UNE completa 83 anos e busca manter vivo o legado de luta pela democracia
20No Dia do Estudante, a UNE reafirma que está pronta para enfrentar os desafios da conjuntura com arte e organização
Era dia 11 de agosto de 1937. No Rio de Janeiro, reuniram-se estudantes e representantes do governo de Getúlio Vargas no 1º Conselho Nacional dos Estudantes. O objetivo: criar uma entidade nacional representativa de um segmento social em crescente expansão no país. Era o início da União Nacional dos Estudantes (UNE).
No livro “Memórias Estudantis – Da fundação da UNE aos nossos dias”, da historiadora Maria Paula Araújo, uma das fundadoras da entidade, Irum Sant’Anna, recorda a motivação dos estudantes. “Nós queríamos fazer uma entidade de estudantes, cuidando dos interesses dos estudantes, mas, ao mesmo tempo, uma entidade política, democrática que estivesse, desde o início, lutando por todos os interesses nacionais.”
Para Élida Elena, atual vice-presidenta da UNE, esse continua sendo o espírito da organização estudantil. “Esse legado de dedicação, de ousadia e de radicalidade na defesa do Brasil, assim como de um projeto de país, do seu povo, da nossa classe, de construir esse projeto para a classe trabalhadora, eu acho que é um dos legados fundamentais que a UNE deixa geração após geração.”
O atual presidente da entidade, Iago Montalvão, acredita que o fato da UNE estar viva e se reinventando há 83 anos se deve à relação intrínseca da luta estudantil com a luta social em defesa do país.
“Acho que a marca que a UNE deixou no país sempre foi essa, de uma entidade que luta pela democracia, que se preocupa com a educação, mas que, para além disso, se preocupa com o país, em dar a sua contribuição, em dar a contribuição dos estudantes ao país, nos mais diversos setores.”
Na visão de Rosa Amorim, a diretora de cultura da gestão atual, a luta por democracia, desde a fundação da UNE até os nossos dias, é algo que necessita ser destacado. Ela destaca a luta dos estudantes contra o golpe militar de 1964, “processo mais cruel que a nossa história já vivenciou”.
“A UNE está marcada na sua história, nas suas músicas que narram vários períodos históricos da luta pela democracia. Hoje, com um Estado, com um governo federal autoritário, fascista, antidemocrático, antipopular, inconstitucional, a principal luta da é pela democracia, é em defesa da educação, é contra o desmonte de um governo genocida que quer que a nossa história cruel do passado volte a ser parte constituinte do presente.”
83 anos de história de lutas
Militantes da União Nacional dos Estudantes participaram ativamente de diversos processos de mobilização popular da história do Brasil.
A UNE esteve envolvida, por exemplo, na luta contra o nazifascismo durante a segunda guerra mundial, assim como nas mobilizações pelo fim da ditadura do Estado Novo nos anos 1940. Também atuou na campanha “O Petróleo é Nosso”, que lutou por soberania e impulsionou a criação da Petrobrás.
A organização estudantil esteve à frente de ações que marcaram a história de uma juventude e da classe artística. Foi o caso dos Centros Populares de Cultura (CPC), gestados a partir do final dos anos 1950 e que perduraram até o golpe militar.
A vice-presidenta Élida Elena considera que a experiência dos CPC demonstrou como a arte e a cultura são “uma ferramenta fundamental no diálogo com o povo, na formação da consciência, na disputa das ideias da sociedade”.
Ela relata que os 1960 foram marcados por intensos processos, desde a transferência da sede da UNE para Porto Alegre (RS), para auxiliar no desenvolvimento da Rede da Legalidade em 1961. Também foi uma década de fortalecimento das atividades artísticas, culturais e políticas dos CPC, com a realização da UNE Volante em 1962, que girou o Brasil pautando a reforma universitária e impulsionando a criação do movimento estudantil organizado nas universidades.
E foi exatamente neste momento de crescente mobilização popular que o golpe militar se instaurou no país na noite do dia 31 de março de 1964. Nas primeiras horas após o golpe, a sede da UNE, na Praia do Flamengo, foi vítima de um incêndio criminoso.
“O incêndio foi algo violentíssimo. O incêndio da UNE foi um dos marcos simbólicos da virada do golpe. É como se a ditadura e os setores conservadores e reacionários entendessem que ter um espaço significa muita coisa. Que o patrimônio imaterial e o patrimônio material se confundem, se misturam”, relembra a historiadora e professora da Universidade Federal Rio de Janeiro (UFRJ), Maria Paula Araújo.
Mesmo na ilegalidade imposta pela ditadura militar, a UNE e os estudantes seguiram se mobilizando, sobretudo nas lutas contra o regime, por democracia, anistia aos presos políticos, eleições diretas e por uma nova Constituição, que veio a se concretizar em 1988.
O período da redemocratização veio seguido de políticas neoliberais que afetaram fortemente a educação pública, inclusive com um crescimento exponencial das universidades particulares e dos grandes conglomerados educacionais. Tudo isso representou grandes desafios para a entidade que estava em processo de reconsolidação.
Para Maria Paula, “essa geração que viveu a transição política do processo da abertura, de uma luta pelas liberdades democráticas, é pouco valorizada, tem poucos estudos sobre ela. Para mim é uma experiência fundamental, inclusive para o aprendizado democrático da população”.
Os anos dos governos chamados neodesenvolvimentistas, de Lula e Dilma, foram essenciais para o fortalecimento da UNE neste novo período. Foram tempos de grandes investimentos na educação, com ampliação de vagas nas universidades, política de cotas, assistência estudantil e implementação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) para o ingresso nas Instituições.
Porém, desde 2016, com a retirada de Dilma da presidência da República, a educação e, consequentemente a UNE, sofrem com ataques. Mesmo assim, os congressos nacionais que ocorrem a cada dois anos, imprimem e fortalecem a identidade de mobilização da UNE.
Para o presidente Iago Montalvão, “os estudantes são peça fundamental na resistência para este momento que nós estamos vivendo. Não à toa as maiores mobilizações que aconteceram contra este governo foram no ‘Tsunami da Educação’, que teve grande maioria de estudantes e jovens”.
“Temos conseguido uma capacidade de mobilização para imprimir inclusive derrotas ao governo Bolsonaro como o ‘#AdiaENEM’ e como a aprovação do Fundeb. Então temos que construir lutas para que nenhum estudante fique para trás neste momento de pandemia”, complementa a vice-presidente
“A UNE teve um papel sempre muito importante de criar unidades, frentes amplas. A UNE consegue dialogar com vários setores e unificar estes setores. Ser uma ponte entre várias organizações. E eu acho que por isso ela é importante também para construir essas lutas amplas, em defesa dos direitos, contra o neoliberalismo, por soberania, pela vida, que é o mais importante neste momento”, explica Montalvão.
A UNE e a Cultura
O livro “Memórias Estudantis” é um trabalho coletivo que contou com a contribuição também de Angelica Muller e Carla Siqueira e dedica boa parte de suas páginas para tratar das ações culturais construídas pela UNE.
A historiadora Maria Paula Araújo considera a produção cultural da entidade nos anos de 1960 “fascinante, riquíssima”. Ela explica que os estudantes, por meio da UNE, foram sujeitos de um um cenário efervescente de produção de teatro, música e cinema.
Segundo Araújo, havia um projeto “nacional-popular” para a criação cultural. “Era uma cultura que se pensava, que se desejava nacional, que expressasse o país e que ao mesmo tempo tivesse um projeto popular. Era um campo em que as pessoas debatiam o que era cultura, o que era nacional, o que era popular e o que era o desenvolvimento.”
Em 2018, a entidade reformulou a proposta da UNE Volante e novamente se lançou pelo país com o debate em torno da mobilização do movimento estudantil. Junto dos debates, a atual diretora de cultura Rosa Amorim conta que a UNE Volante também pensou ações e processos culturais.
“Em 2018 a gente resgatou essa experiência da UNE Volante e rodou o Brasil. E, para além de rodar essas universidades com o debate da política, a gente conseguiu construir um espetáculo dialogando também com a conjuntura que a gente estava vivendo. A gente fez um espetáculo que contou com a participação de João das Neves no processo de construção dessa experimentação cênica, que a gente deu o nome de ‘Parecer da Democracia’”, relata Amorim.
“Para nós foi uma homenagem ao CPC de 1962, mas, sobretudo, conseguimos acertar esteticamente na criatividade”, complementa.
João das Neves, assim como Augusto Boal, Vianinha, Gilberto Gil, Nara Leão, João do Vale e tantos outros artistas, músicos, atores, contribuíram neste processo de desenvolvimento da cultura como uma forma de diálogo e educação popular.
Atualmente a UNE constrói o Centro Universitário de Cultura e Arte, que possui núcleos de atuação em universidades e que, nacionalmente, a cada dois anos, realiza a Bienal de Arte e Cultura da UNE, que é o maior evento latino-americano de arte estudantil.
“Hoje a gente não vai conseguir conquistar mentes e corações, quebrar a nossa bolha, se a gente não conseguir desenvolver uma política criativa de comunicação com o povo”, finaliza a diretora de cultura