflexão. Neles, podemos estabelecer diálogos políticos a partir da experiência das pessoas da comunidade que circundam essas ações.
A entrega de uma simples cesta verde orgânica e produzida por trabalho coletivo, não explorado e compartilhado, gera a possibilidade de compreensão do que seja outra forma de organização da produção de alimentos, da distribuição da renda, do acesso à comida, sobre economia solidária, com crítica ao capitalismo e introdução ao socialismo. É preciso valorizar esses espaços, fortalecê-los e contribuir com sua disseminação.
São o terreno fértil do trabalho de base por serem genuinamente locais de afeto, de vivência comunitária e de solidariedade. Esse é o poder da militância da periferia. Ela fala de igual para igual em diálogos mediados por ações solidárias, de reciprocidade e confiança.
Mais que isso, é preciso sempre frisar que trabalho de base é educação popular, e educação popular quer a transformação da realidade a partir da ação do povo na construção de sua própria história. Educação popular é a práxis do povo, das periferias. É buscar compreender criticamente a realidade concreta tendo como referência nossas histórias, experiências, conhecimentos, modos e cultura. A educação popular assim pensada só pode se efetivar onde o povo está, e onde o povo vivencia a possibilidade de trocas, de crescimento mútuo e de fortalecimento comum.
A experiência do Coletivo Família Hip Hop, que não é única e segue exemplo de várias outras organizações que compartilham a mesma ideologia, pode ser inspiração para novas ações, em Santa Maria, no DF, no Brasil. Que pontos como este possam ser identificados e tornados referência para a militância governamental, construindo redes de atuação para o trabalho de base. Que as militâncias periféricas sejam reconhecidas, valorizadas e fortalecidas, sempre na intenção da ruptura com a ordem opressora e o alcance da justiça social. Não podemos esperar até que 2026 chegue. Temos ainda dois anos até as próximas eleições e devemos ser certeiros na escolha das estratégias para o trabalho de base. As periferias são o caminho, e o povo seu sujeito histórico.
Edição: Rafaela Ferreira