Tradicionalismo e neoliberalismo: unidos pela destruição
Por Luiz Carlos de Freitas
A aliança conservadora-neoliberal no governo brasileiro deverá continuar a propor medidas que visem destruir o Estado na forma como foi concebido até agora. Os Projetos de Emendas Constitucionais – PECs – são o instrumento para tal. Para as duas principais forças desta aliança – o conservadorismo e o neoliberalismo -, é fundamental neutralizar a atuação garantidora do Supremo Tribunal Federal, só é possível com alterações na Constituição, afinal, o STF só pode interpretar as leis e não fazê-las.
As motivações de conservadores e neoliberais são diferentes, mas o resultado tenderá para o mesmo: constitucionalizar as leis do livre-mercado; reduzir a garantia de direitos e de dispositivos que favoreçam a igualdade política, limitando o alcance da precária democracia liberal; reposicionar a participação do cidadão desobrigando-o ou criando filtros meritocráticos; armar a população; privatizar todas as áreas do Estado para neutralizar as demandas da maioria sobre a gestão, entre outros.
O conservadorismo tem várias vertentes dentro dele. Uma delas poderia ser chamada de conservadorismo clássico ou Tradicionalista (Teitelbaum, 2020). Para estes, o tempo transcorre em ciclos sucessivos de idades que vão de uma idade de ouro até uma idade de ferro, sombria, quando então, após a destruição, o ciclo recomeça. Vivemos, agora, uma idade sombria – a Kali Yuga – que atenta contra as Tradições acumuladas desde tempos imemoriais (Guénon, 1927).
É no ocidente que este processo de degeneração estaria mais avançado. Descontruindo o Estado, a democracia liberal e fragmentando a organização social, haveria a possibilidade de que instâncias organizativas menores pudessem preservar ou reconstruir os “saberes tradicionais” perdidos pelo ocidente, favorecendo para que as pequenas comunidades locais mais tradicionais e conservadoras assumissem maior influência na preservação destes valores e na formação dos indivíduos. Como diz Teitelbaum: “Bannon [um Tradicionalista] valoriza o Brasil porque acredita que o país chegou atrasado na modernidade e, assim sendo, talvez tenha preservado mais virtudes pré-modernas, as quais poderiam ser usadas para ressuscitar o resto do Ocidente.”
Ao leitor do século XXI isso pode parecer completamente fora de lugar. Mas não é assim para este “conservadorismo” que tem sua base cada vez mais ampliada, recrutada entre uma parcela da população esquecida em micro-comunidades do interior do país ou entre os desesperados do sistema capitalismo, que, sem horizontes, voltam-se para o passado, em busca de um paraíso perdido.
Na outra ponta, jovens “bombados” pela meritocracia reivindicam mais concorrência, menos regulação e mais reformas neoliberais em busca dos troféus que lhes foram prometidos como ganhadores de um “jogo” que ofereceu mais do que podia, no interior de uma crise sistêmica do capitalismo que não tem fim. São PJs, ou seja, desempregados que estão tentando sobreviver na lógica do empreendedorismo, novos apostadores em bolsas de valores à espera que a sorte olhe para eles, uma juventude imersa na precariedade trabalhando como uber, entregadores, etc. Sem visibilidade, por motivos distintos dos conservadores, culpam o Estado, os políticos e o “establishment” em geral pelos problemas.
Para o conservadorismo, a ilusão acalentada é a de que o capitalismo possa ser “espiritualizado”, retirando-o do “materialismo” em que mergulhou, principalmente no ocidente, e que ameaça avançar em direção ao oriente, local onde ainda se guardariam tais Tradições. Oriente e ocidente, portanto, deveriam se somar para salvar a Tradição e, no ocidente, o catolicismo ainda seria o espaço onde tais tradições poderiam ser encontradas, ainda que em estado latente (Guénon, 1927). Mas para que isso ocorra, é preciso que tenha lugar a destruição do mundo moderno, seus métodos de organização, sua concepção de democracia, sua pseudo-ciência e a preparação de uma elite espiritual, enquanto há tempo, para que lidere, ao termino desta fase de destruição, a restauração da Tradição perdida – uma verdadeira idade de ouro.
O leitor pasmo, perguntaria se essas ideias ainda persistem em pleno século XXI. A resposta é: sim. Nosso objetivo aqui não é discutir o Tradicionalismo em si. É possível, mesmo, que nem tenham intenção de interferir diretamente nos acontecimentos terrenos, aguardando pela passagem dos tempos cíclicos. Mas as ideias também produzem efeitos.
O fato é que a formulação, pelo menos da maneira como está proposta por René Guénon, figura âncora do Tradicionalismo ocidental, é nefasta quando estimula e orienta uma extrema-direita violenta e tem a intenção de virar política de Estado contra o próprio Estado. Para se ter uma dimensão das propostas, basta ler Guénon (1927) e ver como ele critica a democracia liberal ocidental:
“No entanto, se refletimos nesse fato [o desastre do mundo moderno] percebemos facilmente que não há nisso nada de que nos devamos espantar, pois trata-se, em suma, apenas do resultado muito natural da concepção “democrática”, em virtude da qual o poder vem de baixo e apoia-se essencialmente sobre a maioria, o que tem necessariamente por corolário a exclusão de toda verdadeira competência, porque a competência é sempre uma superioridade pelo menos relativa e só pode ser o apanágio de uma minoria.” (Pág. 101.)
“O argumento mais decisivo contra a “democracia” resume-se em poucas palavras: o superior não pode emanar do inferior, porque o “mais” não pode sair do “menos”; isto é de um rigor matemático absoluto, contra o qual nada poderia prevalecer”. (Pág. 102.)
“(…) [é] demasiado evidente que o povo não pode conferir um poder que ele próprio não possui; o verdadeiro poder só pode vir do alto, e é por isso, diga-se de passagem, que só pode ser legitimado pela sanção de alguma coisa superior à ordem social, ou seja, uma autoridade espiritual.” (Pág. 103.)
Esta concepção vê o mundo dividido em castas. Para quem quer e tem paciência para examinar estas propostas, recomendo a leitura de seu formulador, René Guénon, especialmente seu livro A crise do Mundo Moderno, escrito em 1927, de onde saíram as citações acima.
O Tradicionalismo cresceu e hoje sua plataforma é usada (correta ou incorretamente) por figuras que têm acesso a políticos, juristas, e até mesmo a presidentes e líderes de países. Caso você não acredite, você pode ler Benjamin R. Teitelbaum, autor de Guerra pela Eternidade – Ed. Unicamp, 2020. (Leia também uma entrevista com o autor aqui.)
A Editora da UNICAMP presta um grande serviço à democracia brasileira ao traduzir este livro. Nele, Teitelbaum toma para exame três figuras ligadas de alguma forma às ideias Tradicionalistas e que, com suas diferenças, têm acesso direto a presidentes: Steve Bannon (assessor informal de Trump até pouco tempo presidente dos Estados Unidos); Aleksandr Dugin (assessor informal de Putin presidente da Rússia) e Olavo de Carvalho (assessor informal do clã Bolsonaro que preside o Brasil). O estudo revela a malha de conexões com a extrema direita no eixo Rússia-Europa-Estados Unidos com ramificações para outros países e dá uma dimensão de onde os liberais brasileiros foram parar em seu afã de segurar a esquerda nas eleições de 2018.
Olavo de Carvalho não concorda com a ideia de ciclos temporais de Guénon e rejeita sua própria inclusão entre os Tradicionalistas, embora como afirma Teitelbaum, sem apresentar argumentos convincentes. Bannon, mais inteligente, adapta os ciclos ao populismo de direita e à meritocracia típica do “self made man” americano e redefine o entendimento das “castas” que acompanham o ciclo de idades, indicando que a melhoria econômica das massas permitirá que evoluam espiritualmente entre castas (Teitelbaum, 2020).
Por falar em meritocracia, como é que os neoliberais se encaixam em tudo isso? Em primeiro lugar, não nos esqueçamos que o neoliberalismo defende que as decisões sociais sejam tomadas por pessoas que tenham mérito (mais claramente, sejam tomadas por uma elite de “gestores” que deve estar protegida das pressões sociais da maioria) e que, em nome da manutenção do livre mercado, é legítimo usar a violência. Sendo esta semelhança mais formal que de conteúdo, nada disto, é claro, atesta uma união estável entre neoliberais e tradicionalistas, como ademais a própria realidade da política brasileira tem demonstrado. Mas cada uma destas forças sentiu que poderia obter vantagens nesta coalizão.
É mais provável que a formação da coalisão conservadora-neoliberal, no caso brasileiro, atendeu principalmente a um problema eleitoral. Havia que derrotar a esquerda e não se dispunha de um candidato que tivesse a aprovação do “mercado” e disposição para implantar as reformas impopulares do neoliberalismo com o compromisso de destruir o Estado liberal centrista.
Como o capitalismo não se detém ante nada, desde que garanta lucros crescentes, Bolsonaro era quem estava à mão e que, espertamente (não ele, mas o clã Bolsonaro e seus assessores) costurou um suposto compromisso dele com o “mercado”. O “vale tudo” de 2018 para derrotar a esquerda, levou a Bolsonaro. Se divergências existiam, elas seriam resolvidas depois – havia um problema maior para o neoliberalismo brasileiro, que encarava derrotas sucessivas, e este era a própria crise do capitalismo.
A corporação empresarial precisava instalar-se em setores importantes do Estado – notadamente na economia – colocando-os sob seu comando. O motivo: segurar a crise do capitalismo com reformas neoliberais. O capitalismo não tem nenhuma proposta diferente para pôr na mesa, além desta. Era pegar ou largar.
O Tradicionalismo foi acomodado na tese liberal de que a questão dos “costumes”, como se gosta de dizer de tudo que está além da economia, era uma questão de foro íntimo e portanto do domínio e decisão de cada um.
Além disso, embora com intensidade menor, os neoliberais também necessitam destruir se não o Mundo Moderno, pelo menos o Estado liberal-centrista – ainda que para o neoliberalismo esta destruição deva levar a um Estado mínimo (mas forte politicamente) (Gamble, 1988) dominado pela corporação empresarial, onde se encontram pessoas que se construíram pelo mérito e têm, portanto, “superior” sabedoria.
Do ponto de vista dos Tradicionalistas, um Estado mínimo poderia ser um primeiro passo na direção de sua meta de contrapor-se ao “mundo moderno” e abrir caminho para dar visibilidade (e financiamento) às suas teses. E para quem passou os últimos 250 anos amargando o último lugar das preferências políticas, isso já seria um grande passo. Como no Brasil o conservadorismo tem características populistas – fato que se destina a ampliar sua base eleitoral e estabelecer hegemonia futura – conflitos eram esperados na implantação das medidas neoliberais, sempre impopulares.
No meio de todas as implicações destas propostas, não é difícil imaginar que a educação fosse cobiçada como um instrumento privilegiado de desenvolvimento das ideias neoliberais e Tradicionalistas. Cada um à sua maneira, se encontra, agora, trabalhando para reconverter a educação a seus propósitos. O acordo levou a que o Ministério da Educação ficasse com os Tradicionalistas e um super Ministério da Economia, ficasse com os neoliberais.
A inercia atual do Ministério da Educação, melhor dizendo, a omissão do MEC, é apenas parte do processo de destruição destinado a abrir espaço para ONGs, Fundações e instituições privadas e conservadoras avançarem sobre a educação pública, estimulando sua privatização. Isso reduz a ação do Estado.
Privatização pela modalidade vouchers é o desejo tanto de neoliberais como de Tradicionalistas e demais conservadores: os primeiros ganham espaço ao converter a educação pública em um “mercado educacional” que introduzirá a lógica da meritocracia na juventude, além de reduzir o Estado; os segundos, para além disso, têm a possibilidade de redirecionar recursos públicos com a finalidade de ampliar e fortalecer as instituições privadas religiosas e conservadoras, onde se pode estimular as ideias Tradicionalistas e religiosas que deverão espiritualizar o “mercado” e abrir espaço para a emergência de uma nova idade de ouro. Por ora, estão juntos. Se continuarão juntos, o futuro dirá.
A escolha da escola pelos pais via privatização por vouchers permitirá, ainda, que estes mantenham seus filhos isolados em escolas religiosas ou estudando em seus próprios domicílios às custas do erário público, protegidos e fora dos riscos dos descalabros do “Mundo Moderno” que vive sua fase terminal – a “Kali Yuga”.