Os desafios que se impõem

Diretoria Plena da Contee aprovou indicação de pauta de reivindicação mínima, que se constitui, no primeiro passo rumo a esse novo tempo

Por José Geraldo de Santana Oliveira*

Ao longo de anos a fio, o senador romano Marco Pórcio Cato (Catão), encerrou seus discursos impreterivelmente, não importando sobre o que se pronunciava, com a letal sentença “Delenda est Carthago” — Cartago deve ser destruída.

No Brasil, há anos, os representantes do capital e seus acólitos, que incluem alguns ministros do STF e do TST, juízes, advogados, economistas e a grande imprensa, repetem sentença de morte dos direitos trabalhistas, vociferando: a legislação trabalhista tem de ser modernizada; leia-se destruída.

Com esse nada republicano propósito, planejou-se e executou-se o golpe do impeachment, em 2016. Segundo o ministro do STF Luís Roberto Barroso, em artigo publicado pelo jornal Folha de São Paulo, em 6 de fevereiro de 2022, sob o título “A Democracia sob pressão, o que está acontecendo no mundo e no Brasil”, Dilma caiu porque perdeu apoio político, sendo as famigeradas pedaladas fiscais apenas pretexto formal.

No texto, o ministro afirma que o “motivo real” para o impedimento da ex-presidente foi a “perda de sustentação política”. “A justificativa formal [para o impeachment] foram as denominadas ‘pedaladas fiscais’ — violação de normas orçamentárias —, embora o motivo real tenha sido a perda de sustentação política”.

Ele afirmou ainda que o então vice-presidente Michel Temer assumiu o cargo até a conclusão do mandato e procurou “implementar uma agenda liberal, cujo êxito foi abalado por sucessivas acusações de corrupção”.

Foi no cenário pós-golpe que se impuseram a Emenda Constitucional 95/2016, que congelou os investimentos públicos por 20 anos, a Lei 13.429/2017, que rompeu todos os limites e barreiras para a terceirização, e a Lei 13.467/2017, que reescreveu a CLT, transformando-a em consolidação das leis do capital ao modificar mais de uma centena de seus artigos para suprimir e reduzir direitos, esvaziar e estrangular os sindicatos e amordaçar e esvaziar a Justiça do Trabalho.

Passados cinco anos das leis da de/reforma trabalhista, seu rastro de devastação cala fundo no mundo do trabalho, conforme revela a Pnad contínua de julho, agosto e setembro de 2022, como atestam os seguintes dados:

população ocupada (99,3 milhões) foi recorde da série iniciada em 2012;

a força de trabalho (pessoas ocupadas e desocupadas), 108,7 milhões de pessoas;

população subutilizada 20,1%, 23,4 milhões de pessoas;

a população subocupada por insuficiência de horas trabalhadas, 6,2 milhões;

população fora da força de trabalho, 64,7 milhões;

população desalentada, 4,3 milhões;

o número de empregados com carteira de trabalho assinada no setor privado foi de 36,3 milhões;

o número de empregados sem carteira assinada no setor privado (13,2 milhões de pessoas) foi o maior da série histórica, iniciada em 2012;

outro recorde foi o número de empregados no setor público sem carteira assinada, 3,1 milhões;

o número de trabalhadores por conta própria, 25,7 milhões;

taxa de informalidade, 39,4% da população ocupada, ou 39,1 milhões.

Consoante o boletim “De olho nas negociações” N. 16, do Dieese, que contém dados colhidos no Sistema Mediador do Ministério do Trabalho, as negociações salariais pós-reforma trabalhistas, ou seja, de 2018 a 2022, registram números desanimadores quanto à recomposição dos salários, na seguinte ordem:

I          2018, 9,3% das negociações foram abaixo da inflação aferida pelo INPC/IBGE; 15,9%, iguais; e 74,8%, acima;

II         2019, 23,7%, abaixo; 26,5%, iguais; e 49,9%, acima;

III       2020, 27,9%, abaixo; 36,2%, iguais; e 35,9%, acima;

IV       2021, 47,7%, abaixo; 36,1%, iguais; e 15,8%, acima;

V         2022, considerando-se os meses em que se concentram as datas-bases dos profissionais de educação escolar, os reajustes abaixo da inflação foram: fevereiro, 51,9%; março, 46%; abril, 40,8%; e maio 54,5%.

Esse quadro de colossal retrocesso nas negociações coletivas, agravado sobremaneira pela inesperada e intensa crise da pandemia do coronavírus, atingiu em cheio os profissionais da educação escolar, quase sem exceção, em âmbito nacional. Poucas são as convenções coletivas de trabalho, nos anos de 2020, 2021 e 2022, que não encerram significativas perdas salariais por não assegurarem a reposição dos índices acumulados nesse período, totalizando, em muitos casos, percentuais que variam de 3% a 30%.

Para além da acumulação das sistemáticas perdas salariais, os últimos cinco anos foram de total represamento das reivindicações profissionais, com vistas à melhoria de sua condição social, fundamento maior dos direitos trabalhistas, dada à desfavorável correlação de forças em prol do capital. Esse período foi para os sindicatos, por excelência, de resistências com a finalidade precípua de preservarem as conquistas convencionais. Considerável parcela deles não conseguiu manter cláusulas de relevância singular, especialmente a que garantia a assistência sindical (homologação) nos termos de rescisão de contrato.

Como o Brasil respirará novos ares de redemocratização a partir de 1º de janeiro de 2023 e, por conseguinte, de reconstrução de diálogo social idôneo, em todas as dimensões, notadamente nas relações entre capital e trabalho, faz-se imperioso que os próximos períodos negociais, igualmente, sejam alçados a novo patamar, com retomada de bandeiras históricas que se acham adormecidas, pelas razões retroapontadas, e pela conquista de novas garantias, que dignifiquem as condições de trabalho, por demais aviltadas, em especial para os profissionais da educação escolar.

Com o único e bom propósito de incentivar as entidades filiadas à Contee a descortinar esse horizonte que se avizinha e se mostra palpável, sua Diretoria Plena aprovou, em reunião realizada ao dia 25 de novembro corrente, a indicação de pauta de reivindicação mínima, que se constitui, a seu sentir, no primeiro passo rumo a esse novo tempo.

As reivindicações indicadas demandam ampla mobilização unificada, em âmbito nacional, pois que incluem medidas legislativas e convencionais. Dentre essas, algumas que alteram por completo o panorama das negociações coletivas até aqui desenvolvidas, restritas às bases territoriais de representação dos sindicatos e que se acham totalmente superadas pela realidade fática, tanto no ensino básico, já invadido por grupos econômicos com caráter nacional, quanto no ensino superior, há muito completamente dominado pelos oligopólios, que ditam as regras e os limites de todo o processo negocial, em todas as 27 unidades da Federação, fazendo-o, sem exceção, com o vil propósito de rebaixar as garantias convencionais.

Para fazer frente a esse quadro de extraterritorialidade das instituições de ensino, no nível básico e no superior, faz-se urgente e inadiável a busca pela celebração de contratos coletivos com abrangência e validade nacionais, a ser coordenada pela Contee, com a participação efetiva de todos os sindicatos e federações, sem prejuízo das negociações no âmbito das respectivas bases territoriais, que tenham por finalidade a ampliação das regras mínimas estabelecidas nessa nova modalidade de instrumento normativo coletivo.

Sobressaem entre as referidas reivindicações indicadas, tendo como esteio a assertiva de nenhum direito a menos, as seguintes:

I         recomposição das perdas salariais acumuladas nos últimos anos.

Essa reivindicação deve se lastrear em planilhas de cálculos, devida e didaticamente fundamentadas, inclusive com o cotejo entre os índices de correção dos salários e das mensalidades, com a demonstração de quanto do aumento dessas foi efetivamente repassado àqueles, tomando-se como referência o Art. 1º, § 3º , da Lei 9.870/1999, que as regulamenta. Não se pode perder de vista que, sem exceção, a mensalidades são reajustadas em janeiro e os salários, via de regra, entre março e maio, com uma ou outra exceção em fevereiro.

A diferença de meses entre a correção de uns e outros dá às escolas significativo ganho, que jamais foi repassado aos salários, quer de forma direta, quer indireta.

Eis o que determina a realçada lei:

“Art. 1° O valor das anuidades ou das semestralidades escolares do ensino pré-escolar, fundamental, médio e superior, será contratado, nos termos desta Lei, no ato da matrícula ou da sua renovação, entre o estabelecimento de ensino e o aluno, o pai do aluno ou o responsável.

[…]

  • 3°Poderá ser acrescido ao valor total anual de que trata o § 1° montante proporcional à variação de custos a título de pessoal e de custeio, comprovado mediante apresentação de planilha de custo, mesmo quando esta variação resulte da introdução de aprimoramentos no processo didático-pedagógico”.

II      restabelecimento da garantia de que as rescisões de contrato de trabalho sejam assistidas (homologadas) pelos respectivos sindicatos.

Sobreleva-se entre as catastróficas medidas contidas na de/reforma trabalhista (Lei 13.467/2017), a revogação do § 1º do Art. 477 da CLT, que assegurava essa garantia, para os contratos de trabalho com mais de um ano de duração.

Sua supressão trouxe como consequência primeira a desproteção total do/a trabalhador/a em seu momento de maior insegurança e vulnerabilidade, que é o da rescisão de contrato.

Antes dessa nefasta revogação, havia o mínimo de cotejo das rescisões de contrato com os direitos de cada trabalhador/a, com destaque para aptidão ou inaptidão para o trabalho, sendo que essa impede a extinção do contrato enquanto perdurar, estabilidade provisória quando existente, licença médica, verbas rescisórias e outros direitos.

A partir do início da vigência da lei, aos 11 de novembro de 2017, não há mais essa conferência, posto que as rescisões são assinadas fora dos sindicatos e sem a presença de seus representantes. O que, a toda evidência, deixa o/a trabalhador/a à mercê da boa ou má conduta do empregador, prevalecendo em milhares de caso essa última.

Sem prejuízo de sua inclusão em convenções e acordos coletivos, essa reivindicação demanda medida legislativa, por meio de projeto de lei.

III       regulamentação da EaD (educação a distância).

Segundo notícia divulgada pela Radioagência Nacional aos 4 de novembro corrente, com base no Censo da Educação Superior de 2021, no período de 2011 a 2021, a educação a distância cresceu quase 500%, enquanto o presencial diminuiu em 23%. Em 2011, aquele correspondia a 18,4%. Já em 2021, a 63% de todas as matrículas desse nível, totalizando 8,9 milhões, distribuídas em 43.085 cursos de graduação e 17 cursos sequenciais, ofertados por 2.574 IES, das quais 2.261 (87,84%) são privadas e 313 (12,16%) públicas, sendo que as IES privadas concentram 76,9% do total de matrículas, e, as públicas, 23,1%.

O aumento exponencial e descontrolado, sem parâmetros, supervisão e fiscalização do ensino remoto, nas diversas modalidades, em especial a EaD, implicou o desmoronamento das já precárias condições contratuais dos docentes de ensino superior. Hoje, não há sequer base mínima, pois o mesmo docente ministra aulas para turmas remotas, com centenas e até milhares de alunos, com salário igual ao de uma turma presencial, sendo sua imagem e voz multiplicadas e a produção intelectual indevidamente apropriadas, sem nenhuma contraprestação financeira para qualquer uma delas.

Insta destacar também que o trabalho remoto, notadamente o teletrabalho e a própria EaD, já se alastrou como erva daninha pelo ensino básico, quer na forma totalmente fora do ambiente escolar, quer na presencial, com o impropriamente chamado trabalho híbrido, que abarca em única aula alunos presentes fisicamente e outros remotamente.

Daí a necessidade imperiosa e inadiável de regulamentação mínima do ensino remoto, do qual a EaD é espécie, preferencialmente por meio de norma heterônoma (lei), para sua uniformização nacional; ou, no mínimo, por meio de contrato coletivo nacional, com igual uniformização.

Essa regulamentação, necessariamente, tem de estabelecer carga horária semanal mínima, critérios objetivos e onerosos para o uso de imagem, voz e produção intelectual, bem como regras e garantias para o home office (trabalho em casa), que atinge principalmente os/as administrativos/as.

IV       regulamentação da liberdade de ensinar, garantida pelo Art. 206, II, da CF.

A liberdade de aprender e ensinar, que é princípio consagrado no Art. 206, II, da CF, simplesmente tornou-se vazia e sem eficácia nos anos que se sucederam ao golpe do impeachment, com substancial agravamento sob Bolsonaro, que incentiva, apoia e propaga a danosa escola sem partido, já declarada inconstitucional pelo STF, na ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade 5537, de autoria da Contee, contra lei do estado de Alagoas. O mesmo aconteceu com a multiplicação de leis estaduais e locais que proíbem a linguagem neutra, igualmente, declaradas inconstitucionais pelo STF, por meio de medida liminar concedida na ADI 7019, também proposta pela Contee, contra lei do estado de Rondônia.

O auge das trevas no ambiente escolar deu-se com a eleição presidencial, nos dois turnos, por meio do ostensivo, agressivo e tirânico assédio eleitoral, visando a obrigar professores/as e administrativos/as a votar contra a ordem democrática, ou seja, votar em Bolsonaro. Esse inaceitável assédio eleitoral, fartamente registrado pelas entidades sindicais e pelo MPT, deixou envergonhado o famigerado voto de cabresto, de triste notoriedade nos séculos XIX e XX.

A soma de todos esses atos antidemocráticos, que remetem as instituições de ensino às trevas da inquisição medieval, exige a imediata regulamentação do princípio constitucional da liberdade de aprender e ensinar, o que só conseguirá cumprir sua função social plena se se der por meio de lei federal, que, por força, do Art. 209 da CF, obrigará todas as instituições de ensino privado.

Eis os primeiros desafios para o início do tempo de esperança.

Ao debate e à luta!

*José Geraldo de Santana Oliveira é consultor jurídico da Contee

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