Unidade para reconstruir o Brasil: resposta programática ao golpe e aos retrocessos
O cenário de desmonte do Estado, do trabalho e da nação imposto pelo governo ilegítimo que emergiu do golpe em 2016 é devastador. Por isso, algumas das principais forças partidárias da esquerda brasileira vêm empreendendo esforços para construir uma plataforma comum de luta, expressa no manifesto Unidade para reconstruir o Brasil.
O documento, elaborado por importantes fundações, foi apresentado e debatido na noite desta terça-feira (20), no Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé, em São Paulo. Márcio Pochmann, presidente da Fundação Perseu Abramo; Renato Rabelo, presidente da Fundação Mauricio Grabois; Francisvaldo Mendes, presidente da Fundação Lauro Campos; e Henrique Matthiesen, representante da Fundação Leonel Brizola – Alberto Pasqualini tiveram a oportunidade de explicar a iniciativa.
“O documento que estamos discutindo parte das dificuldades enfrentadas pelos brasileiros.É fruto do golpe e da decadência que o golpe originou. Esse foi o diagnóstico que nos colocou para pensar o manifesto, que é uma obra incompleta, em construção”, explica Márcio Pochmann. A ideia, segundo o economista, não é determinar ou refletir a posição estrita dos partidos em questão (PT, PCdoB, Psol e PDT), pois cada um tem absoluta autonomia e soberania para incorporar os elementos do manifesto em seu programa da forma que parecer melhor. “Trata-se de um documento de convergência, para que possamos ter uma linha de raciocínio que ofereça uma expectativa de futuro para além da emergência e do curto prazo”, assinala.
Pochmann elenca três pontos que acionam o alarme da luta política no país: o gravíssimo problema econômico trazido pelo capitalismo contemporâneo, o esvaziamento da soberania nacional e a situação das políticas sociais. “São problemas que se enfrentam com a política. Por isso, defendemos a realização de eleições livres e soberanas em 2018, ao contrário do espírito demonstrado pela oposição derrotada em 2014, que não aceitou o resultado”.
A preocupação com um possível abandono do processo eleitoral programado para outubro é um dos pontos fundantes do manifesto. “Os que estão no poder hoje, aceitariam, em 2018, um resultado nas urnas contrário aos seus interesses? A pergunta cabe porque não aceitaram em 2014. Quem garante que aceitarão hoje?”, indaga Pochamnn.
Por isso, o urgente restabelecimento da democracia deve ser uma bandeira primordial da esquerda, de acordo com o manifesto. “Hoje está difícil emplacar mudanças dentro da própria ordem. Sem democracia, não conseguiremos interromper o processo do golpe, que segue em curso. Mas democracia também precisa de projeto e é isso que estamos buscando construir”.
Minimizando diferenças de estratégias partidárias, inclusive na escolha de candidatos, o economista enfatiza que, independente das pessoas, a ideia do manifesto é oferecer um programa com começo, meio e fim. “Discussão entre os candidatos é importante, mas insuficiente. A gravidade do momento que o país atravessa exige uma construção mais ampla”.
“Do ponto de vista econômico, precisamos cuidar urgentemente da recuperação da base produtiva”, aponta Pochamnn. “Os números não sustentam com firmeza a propagandeada recuperação do PIB. A indústria que estamos concebendo hoje é da mesma dimensão da indústria da década de 1910, para se ter ideia”. Em sua opinião, poucos países no mundo tem tantas saídas econômicas e sociais quanto o Brasil. O problema está na vontade política. E só a unidade pode colocar a esquerda de volta à disputa.
Colônia, não
Para Renato Rabelo, o manifesto é um ponto de partida para uma questão comumente presente nos diagnósticos e análises, mas dificilmente encontrada na prática: a unidade. “Antes não tínhamos um leito comum para o diálogo entre as forças de esquerda. Unidade para reconstruir o Brasil consiste em estabelecer esse diálogo”.
Assim como Pochmann, o presidente da Fundação Mauricio Grabois ressalta que se trata de uma obra coletiva e que sua proposta não é ser uma cartilha definitiva, mas um ponto de partida. “A premissa que temos é forjar um projeto desenvolvimentista que erga novas bases para reconstruir o país”, explica. “Para isso”, argumenta o baiano, “precisamos compreender que este governo, fruto de um golpe, é um governo cuja ordem implementada se atrela a um duplo sentido hegemonista dominante: ele se subordina integralmente ao neoliberalismo e atrela-se ao domínio neocolonial imperialista, sobretudo estadunidense”.
A partir do quadro de absoluto desalento e falta de perspectivas por parte da sociedade brasileira, Rabelo acredita que há uma encruzilhada à frente, que determinará o rumo da história: “Ou o país se reencontra com a via da democracia, da soberania e do progresso social, ou nos submetemos à ordem atual, imposta contra a nação e o povo, por esse consórcio conservador, ultraliberal e vende-pátria, associados ao hegemonismo imperialista”. A luta proposta pelo manifesto, avalia Rabelo, é dar subsídio para esse enfrentamento.
Erigida como outra importante bandeira do manifesto, Henrique Matthiesen salienta que soberania nacional soa como um palavrão, uma afronta, um impropério para a elite brasileira. “Ela nunca defendeu a soberania e sequer compreende o que ela significa, porque ela nunca se compreendeu brasileira. Ela prefere se submeter aos interesses internacionais”, critica. “Defender a soberania nacional é revogar dezenas de decisões deste governo Temer. Precisamos recuperar o patrimônio do povo brasileiro”.
O governo de Michel Temer, segundo o representante da Fundação Leonel Brizola – Alberto Pasqualini, é a síntese da luta de classes no Brasil. “A elite nunca aceitou Getúlio Vargas, mas nunca conseguiu derrotar o seu legado. Fernando Henrique Cardoso, nas eleições, dizia que iria acabar com a era Vargas, mas não foi capaz de ousar”, recorda. “O que vemos com este governo atual é a destruição do legado de Vargas: uma reforma trabalhista que nos atira de volta à escravidão; o ataque à Previdência para detonar a aposentadoria do brasileiro; e a soberania nacional na mira de fogo, o que se expressa de forma mais evidente na entrega da Petrobras”.
De acordo com Matthiesen, o quadro de destruição e entrega das empresas nacionais não revelam apenas a mesquinharia da elite brasileira, mas também sua subserviência. “Temos que entender que nossa elite, nossa classe dominante, tem uma peculiaridade: ela é uma elite não-nativa. A elite alemã defende os interesses alemães, a elite estadunidense defende os interesses estadunidenses e por aí vai. Aqui, nossa elite sofre da síndrome de vira-lata e prefere servir as potências estrangeiras”.
O manifesto das fundações sinaliza para um amadurecimento da esquerda brasileira, na visão de Matthiesen. “Estamos buscando um mínimo de convergência para que, qualquer um dos candidatos que venha a lograr êxito nas eleições, possamos trabalhar sobre as bases de um programa em comum”, sublinha. “Como fundações, temos a responsabilidade de levar a formação política e o debate profundo para dentro dos partidos. E é o que precisamos fazer com este manifesto”.
É papel das fundações pensar como construir uma outra forma de fazer política para construir o país que queremos. A reflexão é de Francisvaldo Mendes, da Fundação Lauro Campos. “Há, em disputa, a hegemonia sobre determinadas formas de fazer política. A forma de Lula fazer política não foi aceita pela elite. Dilma pagou o preço e a elite fez o que fez para impor, novamente, a sua forma de fazer política, e está em busca dessa hegemonia”, avalia. “A burguesia, aliada aos EUA, faz política entregando riquezas e colocando o país como subalterno. Os EUA, no entanto, não parecem tão preocupados com isso, mas sim em salvar a sua própria economia”.
Por isso, mesmo com as divergências naturais entre os partidos, Mendes considera valiosa a oportunidade de uma discussão fraterna, entre as forças da esquerda, sobre que tipo de desenvolvimento será oferecido ao país. “O debate diz respeito ao desenvolvimento centrado sobre a matriz energética do petróleo, passando pela questão da energia renovável. O desafio de pensar essa equação está colocado”.
Além disso, o psolista também considera urgente discutir os mecanismos de poder vigentes no país. Hoje, argumenta Mendes, eles são muito limitados, restritos aos governos e a setores do Judiciário. “A política vem sendo ditada por decisões monocráticas de juizes e desembargadores”, provoca. “Para avançar nos mecanismos de poder, precisamos de mais plebiscitos e referendos. Se disserem que isso é coisa da Venezuela, como gostam de fazer, basta lembrá-los que também é assim na Califórnia. As pessoas precisam participar pra valer”.
Sem mídia democrática não há democracia
A democratização dos meios de comunicação não está ausente do projeto discutido no manifesto. Dentre as reformas estruturais consideradas fundamentais para o país, a reforma dos meios de comunicação é tida como unânime para romper a hegemonia do pensamento único que tem feito a direita nadar de braçada na opinião pública. “O nível cultural do Brasil é determinado, em boa parte, pela mídia. A classe média alta até tem opinião, mas uma grande massa da população fica alheia aos debates e privada do acesso à informação”, afirma Mendes – vale lembrar que, no Brasil, pouco mais de seis famílias dominam os grandes meios de comunicação, vetando qualquer possibilidade de diversidade e pluralidade de opiniões e ideias. “Enfrentar o poder da mídia, através da reforma dos meios de comunicação, é fundamental para o país. Precisamos aplicar a Constituição”.
Em sintonia com os demais presentes, Mendes ressalta que, ainda que clame pela realização e reconheça a importância da disputa eleitoral em 2018, a tarefa da construção do manifesto vai muito além das eleições. “O desafio é pensar o novo. Não estamos discutindo eleição ou quem vai sair candidato. Estamos preocupados em discutir como enfrentar, juntos, o processo de destruição ao qual o país está submetido”.
Compondo a mesa de discussão, a jornalista Maria Inês Nassif considera o manifesto Unidade para reconstruir o Brasil uma das poucas boas novidades que surgiram no período após o golpe. “Pode ser uma peça mágica para uma unidade que requer urgência”, opina. “O momento é de sobrevivência não apenas da esquerda, mas também da democracia”.
Por sua vez, Carina Vitral, presidenta da União da Juventude Socialista (UJS), defendeu que o debate em torno do manifesto mostra como as fundações são importantes para o partido. “Elas têm a tarefa de formular, refletir e promover o debate para além do curto prazo com o qual os partidos, muitas vezes, trabalham”, diz. “Sou mulher e jovem e, como milhões que estão na mesma posição que eu, queremos participar da construção e da luta por este projeto que nos ajude a superar o momento de graves dificuldades que o país atravessa”.