Vacinas: o governo segue em ziguezague eterno

Ao anunciarem plano de imunização contra a Covid, Bolsonaro e Pazuello vestem máscara de conciliação e corrigem distorções mais graves. Mas proposta ainda é vaga, não tem data de início e é dúbia sobre a vacina do Butantan

MAR DE TRANQUILIDADE

“Para que essa ansiedade, essa angústia?“. O ministro da saúde, Eduardo Pazuello, não entende por que gestores locais e a população em geral andam aflitos aguardando uma vacina. Lançou essa pergunta ontem, no evento em que o governo finalmente lançou o plano oficial de imunização contra a covid-19, e completou: “Não se preocupem com a logística. A logística é simples. Apesar de o nosso país ser deste tamanho, temos estrutura, temos companhias aéreas, Força Aérea Brasileira, temos toda a estrutura já planejada e pronta”. Como se problemas logísticos não tivessem marcado toda a resposta brasileira à pandemia…

Durante o evento, de fato a tranquilidade parece ter reinado: “Foi um péssimo exemplo para a população. Um evento presencial, que não precisava, com a maior parte dos representantes do governo sem máscara, cantando aglomerados, sem espaçamento, como se fosse ‘vida normal’. Quase dava para ver as gotículas contaminadas voando por ali”, resume Natalia Pasternak, do Instituto Questão de Ciência, no Estadão. Já a deputada federal Erika Kokay (PT-DF) bateu na cretina declaração do ministro: “Pazuello, ‘angústia’ é ver o mundo se imunizando e o Brasil não ter sequer um plano nacional de vacinação estruturado. ‘Angústia’ é não ter vacina, algodão, seringa. ‘Angústia’ é não ter presidente e ministro da saúde na pior pandemia em um século“.

MAIS GENTE INCLUÍDA

Pelo menos agora existe um plano oficial (veja o documento), que aliás é melhor do que o esperado. Ainda não há previsão de data de início. De boca, Pazuello disse ontem que a vacinação poderia começar em fevereiro –  só que não há segurança alguma nesse palpite.

Mas as críticas de especialistas sobre a definição de grupos prioritários divulgada anteriormente foram acatadas. Passaram a ser incluídos todos os trabalhadores da educação (e não apenas professores), populações quilombolas e ribeirinhas, pessoas em situação de rua, pessoas com deficiência severa, trabalhadores de transportes coletivos, transportadores rodoviários de carga e população carcerária. Eles se somam às outras parcelas da população já beneficiadas antes: idosos, trabalhadores da saúde, indígenas, pessoas com comorbidades e profissionais de segurança e salvamento.

Para todos esses grupos, a previsão é de terminar a imunização em quatro meses. Um detalhe problemático, ressaltado na matéria da Folha, é que o governo não faz nenhuma estimativa de quantas pessoas estão incluídas nesse bolo, então também não dá para saber quantas serão as doses necessárias. Simplesmente não foi feito um cronograma completo com as entregas para esses primeiros quatro meses. Acrescentamos que quase todas as vacinas em análise são administradas em duas doses com um tempo certinho entre as duas, então é preciso já ter as duas doses garantidas quando se começa a aplicar a primeira.

AINDA PERGUNTAS SEM RESPOSTA

Para vários especialistas consultados pela imprensa ontem, um dos maiores alívios é que a CoronaVac começou a aparecer como certa (desde que com o aval da Anvisa, claro). “Todas as vacinas produzidas no Brasil – ou pelo Butantan, pela Fiocruz ou qualquer indústria – terão prioridade do SUS, e isso está pacificado”, declarou Pazuello. É verdade que, tempos atrás, o ministro já havia se referido à CoronaVac como a ‘vacina do Brasil’, mas na época houve revolta entre bolsonaristas e o presidente o fez voltar atrás. Dessa vez, Bolsonaro estava ao seu lado, pianinho. Um dia depois de dizer na TV que não se vacinaria e de sugerir fortemente que os imunizantes podem ser perigosos, abraçou o Zé Gotinha e moderou o tom com os governadores, dizendo que há “união para buscar solução de algo que nos aflige há meses”. “Se algum de nós extrapolou ou até exagerou, foi no afã de buscar solução“, afirmou ele.

“Vejo a grande importância de o governo decididamente assumir que vai comprar a vacina do Butantan. Com a presença dos governadores, independente dos partidos, parece ter havido uma união importantíssima para que a campanha de vacinação seja exitosa e o próprio discurso do presidente amenizou as críticas à vacina. Esperamos que esse seja o discurso daqui pra frente”, diz no Estadão a epidemiologista Carla Domingues, ex-coordenadora do Programa Nacional de Imunizações.

Porém, no plano publicado ontem a CoronaVac não aparece assim com tanto destaque. O governo mudou a previsão de doses que estariam disponíveis, aumentando-a: no documento preliminar anterior, eram 300 milhões, agora são 350 milhões. Mas a mudança não foi por conta da inclusão da CoronaVac; as doses oferecidas pelo Butantan continuam não sendo consideradas.

O Ministério só dá como certas as doses acordadas com Oxford/AstraZeneca (100,4 milhões já encomendadas e outras 110 milhões cuja produção nacional está prevista – mas não garantida realmente – para o segundo semestre de 2021) e com a Covax Facility (42,5 milhões). Tudo dando certo, isso dá 252,9 milhões de doses no total. As outras 100 milhões previstas viriam da Pfizer (70 milhões) e da Janssen (32 milhões), sendo que a última não tem resultados de fase 3 e só prevê divulgá-los em janeiro. Essas duas empresas ainda não têm acordos com o governo, apenas memorandos de entendimento que ainda podem ser alterados. Nesse mesmo balaio é que aparece o Instituto Butantan, junto com a Bharat Biotech, a Moderna e o Instituto Gamaleya, mas todos sem um número de doses definido.

A CoronaVac também não aparece no capítulo sobre a logística de distribuição. Há apenas os esquemas previstos para as primeiras 104 milhões de doses da vacina de Oxford/AstraZeneca e de dois milhões de doses da Pfizer. Para esta última, o governo parece confiar apenas nas caixas de gelo seco oferecidas pela empresa para o transporte. Nesse caso, as doses precisam ser consumidas em no máximo 30 dias.

Falta bater o martelo sobre essa questão. O jornalista da GloboNews Gerson Camarotti divulgou ontem que o Butantan aguarda a chegada de uma carta em que o “Ministério da Saúde manifestará a intenção em caráter irrevogável e irretratável de compra da vacina CoronaVac”. A informação é de uma fonte que teria participado da negociação. Segundo Camarotti, um assessor de Pazuello, Eduardo Cascavel, confirmou ao Butantan a intenção de compra.

Essa também foi a informação passada pelo ministro a governadores, ontem. Mas quem participou dessa reunião saiu divulgando números diferentes. Segundo Wellington Dias (PT-PI), os gestores pressionam o governo para que a quantidade de doses prevista para janeiro seja ampliada de seis para 20 milhões; num total de 46 milhões acordados com o Butantan. Já de acordo com Helder Barbalho (MDB-PA), essas 20 milhões de doses já estão garantidas para janeiro, mas o acordo entre União e instituto agora prevê um total de 45 milhões de doses.

O TERMO

Depois de toda a confusão sobre a necessidade do termo de consentimento assinado por quem vai receber as vacinas, Pazuello disse ontem que ele será exigido, sim, para os imunizantes que tiverem só a autorização emergencial.

CAMPANHA OBRIGATÓRIA

O Supremo começou ontem o julgamento que decidirá se a vacinação contra o coronavírus pode ser obrigatória. Estão em pauta duas ações diretas de inconstitucionalidade movidas pelo PDT e pelo PTB. O relator das ADIs, Ricardo Lewandowski, foi o único a votar até agora. Segundo o ministro, há previsão legal para que o Estado imponha sanções àqueles que se recusam a tomar a vacina. Dá para comparar com as restrições direcionadas a quem não vota, nem justifica a ausência no pleito e, por isso, não pode fazer concurso público, por exemplo. No caso da imunização, as restrições poderiam se dar na seara da circulação, com proibição de quem não se vacinou frequentar certos lugares. E a obrigatoriedade não poderia ser imposta com coerção física.

No seu voto, o ministro destacou a importância da imunização de uma grande parte da população para que a circulação do vírus se reduza, efeito conhecido como imunidade de rebanho. “Por isso, a saúde coletiva não pode ser prejudicada por pessoas que deliberadamente se recusam a ser vacinadas”, destacou.

Lewandowski também interpretou que essas sanções a quem não se vacina podem ser tomadas por estados e municípios, como defende o PDT – o que amplia a derrota de Jair Bolsonaro, caso o entendimento seja seguido pela maioria da Corte. O presidente tem defendido que apenas a União poderia fixar a obrigatoriedade.

Antes do voto do relator, o procurador-geral da República, Augusto Aras, defendeu uma linha parecida, destacando que ninguém pode ser obrigado a ir se vacinar à força, mas que o Estado pode restringir os direitos desses indivíduos, vedando o acesso a programas públicos, por exemplo. O julgamento será retomado agora de manhã.

OUTRA REAÇÃO GRAVE

Agora foi nos Estados Unidos: uma profissional de saúde do Alasca teve uma reação anafilática (uma reação alérgica grave) dez minutos após receber a vacina da Pfizer e está hospitalizada desde a madrugada de quarta-feira. Seu caso foi semelhante ao das duas pessoas que passaram por isso no Reino Unido, mas com a importante diferença de que a mulher não tinha nenhum histórico de alergia.  Outro profissional também teve uma reação preocupante, mas foi medicado no pronto-socorro e melhorou em cerca de uma hora.

Segundo o New York Times, os casos devem aumentar a preocupação com efeitos colaterais das vacinas e é preciso descobrir qual componente está gerando isso. Uma porta-voz da Pfizer, Jerica Pitts, disse que a bula do produto alerta sobre a necessidade de haver tratamento médico  disponível no caso de um evento anafilático raro. “Vamos monitorar de perto todos os relatórios sugestivos de reações alérgicas graves após a vacinação e atualizar o rótulo, se necessário”, afirmou.

Por aqui, a Pfizer protocolou  ontem na Anvisa os resultados da terceira e última fase de testes da vacina. Mas o pedido de registro emergencial ou definitivo ainda não ocorreu.

REFLUXO DE LEITOS, NÃO DE DOENTES

Um terço dos leitos de UTI criados exclusivamente para tratar a covid-19 já foram desativados no SUS. Com isso, o Brasil passou de 10.228 unidades de tratamento intensivo em julho para 6.941 em dezembro. Segundo a Repórter Brasil, que compilou os dados, essa tendência se acentuou a partir de outubro, justamente quando a curva de infecção voltou a subir em vários estados. Agora, com a segunda onda ou repique da pandemia, o fechamento cobra sua conta.

Há situações que chamam atenção pela inércia. Entre julho e dezembro não foi criado nenhum leito no Amapá, estado que segue completamente desassistido nessa seara, com nenhuma UTI pública. Há outras em que se destaca a irresponsabilidade. O Rio de Janeiro viu uma diminuição de 82%. “As 609 vagas fechadas seriam suficientes para cobrir os 259 pacientes com covid que, segundo a Secretaria de Saúde do RJ, esperam por tratamento avançado no estado”, destaca a reportagem. Nesse período, o estado que mais perdeu leitos foi o Pará: foi de 290 para 40, uma redução de 86%. Alagoas, Rio Grande do Norte, Ceará, Piauí e Paraíba fecharam mais de 50% das vagas de UTI para covid.

Ontem, o Brasil registrou o segundo maior número de casos em 24 horas desde o início da pandemia: 68.437. E isso porque os dados de São Paulo não conseguiram ser incluídos no sistema. Também já estamos há dois dias seguidos com mais de 900 mortes causadas pela doença.

NO ATESTADO DE ÓBITO

Um caso no Reino Unido pode abrir as portas para políticas mais duras em relação à poluição do ar em todo o mundo. Depois de uma batalha judicial, ontem uma corte londrina confirmou o diagnóstico de que a morte de uma criança teve como causa a excessiva exposição ao ar poluído. Ella Kissi-Debrah tinha apenas nove anos quando morreu. De 2010 a 2013, ano do óbito, ela deu entrada em hospitais 27 vezes, sempre com problemas respiratórios. A menina vivia no sudeste de Londres – e testes feitos nas redondezas do seu domicílio provaram que os níveis de dióxido de nitrogênio e material particulado estavam bem acima das diretrizes da Organização Mundial de Saúde.

Isso não aconteceu por acaso, mas depois de pressão. Quando Ella morreu, sua família criou uma fundação em seu nome para angariar fundos para crianças que sofrem de asma. A partir desse trabalho, Rosamund Kissi-Debrah – mãe da menina – começou a se aprofundar e entender que a poluição poderia ter agravado os problemas respiratórios de Ella e disparado suas crises. A pedido da família, a advogada Jocelyn Cockburn se uniu a um médico especialista, Stephan Holgate, para investigar o caso. Seguiu-se um processo que chegou a ouvir até o atual prefeito de Londres, Sadiq Khan – na época da morte de Ella, era Boris Johnson quem estava no comando da capital britânica. Na corte, foram apresentadas várias provas, enfim aceitas ontem.

Segundo especialistas ouvidos pelo site Health Policy Watch, essa é provavelmente a primeira vez que um documento vincula a poluição a uma morte concreta no mundo. No Guardian, Sandra Laville, repórter especializada em meio ambiente, destaca a diferença: “Até agora, as estatísticas das mortes por poluição do ar foram apresentadas em preto e branco – números em uma página que estimam entre 28 mil e 36 mil óbitos como resultado dos poluentes, todos os anos, no Reino Unido. Mas a vida e a morte de Ella Kissi-Debrah são coloridas: desde as fotos dela usando seu collant de ginástica, até a imagem de sua mãe e irmãos segurando sua fotografia, enquanto lutavam pela verdade. Como disse o professor Stephen Holgate ao legista, por trás das estatísticas frequentemente citadas estão indivíduos cujas vidas foram interrompidas. ‘Cada número que entra nesses estudos é uma única pessoa morrendo’, disse ele”. No mundo, se estima que sete milhões morram todos os anos por conta da poluição atmosférica. A decisão foi comemorada pela diretora de meio ambiente da OMS, Maria Neira.

Por aqui, 16 entidades médicas lançaram na última terça-feira um manifesto pedindo pela manutenção do cronograma do Programa de Controle da Poluição do Ar por Veículos Automotores. Elas denunciam que a Associação Nacional dos Fabricantes (Anfavea) tem feito lobby para adiar os prazos, usando como justificativa… a pandemia.

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