Vera Nepomuceno: Uberização do professor. Para onde vamos?

A notícia que nos chega através de mais uma Startup que organiza um Processo Seletivo Simplificado para professores de todas as áreas e disciplinas, com o objetivo de substituir aulas presenciais ou online em qualquer cidade do Brasil

Por Vera Nepomuceno*

Estamos vivenciando a novidade devastadora da uberização do trabalho do professor. Modalidade que se apresenta como solução para a falta destes profissionais nas escolas, mas que na verdade não passam de “fake-theories” numa tentativa de “tapar o sol com a peneira”, visto que a ausência dos docentes nas salas de aula revela a ponta do Iceberg na imensidão de problemas relacionados a esta carreira no Brasil. A notícia que nos chega através de mais uma startup que organiza um Processo Seletivo Simplificado para PROFESSORES de todas as áreas e disciplinas, com o objetivo de substituir aulas presenciais ou online em qualquer cidade do Brasil, com Educação a Distância Invertida (alunos na escola e Professor a distância), pelo meio de um aplicativo que por um sinal sonoro, tal qual o do Uber, chamará o professor para uma ou várias aulas, aponta para um caminho que além de intensificar a desregulamentação do trabalho deste profissional, que não terá acesso a nenhum direito, põem em risco o propósito e objetivo da educação escolar.

Os “fakes-theorists”, ávidos em se apropriarem dos fundos públicos da educação, se esquecem que o professor é o elo mais forte na mediação da aprendizagem dos nossas crianças e jovens. Ignoram o fato de que nos diferenciamos das demais espécies em função do nosso desenvolvimento histórico-cultural e da nossa capacidade de transformar a natureza, o meio e a nós próprios.

Negligenciam que a atividade vital que alicerça o trabalho, a linguagem e a sociabilidade é a aprendizagem. E que mediante ela, exercemos o mais importante traço que nos caracteriza como ser social e que nos humaniza. A educação escolar, filha do Século das Luzes vem nos legando esse patrimônio. Substituir a relação de trabalho do professor e sua aula por um app coloca todas essas conquistas em risco. Sabemos que trabalhar nas escolas do Brasil é um desafio diário. A desvalorização, os baixos salários, a falta de perspectiva de progressão na carreira, de autonomia, de condições de trabalho e a violência são alguns dos problemas que os professores enfrentam cotidianamente. O livro “Trabalho docente sob fogo cruzado” carrega em seu título a figura de linguagem que expressa da melhor forma a rotina destes trabalhadores no Brasil. No entanto, se utilizar desta tragédia para justificar a implantação da uberização na educação, não vai equacionar o problema.

A uberização das relações de trabalho vem trazendo profundas alterações na sociedade contemporânea. O sociólogo Ricardo Antunes, professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, afirma que estamos vivendo em plena era do trabalho no mundo maquinal-digital, marcado pela perda de direitos dos trabalhadores. Cresce assim uma legião de trabalhadores com carga horária intermitente, com menos horas trabalhadas, menos salário e menos direitos, terceirizados, subcontratados e flexibilizados. Como aponta o estudo do Depec (Departamento de Estudos e Pesquisas Econômicas) do Bradesco, mostrando que o número de trabalho intermitente quadruplicou de 2017 para 2019. Passamos de 28 mil trabalhadores com contratos precários para 133 mil. Números que demonstram a forte deterioração do mundo do trabalho, impondo uma realidade mórbida, que se fortalece com o crescente desemprego e com o enfraquecimento das políticas sociais do Estado. Neste self-service pós-moderno encontramos um cardápio variado que vai do chamado “contrato de zero hora”, modalidade vivenciada na Inglaterra, onde Médicos, advogados, trabalhadores domésticos, jardineiros, motoristas, se conectam com uma dada plataforma, quando trabalham recebem, e quando não trabalham, não recebem. Sem o menor vínculo ou proteção social, ou ainda a chamada “uberização” do trabalho, na qual trabalhadores prestam serviços para uma grande empresa, mas que não estabelece nenhuma proteção a esse trabalhador. Estes, uma vez conectados, não podem se quer recusar chamadas sem justificativas, ou simplesmente serão desconectados desta relação. Observamos incrédulos na aurora do século XXI, relações trabalhistas que nos reportam a barbárie vivenciada pelos trabalhadores do século XVIII. Recentemente em Portugal sob a coordenação da professora Rachel Varela, o órgão de classe dos professores (FENPROF) realizou uma pesquisa nacional sobre as condições de vida e trabalho na educação, apresentando dados alarmantes no que tange ao adoecimento destes profissionais naquela terra. Por aqui nada semelhante tem sido pensado.

Precisamos ouvir os professores, valorizá-los e respeitá-los como intelectuais coletivos que a partir das condições necessárias poderão nos ajudar a construir saídas coletivas, sociabilidades alternativas para o quadro que nos encontramos hoje. Para tal precisaremos de professores reais de carne e osso em sala de aula e não virtuais em aplicativos.

*Vera Nepomuceno é professora de História da rede estadual do Rio de Janeiro e da prefeitura de Duque de Caxias. Pesquisadora do grupo interinstitucional Projetos Integrados de Pesquisas sobre Trabalho, História, Educação e Saúde (UERJ, UFF, EPSJV/Fiocruz) – THESE, e do Coletivo de Política e trabalho em Educação. Doutoranda da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), do Programa de Políticas Públicas e Formação Humana (PPFH)

O Dia

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