100 anos da Previdência Social
Por José Geraldo de Santana Oliveira*
Pavão misterioso, pássaro formoso
Tudo é mistério nesse teu voar
Mas se eu corresse assim
Tantos céus assim
Muita história eu tinha pra contar
Os belíssimos e poéticos versos da epígrafe abrem a encantadora música “Pavão Mysteriozo”, do cantor Ednardo, gravada em 1974, e que encerra vários simbolismos, dentre esses brado contra a ditadura militar de triste memória, à época ainda a pleno vapor, perdurando-se até 1985.
Com a devida licença do cantor Ednardo e de sua imortal música, tomam-se, aqui, os citados versos dessa para buscar dar a exata dimensão da Previdência Social, que acaba de completar seu primeiro centenário no Brasil. Aos 24 de janeiro de 1923, foi aprovado o Decreto Legislativo 4.682, que passou para a história como Lei Eloy Chaves e que, salvo uma ou outra controvérsia, por conta de esporádicos e restritos dispositivos legais que a antecederam (o que não abala seu significado e seu extraordinário papel na transformação social), constitui-se no primeiro grande marco legislativo de construção dessa política pública de primeira grandeza.
Política pública, que, aliás, como é sobejamente comprovado pelos exitosos 100 anos de sua história, foi e ainda é a mais ampla e significativa correção de desigualdades e de inclusão social.
Ao contrário do pavão misterioso, a Previdência Social nada carrega de mistério. Nessa, derramam-se, isto sim, inclusão, bem-estar e justiça social, sendo ao longo de sua inapagável construção, a pedra de toque que diferencia a dignidade da miséria.
Como o pavão misterioso, a Previdência Social corre muitos chãos, fazendo-se presente nos 5.570 municípios brasileiros, representando, em mais de 4.100 desses, a principal fonte de riqueza na mola propulsora do seu desenvolvimento social.
Ou seja, esses municípios são movidos pela Previdência Social, que lhes injeta mais recursos que o FPM (Fundo de Participação dos Municípios). Sem essa, com a dimensão que ainda tem, a realidade desses municípios seria semelhante àquela descrita por Monteiro Lobato em seu instigante livro “Cidades mortas”, de 1919: “Ali tudo foi, nada é. Não se conjugam verbos no presente. Tudo é pretérito”.
Do mesmo modo que o pavão misterioso, a Previdência Social tem muita história para contar. Pode-se afirmar, sem nenhuma dose de exagero, que essa tem o Brasil para contar. Não fosse sua existência, sua dimensão, suas largas mãos inclusivas, o Brasil seria um tristíssimo oceano de miséria e de indignidade.
A garantia de que nenhum benefício previdenciário seja inferior ao salário mínimo e a de preservação de seu valor real, que só se concretiza com a correção anual pelo INPC/IBGE, representaram e representam a diferença entre a miséria e a dignidade para nada menos que 36,5 milhões de brasileiros/as. Esse é o número atual de aposentados/as, pensionistas e beneficiários/as do BPC (Benefício da Prestação Continuada), dos quais mais de 25 milhões correspondem a 1 salário mínimo.
Não obstante essa continental dimensão, em seus múltiplos aspectos, faz-se imperioso registrar, com forte grau de desolação, que, paradoxalmente, como quase tudo que envolve a política brasileira, os primeiros 75 anos de existência — 1923 a 1998 — foram de sua consolidação, ampliação e universalização, culminando com a vastidão que lhe deu a Constituição Federal de 1988.
Já os últimos 25 anos, ao reverso, trazem a marca de periódicos, certeiros e deletérios ataques às suas estruturas pelas emendas constitucionais 20/98, 41/03, 47/05 e 103/19, a mais letal de todas, que faz erodir suas até então sólidas bases, com incalculáveis danos aos/às segurados/as, no presente e principalmente no futuro.
Por tudo isso, ao tempo em que o centenário da Previdência, obrigatoriamente, tem de ser festejado e elevado ao panteão da história brasileira, urge que se empenhem esforços, com a dimensão do Brasil, para que as bases implantadas pela CF de 1988 sejam constitucionalmente reconstruídas, o que demanda o sepultamento definitivo dos principais nefastos comandos da EC 103/19. Isso é imprescindível para que não ocorra, em breve e de forma duradoura, aquilo que caracteriza a citada obra de Monteiro Lobato, repita-se: “Ali tudo foi, nada é. Não se conjugam verbos nos presente. Tudo é pretérito”.
Vivas e vida longa à previdência social.
*José Geraldo de Santana Oliveira é consultor jurídico da Contee