Urgência da anistia aprovada: Câmara apequena a democracia

Por José Geraldo de Santana Oliveira*

No capítulo I do livro Numa e a Ninfa, publicado em 1915, Lima Barreto, com sua refinada ironia, ao patentear sua indignação e furor pela letargia e falta de decoro que marcavam a Câmara Federal de então, emprestou ao fictício jornal O Intransigente a seguinte notícia: “Ontem, na Câmara, naquele indecente valhacouto de caixeiros de oligarcas abandalhados, houve novidade”.

Segundo os dicionários o petardo de Lima Barreto, em linguagem sem rebuscamento, dentre outros, significa: naquele imoral refúgio (esconderijo) de malfeitores, serviçais de desregrados (desordeiros) detentores do poder político e econômico.

Passados cento e dez anos da publicação do livro Numa e a Ninfa, se Lima Barreto aqui estivesse, o que diria, por meio do fictício jornal O Intransigente sobre o que aconteceu na Câmara Federal, no dia 17 de setembro de 2025, quando foi aprovada por 311 a 163 votos, com 7 abstenções, a urgência do projeto de lei (PL) 2162/23, que visa a conceder anistia ampla, geral e irrestrita a Jair Bolsonaro e aos demais condenados pelo STF, na ação penal 2668, por organização criminosa, tentativa de golpe de estado e de abolição do Estado Democrático de Direito, dano qualificado e deterioração do patrimônio tombado.

A urgência aprovada autoriza a supressão de discussões nas comissões, e, consequentemente, sua votação direta no plenário, segundo afirma a Agência Câmara de Notícias, em destaque do dia 17 de setembro, às 22h38 minutos.

Por certo, O Intransigente não pouparia adjetivos para, tal como se sentem os que não prescindem da incolumidade da ordem democrática, demonstrar sua indignação e irrefutável conclusão de que a Câmara Federal se apequenou a patamar sem paradigma na história recente, ao menos no período efetivamente democrático. Se se apequenou tanto, foi no já sepultado em definitivo regime militar, que infelicitou o Brasil de 1964 a 1985.

A simples aprovação de urgência, para o famigerado PL, basta a demonstrar que, para os 311 deputados/as que a acolheram, o Estado Democrático de Direito pouco ou nada vale, podendo ser destruído sem consequência alguma. O que importa é a garantia de salvo-conduto absoluto, passado, presente e futuro, àqueles que tudo fizeram para enterrar de vez a ordem democrática; e, induvidosamente, voltarão a fazê-lo, se o receberem.

Os apoiadores da citada urgência, mais uma vez, demonstram que estão de costas para o Brasil e seus anseios e necessidades. Só têm olhos os abandalhados, como afirmara Lima Barreto, em 1915; não apenas retratando o presente, mas, talvez, vaticinando o que aconteceria 110 anos depois. Ou seja, o agora!

A esse PL e aos espúrios propósitos, calham bem os versos abaixo, retirados de a “A Fábula das Abelhas”, de Bernard Mandeville, publicado em 1714- tradução livre-, com as diferenças de tempo, lugar, espaço e objetivos. Bem assim, a alteração dos últimos versos, pois o que se pretende com o PL, nem por ironia, como na fábula, é para o bem da nação; mas, tão somente, para Bolsonaro e comparsas.

“E a virtude, que com a politiquice
Aprendera bastante malandrice,
Tomara-se, pela feliz influência,
Amiga do vício; por consequência,
O pior elemento em toda a multidão
Realizava algo para o bem da nação”.
Triste Brasil, se essa é a virtude da Câmara Federal!

*José Geraldo de Santana Oliveira é consultor jurídico da Contee

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