Um ano após o ‘não’, nova Constituição chilena está em aberto e nas mãos de parlamentares de direita

'Temos que observar essa realidade com valentia', diz ativista que integrou constituinte recusada em plebiscito em 2022

Nesta segunda-feira (4) completa um ano desde que, em plebiscito, o povo chileno rejeitou uma proposta de Constituição feita por um organismo eleito por voto popular. O processo constituinte foi uma resposta às mobilizações massivas que tomaram o país por meses entre 2019 e 2020 e que tiveram como estopim a luta contra o aumento da tarifa do transporte.

O aniversário de um ano da vitória contundente (61,8%) do “não” no plebiscito constitucional, comemorada pela direita chilena, acontece no marco dos 50 anos do golpe militar instaurado por Augusto Pinochet. Agora, a nova proposta de carta magna do Chile que deve substituir a atual — vigente desde a ditadura — está sendo elaborada por um conselho de 51 parlamentares. Destes, 33 são de partidos da direita. Depois, o texto será submetido de novo a voto popular.

A atriz e dramaturga Machula Pinto participou das manifestações de 2019, nomeadas no Chile de estallido social (explosão ou revolta social, em português). Em seguida, foi eleita representante de um dos distritos da região metropolitana de Santiago na comissão que elaborou a proposta de Constituição recusada pelo plebiscito.

“Infelizmente aconteceu o que aconteceu. Mas segue sendo uma questão pendente no Chile. Há 50 anos nosso país não tem nenhuma noção do que é um direito social universal garantido. Não tem a vivência, não sente no próprio corpo o que pode ser um direito”, avaliou Machula durante a Conferência Regional Dilemas da Humanidade, que segue até esta segunda-feira na comuna de Recoleta, em Santiago.

O evento, organizado pela Alba Movimentos e a Assembleia Internacional dos Povos (AIP), reúne 230 militantes e intelectuais de movimentos populares, sindicatos e partidos políticos de 23 países latino-americanos e caribenhos. A conferência é uma etapa preparatória para a edição global do Dilemas da Humanidade, marcado para outubro em Joanesburgo, na África do Sul.

Em conversa com o Brasil de Fato, na capital chilena, Machula fez sua avaliação sobre o que culminou, em suas palavras, no “fracasso dessa proposta constituinte que defendia o bem viver” e compartilhou as expectativas com relação ao que virá. Leia a entrevista na íntegra:

Brasil de Fato: Como você se tornou delegada da proposta de Constituição chilena que acabou não sendo escolhida no plebiscito?

Machula Pinto: O trabalho teatral do coletivo que integro emerge do diálogo com os territórios, com organizações sociais, etc. Então, ao longo de toda a minha vida estive atuando nesses temas ligados à transformação social. Fui parte da Assembleia por um Pacto Social, que foi uma organização social e política no tempo do estallido. Éramos gente de diferentes lugares, pessoas não organizadas em partido, de movimentos, principalmente. Mas também pessoas de partidos políticos. E tentamos estabelecer uma conversa política diferente.

E ainda que fosse nossa bandeira a de ter uma assembleia constituinte, implementar uma mudança constitucional e chamar um plebiscito, no entanto, o poder constituído toma isso e o faz à sua maneira. Um pouco para sufocar, penso eu, o que estava acontecendo. Houve muito debate se participávamos ou não.

Então esses dois fatores influíram muito na minha decisão de fazer parte do processo. Por outro lado, sentia que a cultura, que nunca está, tinha que estar [presente].

Mas o processo foi gestado pelas elites. Esse suposto ‘acordo pela paz’ foi pensado entre quatro paredes e sem os movimentos. Assim definiram, por exemplo, que a gente teria um ano como tempo de preparação. A verdade é que era muito complexo escrever uma nova Constituição, da forma como desejávamos, em um ano. Foi uma crônica de morte anunciada.

Vivemos seis meses fechadas nesse Congresso, sem contato com os territórios. Não pudemos permanecer em diálogo com a população real do nosso país, com a base das quais muitos de nós viemos. Muitos de nós não vínhamos de partidos políticos, mas de uma militância e vivência nos nossos territórios.

Nas primeiras comissões houve certa participação popular, propusemos que houvesse uma série de plebiscitos para consultar a sociedade sobre diversas questões e, assim, também informar a todos sobre o processo da constituinte. Nada disso foi permitido, por causa do tempo.

E como está a situação agora, um ano depois do plebiscito?

Creio que temos desafios muito grandes. Porque no fim das contas, a sensação que tenho — e que tem a ver com as críticas a essa democracia representativa — é que, no final, não éramos representantes. Também houve uma avaliação equivocada da nossa parte sobre as ideias, as emoções, as propostas que levamos. Porque quando chegou o momento, não foram respaldadas pelas nossas próprias bases.

Então me pergunto sobre essa ideia que tínhamos deste Chile com assembleias autoconvocadas, a ideia durante o estallido social de que o povo efetivamente tinha um projeto político. Não era assim. Havia um mundo desconhecido por todos nós, que foi o mundo que, no fim das contas, votou pelo “não” no plebiscito. E esse mundo é também um mundo popular.

Não é que foram fascistas ou só os ricos os que votaram pelo “não”. Vimos, sim, como os grandes donos de terra deste país manipularam e influenciaram neste resultado. Mas não podemos nos fazer de tontos com um contexto que é real neste país. Temos que observar essa realidade com muita valentia e, então, pensar que propostas temos para o Chile real e não apenas para este outro Chile — que também existe, mas não é o único.

Então estamos em um dilema complexo. Nós temos que pensar como é que nós estamos dialogando. Estamos com um verdadeiro e interessante problema, que requer muita escuta, muita sensibilidade, muita coragem e muita coordenação entre nós.

Vocês que participaram do processo constituinte seguem se reunindo?

Não. Foi tão brutal o golpe que, de forma geral, ficamos traumatizados. Além disso, nos perseguiram muito. Não por sermos representantes, mas para atacar o processo. Por exemplo, a todo o momento saíam nos jornais mentiras de que fulano foi contratado, que “pagaram milhões para ciclano”, que “fundações estão por trás”. Enfim, todos os veículos hegemônicos fizeram de tudo para desacreditar. Vivemos um tempo difícil.

O que esperar dessa nova Constituição, que está sendo pensada dentro do Congresso, apenas por parlamentares e majoritariamente de direita?

Eu espero que essa nova proposta de Constituição que será feita seja também rechaçada. Está sendo elaborada pela direita. Ontem [sábado (2)] me mostraram uma das propostas voltadas à cultura. Dizia algo como “todo cidadão deve ter direito ao acesso à cultura e à criação, sempre quando for coerente com as tradições chilenas, com a ordem pública, bons costumes e com a segurança nacional”. Se for aprovada, serão anos com essa Constituição.

Essa normatização neoliberal que está na Constituição de 1980 é, de alguma forma, mais sutil. Ou seja, deixa algumas brechas. A que está sendo elaborada, se aprovada, será implacável. Imagina essa norma que exemplifiquei da cultura. Seria institucionalizar a censura. Segurança nacional, ordem pública, bons costumes e tradições chilenas? Isso é letal.

Espero que pelo menos sejamos capazes de conseguir que efetivamente essa proposta seja também rejeitada. Com mais tempo, talvez consigamos avançar neste debate. O fato é que segue aberto o processo constitucional.

Edição: Geisa Marques

Do Brasil de Fato

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