Um País na voz de Gal

Ontem o Brasil teve motivos de sobra para respeitar (e chorar) muitas lágrimas. Mas continua tendo razões para lembrar, ainda mais, de suas risadas. Na voz de uma mulher sagrada, ressoam mais que palavras; conta-se a História de um País.

No dia 6 de janeiro de 1989, Cássia Kis — essa mesma que agora reza o terço em manifestações golpistas — matava Odete Roitman na TV, e o marido de sua personagem fugia dando uma banana para o País. Enquanto o último capítulo da novela Vale Tudo ia ao ar, o Brasil começava aquele que seria, até então, o ano mais importante desde o fim da ditadura civil-militar: o da primeira eleição direta para a Presidência da República. Naquela noite, foi a voz de Gal Costa que entoou, pela última vez naquele horário nobre da Rede Globo, algo que a cantora já vinha cobrando, nas palavras de Cazuza, desde o ano anterior, inclusive quando foi promulgada a Constituição: “Brasil, mostra tua cara!”.

O Brasil tem muitas caras, da mocinha bondosa interpretada por Regina Duarte naquela trama até a caricatura apoiadora de facínoras em que a própria Regina Duarte se transformou. Era assim lá e então; segue assim aqui e agora. No entanto, desde que se apresentou pela primeira vez ao lado de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé e Maria Bethânia, ainda como Maria da Graça, Gal sempre foi, dentre essas várias faces do País, uma das mais bonitas.

É significativo que essa primeira apresentação tenha acontecido em 1964, ano do golpe civil-militar que fez o País mergulhar num regime de opressão durante 21 anos. A voz de Gal atravessou esse tempo, continuou a ser ouvida quando a democracia renasceu, seguiu ecoando quando ela foi novamente ameaçada, ainda estava audível quando, no último mês, o Brasil de rosto bom travou uma batalha hercúlea contra o de rosto mal e venceu (ainda que caras monstruosas continuem arreganhando os dentes por aí).

Estava audível não; está. O professor e historiador Luiz Antônio Simas deixou o sentimento registrado ontem (9) no Twitter: “Aviso logo que não darei a menor pelota para essa maluquice da morte da Gal. De onde tiraram essa ideia estapafúrdia de que ela morreu? Eu, por exemplo, estou escutando Gal cantar agora; como os netos dos netos dos nossos netos escutarão”.

A voz de Gal segue ressonante, assim como a de Rolando Boldrin, que resolveu partir no mesmo dia. A cultura brasileira, tão atacada e combalida nos últimos quatro anos, não perdeu dois expoentes ontem. Eles seguem vivos.

Ontem o Brasil teve motivos de sobra para respeitar (e chorar) muitas lágrimas. Mas continua tendo razões para lembrar, ainda mais, de suas risadas. Na voz de uma mulher sagrada, ressoam mais que palavras; conta-se a História de um País.

Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino — Contee

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