Valdete Souto Severo: A quem interessa mudar a Constituição?
Por Marcos Aurélio Ruy
Não contentes com as incontáveis emendas constitucionais e os inúmeros desrespeitos ao texto constitucional durante toda a existência da Constituição Federal de 1988, agora os setores conservadores defendem abertamente a feitura de uma outra Constituição.
Sem que a atual tenha sequer tido tempo de ser compreendida e incorporada nos corações e mentes dos brasileiros e brasileiras, argumenta a juíza do Trabalho e presidenta da Associação Juízes para a Democracia (AJD), Valdete Souto Severo em entrevista exclusiva à Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB).
A atual Constituição foi promulgada em 5 de outubro de 1988, seguindo o processo de construção da democracia após 21 anos de ditadura fascista. Valdete acredita que “o Brasil não precisa de uma nova Constituição e é muito perigoso que esse discurso apareça justamente num momento em que vivemos uma escalada autoritária”.
Para ela, “as constituições não são alteráveis assim a cada 30 anos, pelo menos não em nenhum país sério. Não tivemos nem tempo histórico para compreender o que é a Constituição, o projeto que ela implica e como efetivá-la”.
Para a juíza gaúcha é necessário resgatar a Constituição de 1988 e para isso é necessário criar “uma cultura de honrar a Constituição, de honrar essa ordem social inclusiva e isso passa por apostar na educação. Educação não só formal dentro das escolas, mas educação em todos os níveis”.
Valdete Souto Severo também é professora universitária e escritora.
Confira a entrevista na íntegra:
Os conservadores defendem a proposta de uma nova Constituição. O Brasil precisa de uma nova Constituição?
Valdete Souto Severo: O Brasil não precisa de uma nova Constituição e é muito perigoso que esse discurso apareça justamente num momento em que vivemos uma escalada autoritária. Nada no nosso ambiente institucional hoje autoriza a concluir que um processo Constituinte seria realmente feito privilegiando as forças sociais.
Se em 1988, 1987, a partir de 1985 com tudo aquilo que tínhamos como um processo de mudança e de espaço de movimento social, a Constituição de 1988 já deixou a desejar em vários aspectos, hoje, sinceramente, eu não tenho dúvida de que apostar num processo Constituinte seria apostar no retrocesso.
Na verdade, precisamos fazer valer a ordem constitucional que é muito jovem. As constituições não são alteráveis assim a cada 30 anos, pelo menos não em nenhum país sério. Não tivemos nem tempo histórico para compreender o que é a Constituição, o projeto que ela implica e como efetivá-la.
É preciso perguntar a quem interessa mudar a Constituição agora? Certamente para a classe trabalhadora não interessa nem um pouco.
Desde que foi promulgada em 1988, a Constituição tem sido duramente atacada por amplos setores da elite mais conservadora. Isso mostra a sua importância para o país e para a classe trabalhadora?
VSS: Sem dúvida. Mostra sim a importância e é aí que está o ponto interessante, mesmo não tendo avançado em alguns aspectos, como por exemplo, acabar com esse papel autoritário das Forças Armadas, que acabou se mantendo no texto constitucional de 1988, entre outras questões que também poderíamos ter avançado mais, ainda assim a Constituição, na real, tem um avanço importante em relação ao tempo pretérito, ao que existia antes dela, mas sobretudo em relação ao que se quer como sociedade. Então ela incomoda. Não tenho dúvida nenhuma, ela incomoda por aquilo que ela tem de bom.
Por que?
VSS: Na verdade, a Constituição é um projeto de sociedade que em larga medida não saiu do papel ainda. E isso não é um problema em si, porque, como eu disse, faz pouco tempo que nós temos essa ordem democrática. Em termos históricos, 32 anos é muito pouco tempo. Mas, sem dúvida, que é um processo interessante, diferente, com potencial transformador.
Quando a Constituição diz, por exemplo, que a propriedade privada só se justifica se atender uma finalidade social ou quando diz no artigo 173, que a ordem econômica deve ser baseada nos ditames da justiça social, veja, aí tem um potencial de avanço muito grande, que depende, na prática, que prestigiem e façam valer a ordem constitucional. Mas sem dúvida, ela incomoda por isso.
Quais os pontos fortes e os fracos da Constituição?
VSS: Entre os pontos fracos está justamente essa função das Forças Armadas, que não foi alterada, além do fato de que a Constituição deixa de avançar em alguns aspectos entre os quais poderia ter avançado mais e a ausência, em problema de eficácia, de ruptura com o período anterior da nossa história.
Entre os aspectos positivos está o fato de os direitos sociais estarem no título dos Direitos e Garantias Fundamentais, que é um avanço muito importante. E a questão dos pilares da sociedade capitalista terem sido atrelados a uma lógica solidária ou solidarista que é tanto a função social da propriedade privada quanto da própria política econômica estar subordinada ao sistema da justiça social. E também os direitos sociais, a família, moradia, educação terem, digamos, foro privilegiado em relação aos outros direitos.
O que percebemos é que nada disso é suficiente no texto se não houver uma vontade de Constituição, mas aí já não é um problema do texto.
Atacar a Constituição, então, significa atacar o Sistema Único de Saúde (SUS), os direitos sociais que avançaram, os direitos trabalhistas e os individuais?
VSS: O SUS é outro grande avanço. O Sistema Único de Saúde e de Seguridade Social como temos na Constituição é inclusive elogiado em praticamente todo o mundo Ocidental por ser um avanço importante, mas que já começou a ser descaracterizado na década de 1990. Então sem dúvida atacar a Constituição de 1988 é atacar o SUS.
Na verdade, o que já se fez com a Constituição a partir das várias emendas constitucionais que alteraram o sistema de seguridade é um pouco trair o objetivo da ordem constitucional, quer dizer, quando criamos aquele sistema de Seguridade Social, estamos fazendo um pacto de solidariedade, inclusive, intergeracional, que nunca foi respeitado e que precisa ser respeitado até para podermos dizer que há uma ordem constitucional vigente.
Na promulgação da Constituição em 5 de outubro de 1988, o presidente da Assembleia Constituinte, Ulysses Guimarães (1916-1992) disse que “a persistência da Constituição é a sobrevivência da democracia”. Ele tem razão?
VSS: Essa afirmação do deputado Ulysses Guimarães é um pouco utópica e mais retórica do que real. A manutenção da Constituição por si só não vai garantir a democracia. Os 32 anos, ou um pouco mais se consideramos o fim da ditadura em 1985, que nos separam da ordem da ditadura civil-empresarial-militar é clara demonstração disso.
Não adianta ter uma Constituição como a de 1988, não é disso que se faz, que se extrai uma democracia. É um primeiro passo, digamos assim. Porque se fazermos valer aquela ordem que está na Constituição, estaremos caminhando para uma realidade democrática. Ainda assim para uma realidade de democracia liberal e, portanto, limitada. Portanto, insuficiente e, perceba, mesmo a ordem constitucional de 1988 permitiu que a desigualdade e a miséria seguissem existindo no Brasil.
Então, como retórica ela é fundamental porque está nos objetivos da República erradicar a miséria, mas ela é insuficiente se não existirem práticas sociais que realmente determinem distribuição de riqueza, se não avançarmos, por exemplo, para taxar as grandes fortunas, se não for feita a reforma agrária, ou seja, existem várias alterações que não dependem do texto constitucional, que não foram feitas neste tempo histórico que nos separa de 1988 e que são necessárias para começarmos a falar em democracia no nosso país.
Por que é importante defender a Constituição neste momento?
VSS: Defender a Constituição neste momento é quase um ato revolucionário. Defendemos a Constituição e recebemos a pecha de comunista ou passamos a ser monitorados ou somos processados disciplinarmente. Isso significa que estamos num momento em que falar de solidariedade já é um ato de desafio ao que está instaurado como lógica das relações sociais no nosso país. Por isso que é tão importante defender a Constituição.
É necessário reconhecer que ela tem limites, mas entender que a defesa da Constituição não é a defesa do texto constitucional, é sim a defesa de uma ordem social que esteja pautada naqueles fundamentos e naqueles objetivos que estão nos primeiros artigos da Constituição de 1988. Por exemplo, defender uma sociedade baseada na dignidade humana e isso é muita coisa se tornarmos uma prática cotidiana o que se apresenta na Constituição como princípio.
Como fazer para levar a Constituição para a da classe trabalhadora e mostrar a sua importância?
VSS: Se efetivamente conseguirmos que as instituições que temos ajam para que a dignidade de todos seja preservada e não somente daquela pequena parcela de incluídos. Então, levar a Constituição à classe trabalhadora, por exemplo, passa por fazer valer todos os incisos do artigo 7º.
A começar pelo inciso 1 que nunca tiramos do papel, onde diz que não pode ter despedida imotivada na relação de emprego no Brasil, que os trabalhadores têm que ser protegidos contra a despedida arbitrária. Isso está lá no texto da Constituição, como também está que quem trabalha em condição de penosidade tem que receber o adicional correspondente. O empregador tem o dever de reduzir os riscos à saúde no ambiente de trabalho, ou seja, todos aqueles incisos do artigo 7º e dos seguintes.
O direito de greve, por exemplo, precisa ser respeitado. Mas o que está acontecendo hoje no nosso país é que os direitos que estão na Constituição são ignorados e não é só através de legislações destrutivas como a chamada reforma trabalhista, mas também através de decisões judiciais que acabam, por exemplo, neutralizando e, com isso, eliminando o direito de greve, que é um direito essencial para que possamos começar a falar em realidade democrática.
Nessa visão, como resgatar os princípios fundamentais da Carta Magna em favor dos que mais necessitam?
VSS: O resgate dos princípios, para mim, é muito mais uma questão cultural do que legislativa ou de disputa política imediata. Depende de criarmos uma cultura de honrar a Constituição, de honrar essa ordem social inclusiva e isso passa por apostar na educação. Educação não só formal dentro das escolas, mas educação em todos os níveis.
Então, a compreensão que temos de família e do papel da família na educação, a forma como começamos a inserir a criança no mundo social e aí, por exemplo, a questão da mídia e desse monte de programação e desenhos que fazem as crianças, antes de começarem a falar, aprenderem a disputar e concorrer. Isso precisa ser mudado porque se não for alterado fica muito difícil que uma ordem constitucional solidária seja efetivamente levada a sério, porque a solidariedade é contrária ao metabolismo da sociedade capitalista.
A sociedade capitalista se baseia na competição, na concorrência. Para alguém se dar bem, outros têm que se dar mal. Isso é uma lógica objetiva do sistema, porque se o sistema nos convida a acumular riquezas e produzir para lucrar acaba tornando todos os bens essenciais para a nossa vida física. Bens que só podem ser adquiridos através do dinheiro, dinheiro que só pode ser obtido através do trabalho. Essa lógica social é objetivamente uma lógica que estimula as pessoas a competirem, a verem o outro como um adversário e não como alguém que partilha o destino conosco. E assim, quanto melhor eu estarei, melhor estará a Terra em que vivemos e isso não é objetivamente tranquilo para uma sociedade capitalista.
Ao contrário, quando a Constituição estabelece a solidariedade intergeracional, a solidariedade com o outro e os direitos sociais como valores fundantes, ela está de alguma forma desafiando esse metabolismo. É por isso que eu digo que um metabolismo como esse não se altera se não houver uma alteração cultural e tem que passar pelas práticas cotidianas, pela forma como o ensino é reproduzido e pela forma como a mídia é produzida e pela forma como as famílias se compreendem e se identificam através das gerações, ou seja, uma mudança profunda.
Por isso, que eu digo e reafirmo como na primeira resposta, não temos nem que pensar em outra Constituição. Precisamos, na verdade, é construir uma racionalidade em que a Constituição possa existir para fora do papel.
Então hoje defender o SUS, a educação pública, a revogação da Emenda Constitucional 95 e a regulação da mídia, é defender a Constituição?
VSS: Exatamente. Mais do que defender o texto da Constituição é defender o projeto social que está contido nesse texto e esses seus exemplos, educação pública, SUS, necessariamente a revogação da EC 95 e a regulação da mídia são centrais para que se crie uma realidade, um modelo de sociedade como está previsto na Constituição. Uma sociedade menos desigual, em que haja distribuição de renda, em que a dignidade humana seja preservada.